Bem que eu não queria participar daquela partida quando Linguiça
me convidou. Eu estava enferrujado. Há muito sem jogar futebol, mas Linguiça
era tão meu amigo e insistiu tanto que não tive coragem de recusar
e, segundo ele, não havia ninguém melhor do que eu para defender
o nosso gol.
- Vai ser no campo do Manufatura, você conhece?
- Nunca ouvi falar - respondi meio desanimado.
- Pois, acho que vai gostar. O timinho deles é fraco. Vai ser moleza
pra gente; partimos no sábado.
Linguiça tinha um caminhão, um Ford 79, quase aos pedaços.
Por pouco não desisto da empreitada, quando me disse que ia carregar
o time inteiro para o espetáculo. Foi uma loucura o que passamos naquela
viagem. Quando a gente encarava uma subida, Linguiça gritava: -
Desce pra empurrar que o motor é recauchutado. - Nas ladeiras abaixo,
ele pedia: - Desce pra escorar que o freio não aguenta. - Quando
finalmente, chegamos ao nosso destino, eu desabafei:
- Poxa! Linguiça, tá certo que a gente não podia
deixar de vir porque tinha que jogar, mas, pô! Precisava trazer o caminhão?
Quando terminei a frase e olhei o campo, não acreditei. Nunca vi troço
tão ruim. O gramado era péssimo, pior do que rala côco.
Poças d'água dum lado, lameiro e brejo do outro. De uma baliza
não se via a outra; tinha um morro bem no meio. Agora, o que me chamou
mesmo a atenção foi o centro-avante do time deles. Era um crioulo!
Contando não dá pra acreditar. O negão tinha pra mais de
2m e 10 de altura, a língua era uma gravata, comprida e desbotada. E
os olhos! Sabe aquele olhar de anteontem? Vermelho de assustar? Eu acho que
o crioulo em vez colírio usava groselha, não é possível.
Os braços do malandro eram de amedrontar qualquer um. As duas coxas do
Linguiça não davam um braço dele. Ele tinha uma tatuagem
da Juliana Paes no braço esquerdo que cada vez que ele cruzava o braço
a Juliana descruzava as pernas. E o sovaco do cara! O sujeito acenou pra namorada
na arquibancada, matou um sargento na geral. Só deu pra ouvir as últimas
palavras do sargento: - Chama o quarteeeeel!!! Tibum!!!
Quando o juiz apitou, dando o início da partida e o negão pegou
na bola, eu falei pro lateral: - Vai em cima do homem. - O lateral já
era, né! Só sei aos dez minutos do segundo tempo já estava
8 a 1 para o time deles. Sete gols do negão e um que eu mesmo fiz pra
ajudar o menino.
Aí, surgiu um pênalti. Contra nós. Adivinha quem ia bater.
Isso mesmo, o crioulo. Eu pensei cá pra mim: "To ferrado, não
passo de hoje". Então, saí do meu gol, fui perto do homem
e falei: - Loirinho! Tu não vai bater esse pênalti, né?
- Batereeei!!! - Não sei o que foi pior, a voz assustadora do cara
ou o bafo dele. De repente, tomei coragem e disse:
- ah! É? Então bate, bate, pode bater. E voltei pro gol. - Eu
tremia que nem vara verde. Ele tomou distância, sumiu atrás do
morro e veio. Ele, correndo. Eu, aqui no gol, tremendo e aquele barulho me incomodando.
Não, eu explico. O problema é que o homem usava calção
56 e, por baixo, nada, só a natureza. Enquanto ele vinha em direção
à bola, o negócio fazia: Xulep! Xulep! Xulep!
- Poxa! Assim não dá - eu falava. - Amarra um barbante, meu.
Se é preconceito de cor, amarra uma fita isolante. - Aí, ele se
aproximou da bola e, Pá!!! Eu fui acordar três dias depois em cima
de um caminhão de areia. Depois, passados uns seis meses, eis que encontro
com o negão no centro de São Paulo. Parei ele na rua e perguntei:
- E aí, cara! O que está fazendo por aqui, o Vasco não
contratou você? - Ele me lançou aquele olhar característico
e respondeu:
- Cê tá doido, mano? O Eurico cortou o salário do Romário,
cortou a barba do Edmundo, a unha do Odivan. Do jeito que o homem tá
cortando tudo que é grande, cê acha que eu vou se arriscar?