Num desses dias em que a alma vibra na sensação do bem estar, vale
a pena fazer qualquer coisa. Vale a pena caminhar, respirar fundo, sentir-se
vivo, enfim. Este bem estar inundava o peito de Norma naquela tarde de sábado
na estação de trem. Uma energia benéfica percorria-lhe
o todo do seu ser. Sentia-se de bem com vida, como nunca antes; voltava a sorrir.
Quando tal sensação invade, vão-se as tristezas, o horizonte
do futuro surge claro e promissor. A mente, ansiosa por vida, pinta as imagens
do sonho, prestes a sair da escuridão da dúvida e mergulhar de
cabeça no mar da esperança e do amor. O coração,
com seus dotes mil, seus arcanos insondáveis e cheio de recusas passadas,
ou rejeições, espera de novo a chegada do seu salvador.
Inundada por tal onda benfazeja, não percebeu a aproximação
da máquina locomotiva senão quando esta surgiu à sua frente,
abrindo as portas. Ergueu-se do banco e, apressada, embarcou. As pessoas quase
que se espremiam umas às outras e o murmúrio de vozes reinava
absoluto no ambiente limitado da composição.
- Permita que segure sua bolsa?
- Pois não - respondeu Norma ao rapaz, entregando-lhe, aliviada, sua
pequena sacola e mais outro volume que portava. Durante os primeiros minutos
daquela viagem um frio paralisante percorreu-lhe todo o corpo, causando incômodo
nervosismo. Havia uma razão para isso: Ele não afastava os olhos
de Norma; fixava-a de uma forma anormal, indiscreta até. Duas estações
à frente vagou um assento; Norma sentou-se ao lado do rapaz. - Muito
obrigada - agradeceu mais uma vez, recolhendo a bolsa e o volume. Porém,
antes mesmo de acomodar-se no banco, ouviu dele:
- Poxa! Mas que surpresa agradável!
- Eu o conheço? - perguntou. Por ser bonita e atraente, Norma via-se,
não raro, assediada por quase todos que cruzavam o seu caminho. Aquela
poderia ser mais uma situação idêntica às tantas
que ela vivia diariamente; portanto não deu maior atenção.
Apenas sorriu com sua malícia característica de mulher vaidosa.
No entanto, deixando um pouco de lado a vaidade e o orgulho de mulher bonita,
fixou melhor o rapaz e reconheceu naquela fisionomia um antigo namorado da faculdade.
Este rápido vislumbre trouxe-lhe à memória deliciosos momentos
que vivera tempos atrás, ainda moça, frequentadora assídua
dos bancos escolares, mas, muito mais das rodas vespertinas de troças
e folguedos de sua rica e confusa adolescência. E, acima de tudo, reacendeu-lhe
uma esperança.
Chamava-se Afonso; e a grande transformação que sofrera no decorrer
dos anos surpreendeu demais a moça, que comentou: - Como você está
diferente! - E assim reataram um relacionamento já quase perdido no tempo;
e aqui começa essa história.
Vale dizer que Afonso, como namorado de Norma durante bom número de meses,
viveu o privilégio de povoar-lhe os sonhos de menina moça, fazendo
parte de sua vida afetiva. Contudo, não a amava; Norma era para ele um
passatempo, nada mais. Mas o primeiro amor é para o coração
feminino o que o colírio é para a vista enferma: Alívio
da opressão, aumento da esperança de um futuro claro e sem manchas.
As transformações inerentes àquela fase eram acentuadas
no comportamento da jovem apaixonada. Mas o corpo, este denunciava a felicidade
interior que ela vivia. A fisionomia não consegue esconder o estado d'alma.
Da mais profunda tristeza a mais contagiante das alegrias, somos surpreendidos
nos ínfimos meneios de cada músculo ou nervo de nossa face externa.
Porém, no corpo, como um todo, a mudança era singular. Dos quatorze
aos dezesseis anos tornou-se irreconhecivelmente linda, um querubim de carne
e osso.
A beleza de Norma, seus contornos físicos, seu sorriso alvo e a tez morena,
enriquecida pelos tratos que lhe davam, menos os cosméticos do que a
luz natural do sol benfeitor do Rio de Janeiro sobre as praias mudas e disponíveis;
esta beleza chamava atenção, e como! Outras como ela até
que havia, e até mais bonitas. Mas Norma sabia unir suas qualidades físicas
ao charme de sua personalidade e à inteligência de sua mente; aí
se tornava imbatível. Descartava os mais disputados rapazes de sua roda,
fazendo outras meninas morderem-se de inveja e despeito.
Mas, o que via em Afonso? Talvez nada demais; talvez simplesmente o encanto
do primeiro amor. É certo que ele mal percebia este encanto de Norma.
Diz o poeta que isso é próprio do amor: Um amando perdidamente
e o outro, negligentemente, deixando-se amar. A diferença de idade podia
ser a causa da indiferença de Afonso. Tinha vinte e quatro anos quando
Norma tinha apenas dezesseis. Conhecera o sexo aos dezessete e já tivera
várias experiências. A mais marcante foi aos vinte e um quando
engravidou uma moça. Este fato desnorteou-o; foi a primeira grande frustração
com as mulheres. Achou que fora enganado, pois não haviam combinado nada
daquilo. Abandonou a mãe com o filho que nem chegou a conhecer; não
sem uma chama de remorso a queimar-lhe o peito, mas abandonou-os. Depois, conheceu
Norma, com quem retomou suas atividades de namoro, mas sem se arriscar.
O fato de Afonso não amá-la poderia estar ligado ao seu primeiro
fracasso amoroso. O espírito ainda não havia se recuperado. Mas,
prosseguindo sua união com ela poderia superar o passado e ser feliz
sem ressentimentos. Para isso teria que se contentar com beijinhos e abraços
para não estragar tudo; ou casar-se de uma vez. Mas aí já
seria outra história. Ultimamente conversavam bastante sobre o futuro.
- Você me ama? - dizia Norma.
- É claro, meu amor; mas que jeito estranho de perguntar! Você
não acredita?
- Não é que eu não acredite; apenas sinto você um
tanto frio às vezes.
- E as outras vezes? - brincou Afonso.
- Não estou brincando. Já namoramos há vários meses
e você nunca avançou o sinal; sabia que todo namorado avança
o sinal de vez em quando?
Afonso ficou meio pálido nessa hora. Olhou para os seios dela, os seus
contornos e a firmeza do seu porte traduziram-lhe francamente as últimas
palavras. À vontade que tinha naquele momento de incontido desejo, arrebatado
pelo oferecimento explícito da namorada, era tomá-la nos braços
ali mesmo e mostrar-lhe sua masculinidade. Por momentos, congelou o olhar sobre
ela, seduzido que estava; ficou sem palavras. Norma usava um peitilho cor de
rosa, sendo a única peça que lhe cobria os seios. A barriga era
nua e um shortinho branco e sandálias também brancas completavam-lhe
o charme juvenil. Os olhos castanhos e muito expressivos eram fixos nos dele,
seguindo-lhes os movimentos. Quando, como quem perscruta uma obra de arte, Afonso
terminou sua deliciosa viagem, ela perguntou:
- Você me acha bonita?
- Você é linda! - respondeu.
- Então, por que não me deseja? - outra pergunta que deixou o
rapaz novamente embasbacado. O que teria dado naquela menina? O que vinha matutando
ultimamente naquela cabeça? Já vamos saber.
Afonso exercia a profissão de representante comercial e possuía
um pequeno escritório no centro do Rio. Tinha um sócio, Osvaldo.
Era casado, com uma família bem constituída, filhos, sogra e tudo
mais. Amava a esposa, mas de uns tempos para cá vinha desconfiando de
sua conduta; fez de tudo pra ver se descobria. Seguiu ele mesmo os passos dela,
colocou detetive, nada. Como não tinha provas para a sua desconfiança,
desistiu por uns tempos. Chegou a pensar que as mudanças em alguns pontos
do comportamento da mulher se devesse ao amor que já não sentia
por ele; conformou-se. Como as angústias retornassem após alguns
meses, retomou as investigações. Mas onde entra Afonso nesta história?
Vejamos.
Entrara para a sociedade com Osvaldo quando este já, mais uma vez, desistia
de achar razões que justificassem a frialdade do seu relacionamento com
a mulher, antes tão rico e amorável. Na condição
de jovem bonitão e afortunado com o sexo oposto, Afonso seria a salvação
do seu casamento ou a ruína total do mesmo. No dia a dia da rotina do
escritório, Osvaldo a debuxar sua falta de sorte, passava para o amigo
e sócio certa insegurança. Contudo este não descartava
a hipótese de ajudá-lo, embora achasse a ideia um tanto
arriscada.
- Ela não conhece você, não tem porque dar errado. - Uma
soma em dinheiro entrou no negócio, o que dissipou de vez as dúvidas
de Afonso.
- Está bem; marquemos então dia e local. E não deixe de
me passar todos os detalhes; quero fazer tudo certo - disse.
O plano era o seguinte: Afonso devia passar por amante de Vilma, a mulher de
Osvaldo, porém, sem consumar o ato. O flagrante seria dado a tempo e
todas as dúvidas do marido traído seriam, de uma vez por todas,
esclarecidas.
Mas saiu tudo errado. Por uma falha de sincronização, Osvaldo
não chegou ao local aprazado. Ou melhor, chegou, mas não viu o
que precisava. A mulher era mais esperta do que ele imaginava e conseguiu sair
dali minutos antes do que qualquer flagrante. Se ficou sabendo da trama, a incógnita
será eterna. O fato é que Afonso, levado pela dedução
de quem entende do assunto e já um tanto alto pelas doses também
sedutoras, foi arrastado do local a tira-colo para longe dos olhos de qualquer
mortal, até mesmo deste que redige estas linhas. As provas continuaram
inexistentes. O rapaz jurou inocência. As dúvidas de Osvaldo persistiam,
agora ainda mais atrozes. Mas Afonso perdeu o emprego; e o amigo. Este... bem,
continuou com a mulher, com as angústias de sempre mas sem coragem de
fazer o que achava certo.
Se houve ou não algo entre os dois, isto não vem ao caso aqui
nesta história, mas fica a lição de quanto o coração
feminino é enigmático e insondável. A mulher sabe realmente
agir quando se trata de conseguir o que quer para a sua felicidade; e na maioria
das vezes acaba conseguindo. Mal sabiam aqueles dois que Vilma fazia parte das
inúmeras amizades de Norma; não propriamente Vilma mas uma de
suas filhas, Valéria. Frequentava os mesmos bancos escolares que
a adolescente. E as conversas entre meninas nesta fase áurea pairam,
na sua grande maioria, sobre temas masculinos. Belos rapazes e suas aventuras
amorosas habitam os pensamentos da chusma estudantil que deixou de ser, há
muito, aquele sexo frágil e mantém esquecidas ou ignoradas as
inocentes bonecas num canto qualquer para cingir-se de outros jogos, menos monótonos
e muito mais excitantes.
Valéria sabia que Afonso e Norma eram namorados. E foi através
dela que Norma ficou sabendo onde trabalhava o rapaz; isso foi no começo
do relacionamento. Ele nunca entrava em detalhes sobre sua vida particular,
pois não queria, ou não imaginava que o caso fosse alongar-se
por mais do que umas poucas semanas, que é como vinha se dando com todas
as garotas que conhecia desde o seu malfadado romance responsável pela
frustração amorosa que vinha amargando desde então. Norma,
julgando-se apaixonada, passou a acompanhar furtivamente os passos do namorado.
Como estudava à noite, sempre que surgia uma oportunidade, não
hesitava em cabular uma ou mais aulas a fim de conhecer-lhe o destino ao deixar
o escritório.
Numa noite, por volta das dezenove horas, tomava sorvete encostada ao balcão
de uma lanchonete no bairro de Botafogo; havia descido do metrô a uns
cem metros dali. Esperara por mais de meia hora a saída de Afonso do
escritório no centro e no mesmo local onde ele costumava passar diariamente
para pegar o ônibus que, ela sabia, o levaria para o bairro de São
Cristóvão onde morava. Raramente se viam durante os dias úteis
da semana. Ele alegava cansaço do trabalho e a urgência em completar
o estudo que fazia, em casa mesmo, a fim de prestar exame para o vestibular
que se aproximava. Como ele não aparecia, ela decidiu ir embora. Estava
agora há meio caminho entre a estação e o colégio
onde estudava e, enquanto saboreava o sorvete, pensava se ia ou não aos
estudos.
Quando tirava da bolsa o dinheiro para pagar, avistou, parado ao sinal luminoso,
belo automóvel guiado por uma mulher ainda mais bela. Tudo muito natural
se não fosse aquela mulher Vilma, a esposa de Osvaldo e, ainda para desagradável
surpresa de Norma, não estivesse ela acompanhada de Afonso. A menina
não se deixou avistar; os dois sequer olhavam para os lados de tão
entretidos que estavam um com o outro. Norma não se abalou. Sentiu, sim,
grande tristeza interior. Saiu de onde estava e tomou o caminho de casa, não
sem antes perambular por algumas ruas do bairro, cabisbaixa e de alma dorida.
Ao dar por si já eram perto de dez horas das noite. A desilusão
que a invadia igualava-se à espessidão da noite. Nesse estado,
embarcou novamente numa composição do metro e seguiu para o Flamengo,
onde morava.
Contudo, a despeito do ocorrido, no dia seguinte Norma já era outra pessoa,
ou melhor, a mesma que sempre fora. Era tão cheia de vida que um fato
como este não iria abalar seu ser. Mas ficou pensativa. A intuição
feminina parece ter-lhe dado a visão do problema. Afonso, saindo com
uma mulher casada, só podia estar em busca daquilo que ela não
podia lhe dar: sexo. "Então, se é esse o caso, posso tentar
resolvê-lo". A menina passou aquele dia, e os seguintes, pensando
muito a respeito do ocorrido, ruminando as possibilidades para uma solução
feliz. E se se entregasse ao rapaz? Será que o amava? Não era
apenas o orgulho que, ferido tentava sobressair-se? Valeria a pena perder a
virgindade para alguém de cujo amor ela não tinha certeza? Norma
refletiu muito mas não chegou a uma solução definitiva.
Com quem conversar? Com a mãe? Tinha medo; achava que não entenderia
ou que conseguiria no máximo alguns conselhos baseados no amor de mãe,
conservador, protecionista, que é, de fato, o que pensam quase todos
os adolescentes; então se livrou da ideia. Quanto ao pai, pior
ainda; morria de medo só em comentar que namorava e estava apaixonada
por alguém com quase dez anos a mais do que ela. Já conhecia de
cor e salteado a opinião dele, as quais gravitavam invariavelmente na
direção dos seus conceitos machistas e intransigentes. Imagina
o que um cérebro como o seu poderia inferir da situação
da filha; não, nem pensar.
Resolveu então nada fazer em relação a conselhos, pelo
menos de pessoas que os pudessem confundir com sentimentos de afinidade ou experiências
penosas e pessoais que influíssem em suas opiniões. Limitou-se
à publicações que sempre gostava de ler e que tratavam
desta área e conversas com amigas de que gostava e tinha na conta de
sinceras e sabedoras do que queriam. Por fim, entregou mesmo o caso à
luz da intuição feminina que quase nunca falha nessas horas.
Esperou chegar o fim de semana. Afonso costumava ligar de quando em vez para
um breve namoro ao telefone; ela fazia o mesmo mas desta vez foi diferente,
embora o tenha tratado com naturalidade nas vezes em que ele telefonou. Ao se
encontrarem não tocou no assunto para não demonstrar ciúmes
nem ficar em desvantagem; pelo contrário. Recebeu-o com carinho e um
pouco mais de atenção. Norma o recebeu na varanda como geralmente
o fazia; ofereceu-lhe café e ele aceitou. Desligou a iluminação
principal, deixando o ambiente à meia-luz e sentou-se ao seu lado. Entre
beijos e afagos, começaram a conversar sobre assuntos corriqueiros. A
mãe, nas tardes de sexta-feira, frequentava uma igreja evangélica.
O pai nunca voltava do trabalho antes das vinte e duas ou vinte e duas e trinta.
Sendo Norma filha única, não era difícil esconder o namoro.
Dentro de casa a mãe mantinha com ele esse segredo. O casal geralmente
ficava na varanda até por volta das dezenove horas, quando ela retornava,
preparava-lhes um lanche e, em seguida, os dois saiam a passear, retornando
sempre antes das vinte e duas horas. Despediam-se a uns dois quarteirões
dali. Aos sábados e domingos viam-se na presença da mãe
de Norma quando iam a diversões como um shopping center ou um
cinema.
Enquanto a mulher não aparecia, aproveitavam aquela quase hora para matarem
a saudade, conversando entre carinhos. Norma estava ardente aquela noite. Para
ela a ocasião teria de ser especial; queria testar até onde ia
a susceptibilidade de Afonso. Além do mais, trajava-se de maneira provocante
com saia curta e blusa excitantemente decotada. Com incontido transporte, no
pescoço e nos lábios beijava-o, roçagando entre as pernas
dele as suas. Ele, a princípio, tomado pelo arrebatamento de Norma, comprazía-se
na medida do possível, tendo em vista a impropriedade do local e a promessa
que fizera a si mesmo de conter seus arroubos sexuais. O perfume da menina inebriava-o.
A respiração resfolegante de fêmea incontida que conhece
os pontos fracos de um homem impregnava o ambiente com desejo e suspense. A
vestal inocente e comedida dando lugar à mulher dominante e audaz.
Afonso pouco a pouco se deixava conduzir por aquele ímpeto tão
ousado de Norma. Como reprimir aqueles beijos? Como impedir o progresso de tais
sensações mais do que excitantes? Na medida do possível,
porém, conseguia conter-lhe os avanços com bem humoradas frases
como: "Poxa!, você assim me sufoca!", entremeadas de risinhos
condescendentes por parte dela que em seguida voltava aos longos beijos e carícias.
Súbito, a campainha. Viu-se aliviado Afonso; finalmente um descanso para
recompor-se. Trinta e tantos minutos ininterruptos de excitação
não é pouca coisa para aguentar-se sem uma resposta à
altura; ainda mais vindos de alguém como Norma.
Enquanto ela ia até o portão, empenhando-se em assumir de volta
a sua postura natural de moça bem comportada, o rapaz fazia o mesmo na
varanda. Rapidamente penteou-se, colocou para dentro das calças o blusão
meio que amarrotado e sentou-se, cruzando as pernas.
- Oi, Dona Luiza, como passou a semana? - era a mãe de Norma; portava
um embrulho em uma das mãos e, na fisionomia, a mesma simpatia costumeira.
Embora tenha notado certa tensão em Afonso - só menor em intensidade
do que a naturalidade peculiar da filha - nada comentou, guardando para si qualquer
impressão. Após alguns segundos de um silêncio perturbador,
foi a primeira a quebrar o silêncio.
- Adivinha o que trouxe para o lanche?
- Pelo cheiro, só pode ser pizza - arriscou a filha.
- Acertou! E é, de calabresa, a preferida de Afonso.
- A senhora é a melhor mãe do mundo, dona Luiza! - brincou ele.
- Mas não precisava se preocupar - acrescentou sorrindo.
- Qual nada, é um prazer. Agora, que tal comermos e conversarmos um pouquinho
para relaxar?
- Mãe, a gente não vai demorar; queremos ver um filme que começa
às oito e, a senhora já sabe, temos horário para o retorno;
não é, bem? - acrescentou com uma olhadela marota para o namorado.
Ele ficou meio sem graça mas confirmou com a cabeça.
Este episódio vem demonstrar como um fato, marcante e repentino, veio
contribuir para uma transformação bastante acentuada no comportamento
e nas atitudes de Norma. Aos poucos, tornava-se mais sedutora; encontrava meios
para ficar cada vez mais à sós com o namorado a ponto de descuidar
das advertências da mãe. O namoro que já era acalorado,
tornou-se irresistivelmente quente e apaixonado, até que um fato veio
prorromper o inevitável.
Quando, em uma daquelas noites de sexta, entregavam-se ardentemente a carícias
avançadas, surgiu, inesperadamente, o pai de Norma. Passavam poucos minutos
das nove e meia e eles estavam próximos à casa, embaixo da marquise
de um ponto comercial já fechado e semideserto. Ele não chegou
a vê-los no ato do namoro, mas cruzou com a filha quando acabavam de se
despedir com um beijo nos lábios. Ao virar-se e ver o pai, Norma corou;
não lhe era normal chegar em casa àquela hora. O homem nada disse,
porém. Esperou que Afonso se afastasse. Após o tradicional até
logo com as mãos e o desaparecimento dele na curva da esquina, o pai
dela aproximou-se e empurrou-a para casa. Norma seguiu à frente, mantendo
certa distância. Entrou em casa quase correndo, passou pela mãe
que na sala assistia à TV e dirigiu-se direto para o quarto onde dormia.
Ele entrou em casa feito uma fera. - Onde está aquela vagabunda? - A
mulher, já imaginando o que ocorrera, tentou, sem sucesso, apaziguar
a situação. - Não me venha com conversa mole; chame-a aqui
se não quiser que eu vá buscá-la; aí será
pior.
- Pense um pouco, ela estava apenas namorando.
- Namoro! O que eu vi foi muito mais do que isso; o jeito como se agarravam...
- exagerou. - E pensar que você sabia da pouca vergonha dos dois; e não
me disse nada! Vá chamá-la... ande! Ela não sabe o que
lhe espera.
- Você não vai bater em nossa filha, ela não é mais
nenhuma criança; não poderei perdoá-lo se fizer isso. Alberto
amava a esposa e por amá-la, respeitava-a. Não amava menos a filha.
Mas a influência da educação que teve, espartana em quase
todos os sentidos, refletia-se no modo de lidar com as duas. O próprio
pai de Alberto foi assim com as irmãs dele e ele não seria diferente
com Norma. Do quarto, ela ouvia em silêncio a discussão. Como diminuíssem
os apelos angustiantes de Luiza e os impropérios ameaçadores do
marido, surgiu na sala e colocou-se à disposição.
A consequência de tudo isto foi que Norma teve o seu castigo; pecou
por estar amando; o sofrimento em forma de provação veio com a
proibição de ver e falar com o seu amado. Poderia, se quisesse,
com a ajuda e conivência da mãe e um pouco de coragem, burlar a
pena e ver Afonso; e foi o que fez. Luiza sentiu a dor da filha e repartiu com
ela a perigosa maçã da cumplicidade. Como mulher que já
viveu a paixão com todas as perdas e lucros, sabia que isso era o mais
certo que tinha a fazer. Valeria o risco que iriam correr; toda paixão
tem sua dose de risco.
Contudo, por infeliz coincidência, o pai entrou em férias de dez
dias após a sentença que promulgara. Para Norma foram os dez dias
mais felizes que já vivera. Longe da vigilância dele e próxima,
bem próxima, dos carinhos de Afonso. Fez exatamente o que queria; entregou-se
a ele. Fê-lo com toda alma e devoção de que foi capaz; ele
não teve como resistir àquela atitude da moça. Era como
se ela soubesse o que estava fazendo. Afonso apaixonou-se. Mas a alegria da
conquista juntara-se à decepção da perda. Norma não
mais poderia ser dele. Contou-lhe tudo apenas no último dia quando se
despediram; do respeito que tinha pelo pai e do medo de sua reação
se descobrisse a rebeldia.
Deu-se o desenlace sob clima de emoção para ambos. Não
mais se viram. E Afonso, ferido no coração, sentiu-se usado. Não
mais a procurou; sequer telefonou. Vinte dias se passaram. O amor tem dessas
coisas. Mexe com tudo e com todos. Faz de quem ama uma incógnita; do
ser amado um espelho a refletir os nossos desejos insatisfeitos. É uma
eterna busca, um tesouro escondido, cujo mapa julgamos alhures encontrar estampado
nos sorrisos que nos cativam. Começa com a paixão que une os desejos
para terminar na floresta da igualdade entre os sonhos e os objetivos maiores.
Norma começou a sentir os primeiros sinais deste amor ao bater-lhe a
saudade de Afonso. Sentiu o desespero e entristeceu-se. Contava, no seu orgulho
juvenil, ver satisfeito o ego feminino através da procura por parte do
ex-namorado. Agora, como mulher, oferecia o prazer sem limites e sem barreiras.
A decepção foi, portanto, muito grande. O reflexo disso surgiu
generalizado na vida de Norma. na escola, uniu-se a outros grupos; as amizades
de agora justificavam as mudanças que vinham ocorrendo dentro de si.
Aproximava-se o início das férias escolares de meio de ano. Os
últimos dias do mês de junho daquele ano de 1988 foram dos mais
frios que há décadas não se sentia no Rio de Janeiro. Todo
e qualquer comportamento denunciava uma necessidade primordial sobre qualquer
outra: procurar calor, tirar proveito das mínimas fontes que estivessem
ao alcance. Assim, viam-se carros com todos os vidros cerrados, protegendo os
seus ocupantes. Os casais abraçados, tão unidos feito pedras engastadas
num colar, despreocupados com tudo e ciciando amores. Sobretudo, quem passasse
as primeiras horas da noite por certas ruas desertas do Humaitá, poderia
deparar com um grupo de animados jovens que se divertiam confabulando ao som
de suave música ambiente. Uns, para combinar com o clima, tomavam vinho,
pois ali era uma espécie de bar com feitio de adega. A julgar pelo tipo
de decoração, seria um comércio de portugueses, com mesas
redondas e cepos de madeira usados como banco. Tinha uma cobertura em lona mas,
devido ao frio, todos estavam do lado de dentro em mesas e cadeiras comuns.
Norma tivera Afonso em sua vida por um período aproximado de oito meses,
em que vivera um verdadeiro conto de fadas. Transformada em mulher, só
não soube como administrar esta vantagem; onde falhara? Seria de Afonso
ou dela própria a culpa? Seria do destino? Não sabia dizer. Talvez
uma falha de educação - o que pode ser bem provável. Parecia
não se preocupar muito com isso. Sua índole destemperada fez com
que não aceitasse tudo passivamente. Há dias já não
comparecia ao colégio; devia provas e matérias. Os colegas do
barzinho onde Norma se encontrava já estavam de férias e quites
com os estudos, mas ela não. Mas certa estava de que iria recuperar-se
a tempo. Ana, companheira de classe, confortou-a naqueles tempos difíceis.
- tem certeza de que está grávida, fez todos os exames?
- Todos, não restam dúvidas.
- O que pretende fazer?
- Não sei; se não fosse você acho que estaria perdida. -
Soltou estas palavras quase a soluçar mas voltou a sorrir com o gesto
da amiga que a animou com frases alegres, passando-lhe a mão sobre os
cabelos desfrisados pela umidade da noite.
Uma reviravolta aconteceu na vida de nossa adolescente em pouco menos de dois
meses. Ao descobrir-se grávida, juntou um pouco mais de coragem àquela
que já possuía de sobra e abriu o jogo em casa. Aproveitou a gota
d'água para rebelar-se contra as privações que vinha sofrendo
e conclamar o seu direito à felicidade. Saiu do lar e foi viver no Humaitá
em casa de Ana cuja tia não se negou ao apoio. Procurou por Afonso; nada
lhe disse sobre o problema que a afligia. Escondeu a gravidez sob sua capa costumeira
de jovem feliz e aberta para as novidades da vida. Ele não reatou, todavia,
o namoro. Alegou, e falava a verdade, uma viagem à Inglaterra. Conseguira
uma bolsa para estágio na faculdade de Oxford; levaria por lá
algo em torno de um ano.
Era o fim da linha para Norma. Ainda assim, manteve o segredo. Andou por pouco
a contenção. Mas venceu o amor verdadeiro na suposição
de Norma, que era vê-lo feliz em sua carreira, acima de tudo. Não
queria ser a responsável por mais esta complicação. Ele
partiu, na esperança do esquecimento e na atuação do tempo,
imparcial e inexorável.
E o tempo passou, encarregando-se das mudanças que ocorrem em cada uma
de nossas vidas. Seis anos são decorridos desde os tumultuosos acontecimentos
na vida de Norma. Os pais, Alberto principalmente, sentiram-se extremamente
culpados pela omissão de carinho e apoio numa hora tão difícil.
Ela contudo, não guardou mágoas. Recuperada da grave intervenção
cirúrgica que quase a levou à morte, aceitou, entre pedidos de
desculpas, retornar para a convivência junto a eles; muito mais por Luiza
que estava sofrendo tanto.
Agora uma linda menina fazia parte da vida de Norma, que aos vinte e três
anos parecia estar novamente de bem com o mundo. Os dias de gáudio, repartia-os
com Larissa. Todos os fins de tarde, de banho tomado, brincava no portão
com outras crianças, aguardando a doce mãe. Luiza, olhando-a,
agradecia aos céus a linda neta surgida em meio a tantas e inusitadas
voltas que o destino dá; amava-a do mesmo modo. Afonso ficara na Europa,
efetivado por renomada empresa após alguns meses de estágio. Aos
trinta e um anos, estava no caminho seguro e longo da riqueza material. Porém
ainda solteiro. Vinha ao Brasil com frequência. Além das férias
para descanso, trazia-o importantes negócios. As mulheres europeias
não lhe despertavam grandes interesses. Andou flertando umas e outras;
mais como passatempo indispensável a um homem de sua idade do que outra
coisa.
Agora, um fato marcante ocorrido no passado, que foi, na verdade, o que desencadeou
esta trama. Durante uns dois ou três anos, trabalhou Norma em uma loja
de roupas femininas, dessas que enxameiam nos Shopping Centers que começaram
a proliferar pela cidade no início da década de 90. Havia ali
uma mulher beirando os trinta anos que veio a ser, em questão de meses,
sua melhor amiga. Laura, falante e muito enérgica, era quem gerenciava
o pequeno negócio. Norma conhecia-lhe o passado de trás para frente
e isto as unia ainda mais. Tinha uma filha que era a razão do seu viver,
sua paixão, única e verdadeira.
- Às vezes penso o que seria de sua vida se eu lhe faltasse - falava
de vez em quando. - Ela não possui ninguém além de mim.
- Não dia bobagens! - respondia sempre Norma. - Mas, esqueceu do quanto
sou apaixonada por crianças?
- É verdade; e é incrível como adora você. Quando
passam sem se ver, não deixa de perguntar pela tia Norma.
Com efeito. Impossível decifrar certos mistérios. Um trágico
acidente de automóvel veio colher a vida de Laura no auge do crescimento.
Por uma ação na justiça, conseguiu Norma a adoção
da menina; não foi difícil para ela. Como não havia parentes
que reclamassem o direito à criança e não faltassem testemunhas
a favor de Norma - a mais forte delas o próprio amor da menina - ganhou
ela uma nova mãe. Esta, ao quase perder a vida, tendo um filho que não
sobreviveu às complicações de um parto, foi brindada anos
depois por linda alma, preenchendo assim uma coluna irreversível, pois
jamais voltaria a ser mãe biológica.
Ao se cruzarem depois de tantos anos naquela composição do metrô
e comentarem as diferenças para melhor em beleza e maturidade, Norma
e Afonso despediram-se ao se aproximar uma das estações. Porém,
ficou no ar uma pergunta que ela lhe fez.
- Não quer conhecer sua filha?
A resposta dele veio em forma de um cartão para contato, seguido de uma
súbita mudança em sua expressão fisionômica. Ele
ficou surpreso, beijou-a no rosto e desembarcou.
Ao se encontrarem dias depois, Afonso conheceu Larissa. É claro que a
idade dela deixou evidente que não podia ser filha de Norma mas a semelhança
com ele era tamanha que o deixou aparvalhado; ela contou toda a história.
Foi um momento emocionante que os fizeram chorar abraçados. Selaram ali
uma união marcada pelas sábias mãos do destino. Afonso,
fugindo de dois amores, acabou por reencontrá-los reunidos no mesmo amor
de Norma, esta mulher extraordinária. A filha que não assumira
com Laura, assumiria agora de forma completa e verdadeira. Impossível
fugir desta vez.