A Garganta da Serpente
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O mistério de Springfield

(Edgard Santos)

I

Um arrepio de medo precedeu o grito de desespero que Jane deixou escapar ao retornar para a sala. O prato, ainda quente, que devia conter algo recém preparado, foi pelos ares e o seu conteúdo esparramou-se contra a parede branca e escorreu até o chão vitrificado. O efeito fumegante, livre, volatizou-se, saindo pela janela. A vítima aparente, cuja visão horripilante entorpeceu os gestos de Jane, estava muda e estática. Parada entre um quarto e a sala, a pele negra tornou-se pálida e esverdeada. Os cabelos encaracolados desfizeram-se em fios curtos e eriçados pelo pavor. A televisão permanecia ligada mas o som e as imagens desfilavam solitários, sem o espectador que, há minutos, ali estava. A cadeira que ocupava, agora vazia e caída para trás, tinha ao seu redor as peças misturadas aos talheres, aos cacos e outros restos que vieram de cima da mesa, arrastados com a toalha azul e branca.

A falta que repentinamente sentiu do marido tirou Jane da inação que a dominava e levou-a a atravessar o cômodo e a agarrar a jovem pelos braços e sacudi-la, num frêmito de desespero.

- O que houve aqui? Onde está Henri? Onde está Henri? - Mas ela nada respondeu. Limitou-se a encarar a mulher, cravando-lhe um olhar pavoroso cujas pupilas, calcinadas, dardejavam o inenarrável. Um calor excessivo e anormal dominou o ambiente. Os braços negros começaram de tal forma a esquentar que queimaram as mãos de Jane. Súbito e sobressaltada ela soltou-a e correu a casa. - Henri! Henri! Onde está você?

Vasculhou todos os aposentos e subiu ao segundo piso, entrou no quarto e olhou ao redor. Nenhum indício de que ele tivesse ali retornado. Sobre a cama do casal, a mesma colcha amarela de algodão permanecia intacta, com os travesseiros na mesma posição de costume. O roupão azul marinho nas costas da cadeira ao lado da janela e, por baixo, o par de chinelos, eram sinais habituais de sua rotina após o banho. Ela correu ao banheiro; tudo normal e nenhum sinal de Henri. Retornou ao quarto e olhou pela janela.

A fazenda era de grandes proporções. O quarto do casal, no andar de cima, dava para a parte de trás. Foi o próprio Henri quem preferiu que assim fosse. Teriam, desse modo, um panorama completo, pois a visão frontal que tinham de sua bela propriedade, através da frente ampla e envidraçada da parte térrea , seria completada pelo panorama bucólico e gracioso das planícies e dos vales de Springfield. Vista ao anoitecer ou nas primeiras horas do crepúsculo da sacada do quarto, a paisagem do horizonte, quando limpo e estrelado, era sempre calmante e uma fonte natural de energia e inspiração.

Jane buscou com os olhos, sobre o verde da mata rasteira e uniforme, algum sinal da passagem recente de alguém a pé ou a cavalo, mas não conseguiu ver nada. Mais ao longe, onde passava uma estrada de terra abandonada, a vegetação ao longo do caminho apresentou-se-lhe rasteira e abaixo do crescimento normal. Estranhou a princípio e, olhando melhor, percebeu que não era só isso. Em muitos trechos, não havia praticamente vegetação alguma. Em outros, era como se todo o verde tivesse sido completamente arrancado. E, paralelamente àquela estrada, era como se uma outra houvesse sido recentemente construída. Poucos passavam por ali. Há anos esquecida, a via só era utilizada nos casos de algum viajante desembocar daquele lado, após cruzar a ponte do rio. Quando percebiam, já estavam nela e sem outra opção a não ser retornar pelo mesmo caminho da ponte. Não foram poucas as vezes em que empregados da fazenda, ou mesmo seus patrões, precisaram orientar forasteiros de outras plagas, que não tinham por objetivo aquela propriedade, a retornarem dali mesmo, poupando tempo e energia.

Incontida sensação de medo e insegurança voltou a apossar-se do espírito de Jane. Tornou a descer correndo as escadas. Enquanto o fazia, pensou em dirigir-se ao campo de soja mas, olhando o relógio, percebeu que de nada adiantaria. Os empregados nunca chegavam antes das oito e ainda faltavam vinte minutos. Indo agora só encontraria o silêncio de instrumentos imóveis e em seus lugares de sempre; pás, baldes e enxadas a espera de mais um dia. Mudas, sementeiras, folhas verdes, raízes e plantas que, se veem, não testemunham. Porém, ao chegar à sala da horrível cena, Pat não mais ali se encontrava.

II

O panorama de Springfield, esse pequeno povoado de Missouri, bem no centro dos Estados Unidos, nada deixa a desejar quanto ao belo que nos encanta. Pequenos cursos d'água cruzam as fazendas de soja, milho e algodão. Afastando-se à cavalo das margens de um desses riachos, em direção às grandes planícies que correspondem à bacia do Mississippi-Missouri, têm-se, descortinadas, vastas terras, de tonalidade verde a predominar, pontilhadas por ricas paisagens agrícolas. As residências, algumas tão distantes entre si que não se consegue ver, foram arquitetadas e construídas com o rigor do estilo próprio; de tão distintas umas das outras, denotando arranjo pré-combinado, a não quebrar pela monotonia o interesse do visitante. Aqui e acolá uma árvore cresce e, sob uma luz de crepúsculo, a planura se faz luxuosa como um parque civilizado pela vegetação pequena.

Patrick fazia este percurso pela primeira vez em sua vida. Procedía de Jefferson City. Viajara à noite e estava, por isso, cansado e de mal humor. Seu cavalo marrom já começava a mostrar os conhecidos sinais de esgotamento. Ele alisava o animal no pescoço encardido de lama e mal cheiroso, prometendo-lhe para muito breve uma parada; desta vez com muita água, boa comida e, o que ele mais parecia querer, um verdadeiro descanso. Enquanto distraía-se no reconhecimento e apreciação do lugar, deixando ao seu condutor o mínimo dos sacrifícios e embalado em sua marcha obediente, Patrick entregava-se a um sério questionamento. Perguntava-se o por quê de ter sido ele o encarregado de desvendar o mistério de Springfield. No fundo, sabia que vinte e cinco anos de investigação policial e uma merecida saleta em sua delegacia, repleta de medalhas e condecorações, eram mais do que um motivo justo para encontrar-se agora diante de tal missão.

O pensamento na salinha particular fez com que, num repente, levasse a mão ao bolso da calça na ânsia de certificar-se de que ali estava, bem segura, a chave do seu cadeado. A rapidez do gesto fez o animal piscar repetidamente, assustado. Sacudiu a cabeça e novamente endireitou-a, cheio de insatisfação com o desgaste inútil de sua reserva de energia. Patrick, meio que abobalhado, admirava, balançando firme em fino cordão prateado, o símbolo de sua glória, o mapa do seu tesouro particular. O cavalo, sabedor agora do desfecho daquela atitude, assossegou-se, mas não sem antes ver a mesma mão de volta ao bolso, guardando a chave.

Haviam ultrapassado vasto trecho agrícola, já afastado do vale habitável. Seguindo em linha reta, chegaram à beira de um rio; barulhento naquela altura devido à força das águas. Recentemente houve chuva e o solo estava úmido e lamacento. Os detritos nas águas chocavam-se uns contra os outros. O vento frio da manhã doía na pele. Uma árvore tombada, obrigando o animal a um salto quase mortal, era a principal indicação da recente tempestade. A refrega deixou galhos secos e folhas mortas entre outras vítimas da natureza, naturalmente transformada. A visão à direita de Patrick era tomada pela alta plantação. Quinhentos metros à frente, ele entrou por este lado, na pequena e estreita rua, a primeira que surgiu ao fim da área cultivada. Novo sinal de vida começou a surgir aos poucos. Primeiro, um cão todo preto, a perseguir as patas do seu cavalo, logo desistia do intento ao ser gritado pela provável dona, uma mulher meio gorda que apareceu no portão de madeira de exuberante mansão colonial com fachada de alpendre. Denunciou, pela melhor residência dentre as poucas daquela rua e pelas roupas sujas de terra e um pequeno refugo de mato sobre os cabelos caídos, numa expressão de realização, ser a proprietária do invejável campo de milho e soja que ficara para trás.

Ao fim da via, uma estrada. Mas Patrick não tinha que seguir por ela. Percebeu com alívio que, de onde se encontrava, já podia avistar, com clareza, o que seria o fim da viagem tão cansativa. Sua visão estendeu-se sobre a ampla área verde à sua frente. Ficava no alto, a uns cinquenta metros além da estrada, totalmente flanqueada por cerca de arame em toras de eucalipto. Patrick sacou do bolso de sua camisa uma fotografia e confirmou a cena. Embora um pouco amarelecida pelo tempo, a imagem mantinha os principais detalhes de quando fora criada, exceto, é evidente, a mudança natural inevitável quando se trata de tomadas da natureza. Com um sorriso de satisfação e alívio, voltou a guardar a fotografia e um leve toque de sua perna na barriga do animal o fez andar novamente. Atravessou a estrada de terra e parou mais uma vez. Á esquerda, o cercado era contínuo e quase não havia acostamento. O sol já alto incidia ali com vigor e não era possível saber, tampouco, onde terminava a proteção do terreno. Ele optou então pela sua direita, onde árvores sombreavam o caminho. Contornou a ilharga do monte e pegou o trecho entre este e as árvores.

Patrick tinha por hábito não comentar a própria idade. Esconder sob imperceptíveis artifícios os bem vividos cinquenta e cinco anos era-lhe não só incômodo mas também muito difícil; ademais convinha-lhe à vaidade. A barba, que durante anos cultivou, cedeu vez a um bigode simples e bem cuidado; até para ingerir líquidos fazia-o com extrema cautela. Não usava perucas mas disfarçava os grisalhos com uma tintura leve. Viam-no assim, mais jovens. Todavia, a preocupação era tal que o não deixava manter-se longe de um espelho por muitas horas, trazia um sempre em seu poder como indispensável acessório. Quanto às rugas, morria com a frustração da derrota para elas. Sentia aí a implacável ação do tempo. Ria pouco porque se convencera de que isto era venenoso para sua estética. O bem estar de uma ação tão simples não combinava, segundo ele, com a transformação da imagem que achava, no seu caso, degradante. Por valorizar demais o externo, preferia manter-se sério. A barriga, volumosa, era outro fator negativo para Patrick, mas a moderação forçada não deixava que crescesse além do anormal. Assim vivia e assim não queria morrer.

III

Logo à frente, deparou com o mesmo rio cujas águas, naquele ponto, pareciam mais calmas e menos carregadas. Notou que passava por dentro da propriedade. Obteve dali a visão quase que total da moradia. Dava de frente para o rio, distante deste não mais do que quarenta ou cinquenta metros. Era toda branca, de frente ampla e pórtico inclinado. A visão lateral de Patrick permitia-lhe, inclusive, contar o número de janelas da parte superior da casa que tinha dois andares: seis na parte da frente e três em um dos lados aquele que lhe era visível. Com a mão sobre os olhos, para facilitar a visão dificultada pelos raios solares, olhou um pouco mais para o alto e viu a sacada a qual se apoiava nos segmentos das pilastras do segundo piso e, por último, a cobertura de um sótão atravessado. Daquela mesma posição via, a uns vinte metros, outra grande obra e soube imediatamente o que era. Tratava-se de uma estufa e, pelos seus conhecimentos de agricultor que fora até os vinte e oito anos às margens do curso superior do Hudson, nos montes Andirondacks, concluiu sua suspeita ao sentir, mesmo de longe, o arrojo da edificação, das mais dispendiosas, onde investe-se fundo na horticultura a fim de ofertar os produtos fora da estação normal de abastecimento. Recorre-se à estruturas metálicas, com teto e paredes de vidro, em caixilhos modulares e dotadas de fornalha interna destinada a aquecer a água que circula em tubulações metálicas; com certeza eram ricos os que ali mandavam.

Ele cruzou uma ponte sustentada por cordas e potentes toras que eliminavam o balanço. Acabava de alcançar a outra margem, leu em tinta azul, os dizeres de uma placa: "FAZENDA DOS WALTERS". Aproximou-se. Sem desmontar, levantou a corda que prendia o imenso portão e entrou, largando-o aberto. Estava agora há poucos metros de obter as primeiras informações sobre o estranho desaparecimento de Henri Walters. Na pacata Springfield havia, como em toda parte, crimes e mortes. Porém, no caso de Mr. Walters, a lei local intrigou-se e dava o fato como insolúvel. Buscou-se todas as probabilidades. Interrogados e investigados foram todos os prováveis envolvidos e não chegaram a um mínimo parecer que levasse a um indício de suspeição para uma busca mais apurada. Há quatro dias do ocorrido, passaram às mãos de Patrick Brown essa difícil tarefa. Ia ele pelo caminho, imbuído do primeiro passo em sua missão: interrogar Jane Walters, a esposa. Olhou melhor e mais de perto a gigantesca estufa enquanto passava agora bem rente a ela. Longa fila de sementeiras de diferentes mudas despertou-lhe lembranças que já se perdiam no tempo. Veio-lhe, como que para afastar a saudade indesejada, uma sensação de realização ao se sentir vitorioso na carreira que escolheu. Desvendar casos complicados para outras delegacias era o seu motivo de maior orgulho. Olhava para as espécies que cresciam ali, naqueles pequenos caixotes e balançava a cabeça como a cumprimentar velhos conhecidos. O local carecia de arrumação. As paredes de vidro estavam embaçadas, mas lá dentro o ambiente parecia outro. Ou o mesmo. As galerias, repletas de plantas, expunham bela variedade e tratamento primoroso. O cavalo quase passa por cima de uma grossa mangueira d'água, enrolada até ao meio, com uma das extremidades caída sobre pequeno canteiro arredondado coberto com flores da estação. Mais quatro iguais àquele, com diferente floração, formavam grande círculo. Eram rosas, orquídeas, duas espécies que ele não soube identificar e, no centro, um pinheiro. Patrick apreciou o bom gosto, apertando os lábios, numa expressão de elogio. Na outra extremidade, outro conjunto semelhante ao primeiro e ainda mais exuberante. A comprida varanda surgiu, imponente, muito bem ornamentada entre aquelas obras. Mrs. Walters, que já o esperava, cumprimentou-o.

- Bom dia, Mr. Brown! Espero que tenha feito uma boa viagem - disse, enquanto fechava a porta pela qual acabara de sair. Patrick, ao responder ao cumprimento, fitou-a nos olhos verdes; não mostrava sinais de que haviam chorado nas últimas horas. Era uma mulher bonita, embora não muito jovem. Calculou que devia passar dos quarenta.

- Correu tudo bem - respondeu agradecendo. Desmontou.

- Haverá problemas se soltá-lo um pouco? - perguntou, alisando o animal, enquanto era autorizado por um sorriso e um sinal negativo de Mrs. Walters. Fez-lhe uma carícia no pelo, verificou os cascos e desatou as correias que prendiam a sela, puxando-a para si. Deu, então, firme palmada no lombo do bicho e este correu em direção ao rio.

- Não sei se posso retribuir o bom dia; como tem passado? - falou, largando os arreios sobre o parapeito da varanda.

- Nada bem, não durmo há dias. Ele é tudo para nós. Não compreendo como pode alguém, simplesmente, desaparecer em Springfield sem deixar uma pista. O que fazem os policiais dessa cidade?

- Temos que conversar, senhora Walters. Para começar, preciso fazer algumas perguntas, se não se importa. - Ele permaneceu na mesma posição, a cofiar o bigode, aguardando o convite para entrar na casa.

- É claro - respondeu. - Entre , por favor.

Virou-se, abrindo a porta. Patrick penetrou na varanda. Seus olhos demoraram-se agora um pouco mais sobre a mulher. Os cabelos loiros e escorridos pendiam-lhe nos ombros torneados. Na antessala, uma pintura tomava meia parede ao lado da porta principal. O quadro era antigo, mas chamava a atenção pela predominância das cores quentes; exibia velha cena peculiar no remoto oeste americano, com a cavalaria rústica cruzando a galope o grande lago, tendo, ao fundo, as montanhas rochosas. Ali mesmo sentaram-se. Patrick deixou cair todo o seu peso sobre uma poltrona tão macia que afundou. A mulher sentou-se no canto oposto em uma cadeira de palha.

- O que quer tomar? - perguntou com decisão como se adivinhasse que ele queria tomar alguma coisa.

- Aceito um café forte, por gentileza. Preciso estar bem desperto; acho que terei que pensar um bocado.

- Só um minuto. - Ela saiu e, em trinta segundos, já estava de volta. Sentou-se novamente. - O que deseja saber? - indagou, ajeitando a alça do vestido vermelho que lhe cobria até os tornozelos.

- Para começar, conte-me o que puder a respeito das amizades do Sr. Walters e de sua rotina também.

As primeiras palavras de Jane fluíram-lhe sem dificuldades. Dava a impressão que se cansara de repetir a mesma coisa a todos que lhe interrogavam sem sucesso. Porém, surpreendeu-se quando Patrick, interrompendo-lhe a salmodia, perguntou: - Senhora Walters, acaso o seu marido vinha, ultimamente, recebendo alguma visita inusitada? - ela corou a esta pergunta.

- O que o Sr. está querendo dizer com isto? - perguntou, repondo sobre o ombro direito a alça do vestido que, teimosamente, caíra-lhe outra vez, desnudando a pele queimada. Ele repensou o que havia dito, mas sem nenhum arrependimento. A reação era mais do que previsível e a tréplica já estava pronta.

- Vou explicar melhor, não se preocupe - disse. Nesse momento, uma jovem negra surgiu trazendo uma bandeja branca de porcelana, ornada de motivos florais alaranjados que contrastavam com o esmalte terra de suas unhas pontiagudas. Ele teve que esticar a mão para retirar a xícara com o café. - A propósito, meu cavalo necessita comer um pouco de ração para enfrentar a longa jornada de volta; vi que possui algum gado e um curral…

- Já está sendo providenciado - disse, mostrando certa impaciência.

- Obrigado. Pois bem, - cruzou as pernas, pondo um dos cotovelos sobre os braços da poltrona - a casa de vocês é a mais afastada de todas. Cavalguei durante horas até chegar aqui. Já dentro dos limites de Springfield, esgotados, eu e meu cavalo, fizemos o último trecho na mais completa morosidade; pude assim observar tudo ao redor. A mais de uma milha ficou a última residência. De lá para cá a paisagem é ampla, quase sem obstáculos, salvo a sua própria casa que está numa pequena elevação. O rio por aqui não é navegável, o que dificulta a aproximação por ele que por sua vez obriga o visitante que vem do sul a contornar imenso milharal para alcançar a ponte de corda ao lado da sua chácara. Pelo relatório que me foi entregue, seu esposo era…é um homem bastante conhecido, mas sem inimigos. Vocês vivem uma união estável e aparentemente feliz há quinze anos. Ele nunca apresentou problemas sérios de saúde em seus quarenta e quatro anos de idade, tampouco indícios de falta de satisfação com o casamento que justificassem um rompimento inesperado. Perda de memória ou perturbação por motivos financeiros também foram descartados. - Tomou um gole do café e continuou: - Tudo isso, a princípio, elimina as possibilidades de um afastamento voluntário de Mr. Walters da convivência dos seus. Quanto a um provável sequestro, as chances são mínimas. Como já disse, não há rotas de fuga e todo e qualquer visitante seria visto, entrando ou saindo. Os seis empregados da fazenda são tão antigos quanto o próprio negócio e não têm mais que responderem ao inquérito. Quando perguntei sobre visita inusitada, estava querendo me referir aos clientes que possuem na propriedade. Pode falar a respeito?

- São visitas de praxe; muito poucas e raras. Em noventa e cinco por cento dos casos, somos nós que vamos até eles.

- Amigos e parentes?

- Só temos um filho; está casado e vive em Cincinnati. Quanto aos amigos, nos visitam com certa regularidade mas, como o senhor já deve ser sabedor, todos já foram investigados.

- Sim, eu sei disso. E é aí que fico preocupado.

- Não compreendo.

Patrick ajeitou-se na cadeira. Descruzou as pernas, tomando o último gole de café e depositou, sobre uma mesinha de vidro, à sua frente, a xícara, completamente vazia. Com a ponta dos dedos, puxou dois minúsculos carrapichos que estiveram grudados na perna direita da calça azul de brim. Com leve piparote, lançou, pela janela aberta atrás de si, os espinhos, que foram cair sobre a grama meio úmida. - Acontece que lido com o crime há mais de vinte anos. Não me limito a procurar bandidos e metê-los na cadeia; vou muito mais longe, como a senhora pode ver - brincou um pouco para relaxar o ambiente. Ela condescendeu com leve sorriso forçado que, mesmo assim, realçou-lhe a beleza do rosto, ora abatido. - Quando as buscas concretas me faltam, recorro ao sobrenatural - acrescentou.

- Como assim?

- Sobrenatural. Não tem "como assim". Tudo o que estiver dissociado do puramente racional passa a ter sentido para as minhas investigações. Talvez, por isso, pensam em mim para solucionar casos incomuns que já ocorreram fora da esfera material.

- Já ocorreram!?

- Sem dúvida, senhora Walters, mas não vem ao caso agora. Por isso quero concentrar-me de certa forma não convencional para os padrões tradicionais da criminologia. - Jane olhou para ele de um jeito também incomum. Achou que podia estar diante de um daqueles detetives neuróticos com mania de Sherlock Holmes. Porém, as informações que conseguiu sobre ele davam conta de alguém cuja reputação era das mais confiáveis.

Patrick tirou do bolso a mesma fotografia, levantou-se e deu três passos até onde a mulher estava. - Vê isso? - disse, estendendo a mão.

- É este lugar. Reconheço pela paisagem. Deve ser muito antiga; como conseguiu?

- Não me pergunte. Foi-me entregue pelo Centro de Pesquisas Arqueológicas de Nashville. De acordo com as descrições divulgadas pela imprensa, fomos informados da existência, aqui, - apontou para o local da foto onde hoje está a casa - de um inexplicável campo energético.

- O que é isso? - ela perguntou ao virar-lhe o retrato, mostrando o canto esquerdo deste com o dedo da outra mão.

- Deve ser deste lado - disse Patrick, esticando o braço para o leste, - a um quarto de milha de onde estamos. Há pouco mais de um século, funcionou ali importante mina subterrânea de carvão mineral que ajudou a sustentar por décadas a economia local. Mas, um acidente inexplicável acabou com tudo. Havia uma lei protetora que não permitia escavações além de determinada profundidade. Todavia, um arrojo de coragem e desobediência causou a descoberta de incontáveis jazidas de diamante a muitos metros abaixo do permitido. Foi o suficiente para desestruturar as camadas de sustentação das galerias nos níveis superiores. Dezenas de mortes ocasionaram o fechamento e o encerramento das atividades. Foi uma tragédia. Muitos corpos ainda se encontram lá embaixo. Anos mais tarde, muitos foram os aventureiros que, apesar de tudo, influenciados por histórias fantásticas e improváveis de outros que haviam conseguido chegar até as jazidas e retornar salvos e abarrotados, decidiram tentar o feito, mas não tiveram a mesma sorte. Aí começaram os desaparecimentos. Tudo ficou, entretanto, sepultado no tempo e na história. Na dúvida, persistiu o medo. Costuma ir àqueles lados? - perguntou, recolhendo a foto e voltando a afundar na poltrona.

- Às vezes passeio por ali à cavalo. Há uma encosta coberta pelo matagal, sobre um platô, ao longo da estrada. Deve ter sido a tal mina. Lembro-me do comentário de um antigo morador de Springfield, já falecido, a respeito desta catástrofe. O senhor tem razão, já faz muito tempo.

- O último registro de desaparecimento no arquivo geral do Missouri foi feito há quarenta e sete anos. Porém, há um detalhe que me chamou a atenção.- Jane endireitou mais uma vez a alça do vestido, agora, a do ombro esquerdo.

- Qual? - perguntou com interesse.

- As circunstâncias que envolveram os dois últimos casos assemelham- se ao de Mr. Walters, ou seja, o fato se deu de forma inexplicável e as testemunhas mais próximas asseguram que a vítima estava em casa e em sua presença minutos antes. Não digo, até por falta de sentido lógico, que exista relação com a mina subterrânea mas, como já sabe, estou propenso a dirigir minhas investigações ao terreno do ilógico ou mesmo do inconcebível, se preciso for.

IV

Embora o concreto e o prático tenham sido obliterados durante aquela primeira visita de Patrick, ele deixou satisfeito a moradia dos Walters. Jane sentira que uma linha de conduta, ao menos diferente, poderia trazer algum resultado prático e mais animador. Afinal, ninguém chegara tão próximo quanto ele, em análises e comparações. A confiança que conquistara o deixou seguro, a ponto de estabelecer uma segunda visita. Propôs a ela que o acompanhasse até o local da entrada da mina, afim de que um estudo, in loco, fosse realizado. Precisava de sua presença para ajudá-lo com alguns instrumentos, assim como lhe mostrar detalhes do caminho. Não foi fácil convencê-la. Contudo, as razões que ele lhe deu foram justas, e a esperança de encontrar o marido falaram mais alto, também. Voltaria em dois dias.

As sombras predominantes na relva, refrescando a tarde de Springfield, animaram Patrick a enfrentar o longo caminho de volta. Chegaria exausto e já ali imaginava a sua cama preparada e a mulher a esperá-lo na varanda, tendo a lua cheia a contemplar o deserto das ruas do bairro onde morava depois das onze da noite. O robe azul claro, os cabelos castanhos recém lavados e o cheiro agradável no pescoço, sobre o corpo saudoso de suas carícias, seriam irresistível convite a um leito amoroso.

Com efeito, aquela noite foi uma das mais bem dormidas que tivera ultimamente. Os carinhos do amor meigo e feminino que marcaram sua chegada, acrescidos ao cansaço que se dissipou no ato, para esquecer o dia no conforto do aconchego horizontal, levaram-no um tardio despertar. Olhou o relógio arredondado no alto da parede em frente à cama; passava das dez. Não acreditou que tivesse dormido tanto. Espreguiçou-se despreocupado, mas a lembrança da obrigação o fez levantar-se incontinenti. Calçou os chinelos, afastou a cortina de renda da parede do quarto que escondia a porta, cruzou um pequeno corredor e foi para o banho. Na cozinha, o som de copos e utensílios sendo transportados e postos sobre a mesa, e um aroma de café fresco, misturado ao cheiro de gordura do bacon, preparado ao seu estilo favorito, chegaram até ele, acelerando-lhe o banho e a fome.

À mesa, vasculhou o jornal à procura de notícias sobre o caso de Springfield. Encontrou, junto a uma fotografia, as seguintes linhas:

"Espera-se para muito breve novos pormenores que possam trazer alguma luz a este intrincado acontecimento. Como já foi noticiado, Henri Walters desapareceu misteriosamente dentro de sua própria casa, quase embaixo dos olhos de sua esposa Jane. Segundo relato da própria Mrs. Walters, ela deu pôr sua falta ao retornar da cozinha para a sala, de onde tinha saído para pegar no forno umas panquecas que acabara de assar. Na sala, só ficara ele e mais ninguém. Como sempre fazia, tomava o breakfast, assistindo na TV à retrospectiva do baseball do dia anterior, seu esporte favorito. Pat, a empregada, encontrava-se, segundo ela própria, em seu quarto. Não havia dormido muito bem e sentia-se indisposta. Pedira à patroa que a deixasse ali, descansando até mais tarde, no que foi atendida; disse que tinha muita dor de cabeça. Isto foi por volta das sete horas da manhã. Às sete e trinta, ocorreu o incidente, em meio a dois minutos de afastamento de Jane Walters. Os exames clínicos posteriores acusaram em Jane os efeitos de uma crise nervosa, provocada pelo choque da perda. Aproveitou-se a ocasião para submeter a empregada também a uma avaliação do seu estado. Seus sintomas eram puramente físicos. Apresentava os olhos inchados sem uma causa aparente e queixava-se de cansaço e mal-estar. Há dias do ocorrido, as autoridades policiais de Springfield, desesperançadas, aceitaram a nossa participação nas buscas e investigações. Jefferson City enviou Patrick Brown, inspetor chefe daquela jurisdição. Seus métodos peculiares e um currículo vitorioso prometem novas esperanças."

Ao lado do texto estava a foto da vítima e, em letras menores, os dizeres: "Henri Walters é agricultor de sucesso e sua fazenda está entre as mais modernas e bem aparelhadas do estado". Patrick fechou o jornal e olhou as horas em seu relógio de pulso. Espetou no garfo a última fatia do bacon e levou-a à boca. Com a mão mesmo, pegou uma outra, que ele não vira e que quase caía do prato, engolindo-a com mais um trago do café. Beijou a mulher e saiu, tendo o jornal cheio de dobras metido no bolso traseiro das calças. Montou e seguiu para a Inspetoria de Polícia. No caminho, pelas ruas arborizadas que tão bem conhecia, parecia não dar muita atenção a nada, exceto à própria introspeção. As belas residências ajardinadas passavam por ele em ritmo de fúria e desprezo. O galope contínuo e um tanto acelerado o mantinha absorto. Ao entrar na inspetoria, cumprimentou um funcionário que batia alguma coisa numa grande e antiga Remington e entrou para a sua sala, sentando-se à mesa de trabalho.

Uma ideia pairava em sua mente. Precisava fazer certas comparações a fim de desvendar suspeitas que, se justificadas, abririam ante si um novo leque de possibilidades, mas, para isso, precisava ir até Nashville e recolher, no Centro de Pesquisas Arqueológicas, o material necessário. Na impossibilidade de ir ele próprio, teve que enviar pessoa experiente e de confiança. Pegou no telefone preto a sua frente e um contato de oito minutos deixou acertada a visita. Queria ver fotos, mapas e relatórios. Só aí poderia lançar fundamentos às próprias conjecturas.

No dia seguinte pela manhã, tinha Patrick em seu poder não somente o que ele havia pedido, mas algo mais. Três exemplares de diferentes periódicos traziam informações que precisavam ser analisadas. Um deles chamou-lhe a atenção por uma manchete de segunda página que expunha, em negrito, estes dizeres: "HENRI WALTERS POSSUI CONTAS BANCÁRIAS NO EXTERIOR".

Ele abriu o jornal na página indicada e leu a notícia:

"Recentes investigações dão conta de que o empresário agrícola Henri Walters, desaparecido misteriosamente no último dia 15, quando em sua residência, pode ter sido vítima de um sequestro. Embora as provas e os testemunhos não apontem para uma dedução totalmente conclusiva, não há, até o momento, pela apreciação do laudo, melhor hipótese do que esta. Henri é um dos homens mais ricos de Springfield e do Missouri. Avalia-se sua fortuna pessoal em vinte milhões de dólares. Em declaração recente, feita à imprensa, confirmou que mantém contas em diferentes bancos privados da Europa e também do Japão. Perguntado sobre o por quê desta escolha, disse ser uma opção pessoal, já que não existe impedimento legal. Quanto a isso, afirmou que utiliza diversos equipamentos importados e segue os conselhos de investidores estrangeiros. Segundo ele, isso facilita bastante as suas transações.

A fazenda dos Walters foi, no ano passado, tema de notícia nos principais jornais do país. Èmile Rosieux, rico empresário francês há vinte e cinco anos naturalizado americano e bastante influente por seus famosos investimentos imobiliários, pleiteou, em juízo, a compra daquela propriedade. Alegou a urgente demanda da população de Springfield por novas áreas urbanas que trariam mais conforto e desenvolvimento àquela região. Um plebiscito popular, porém, deu ganho de causa aos Walters o que, supõe-se, irritou Rosieux que não se deu por vencido. Relato da senhora Jane e de alguns empregados confirmam algumas idas do empresário francês à fazenda nas últimas semanas. A imprensa o tem procurado mas, segundo sua assessoria, ele encontra-se em viagem pela Europa.

Novas buscas e investigações foram realizadas durante o dia de ontem à procura de outras pistas. Seguindo deduções do Inspetor Chefe da delegacia principal de Jefferson City, Patrick Brown, tiradas de seu relatório, policiais de Springfield vasculharam mais uma vez todos os arredores da propriedade. Nada de anormal foi encontrado a não serem vestígios de mata destruída ao longo de uma estrada desativada há muitas décadas. Algumas pegadas foram fotografadas e aguarda-se o resultado dos exames que estão sendo realizados. Porém, existe quase a certeza de que se trata de algum animal, possivelmente um bípede, que tenha escapulido do dono e andado por ali. São confusas as pegadas, que desaparecem depois de um certo trecho sem deixar vestígios. Um menino de onze anos, que passava pelo local no momento dos trabalhos, foi interrogado. Disse nada saber e, perguntado sobre o que fazia em local tão ermo, ele nada respondeu, mas notaram que em sua mão havia uma pedra. Os homens a tomaram e constataram ser um diamante bruto, porém, de incomum aparência. Pediram-na ao menino para estudos ao que ele não se importou. O mineral encontra-se em Nashville para ser analisado."

Patrick fechou o jornal e ficou em silêncio, pensativo. Passou a examinar o material que tinha sobre a mesa; pegou um álbum de fotografias. Numa delas, apareciam homens escavando enorme área. A época parecia ser a de inícios do século dezenove. De um lado, algumas amostras de ossadas de diferentes tamanhos. Ele virou a foto e leu, escrito em letras de máquina: "PESQUISA EM CAMADAS FOSSILIZADAS NOS TERRENOS DO CARBONÍFERO PARA A DESCOBERTA DE CARVÕES MINERAIS". Comparou com outras. Havia uma, cujo local parecia-lhe ser o mesmo onde está agora a casa dos Walters; mostrava o início da construção de uma mina e, atrás, a frase: "PROJETO ABANDONADO. DESCOBERTA DE CAMPO ENERGÉTICO DESCONHECIDO". Outra foto exibia a parte externa da mina verdadeira em pleno desenvolvimento. Via-se enorme pilha de material estéril num dos cantos, os trabalhadores em atividade no pátio e a torre de extração, denotando pleno funcionamento.

Manuseando as páginas, Patrick seguia olhando agora os retratos das vítimas fatais e dos desaparecidos nos acidentes que ali ocorreram. Na última foto, quando já ia fechar o álbum, parou de repente, ao ver o retrato de uma mulher. Achou isso estranho; uma mulher numa mina de carvão? Seria um fato deveras improvável, a julgar pela época: há mais de um século. Largou o álbum e passou a estudar um enorme livro antigo que tinha diante de si sobre a mesa. Eram folhas castigadas pela ação do tempo, mas ainda em muito bom estado de conservação que ele havia requisitado ao arquivo geral da cidade. Todos os documentos referentes aos trabalhos da mina de Springfield, assim como todas as ocorrências possíveis e passíveis de terem sido registradas, encontravam-se ali, em suas mãos. Abriu a capa dura e esverdeada e passou a examiná-lo.

Deixou para trás, todavia, as páginas dos longos relatórios que não lhe interessavam naquele momento e foi direto ao que procurava. Encontrou, na segunda metade do volume, recortes de jornais da época, os quais estavam anexados à página em branco. Havia várias reportagens com fotos. Em uma delas, reconheceu a mulher que acabara de ver no álbum. Lendo o texto, soube tratar-se de uma, entre as várias pessoas que se aventuraram, muitos anos depois do desastre da mina, a explorar o seu interior em busca de pedras preciosas. Mais à frente, noutro recorte, já muito mais atual que os outros, analisou uma nota sobre desaparecidos em Springfield. Quase não havia menção da antiga mina por terem-se passado muitas décadas. Lia-se, ao contrário, uma frase do jornalista, que destacava a possibilidade dos desaparecimentos terem a ver com aquele local de trabalho. Acrescentava, como razão para a sua inferência, o fator tempo, que fez esconder todas as entradas da encosta e torná-las inacessíveis pela ação natural das erosões. Contudo, uma observação, no espaço em branco da página, explicava o motivo de expor no livro aquele comunicado; dizia que os desaparecimentos sempre foram muito raros em Springfield antes da existência da mina e mesmo depois dela, portanto, uma factível correlação poderia existir.

Em seguida, Patrick comparou, nos registros policiais, os três últimos casos de desaparecimento com os três últimos mencionados no livro. Eram os mesmos: dois homens e uma mulher. Todos jovens, com menos de quarenta anos. Possuíam olhos verdes, tinham aparência forte e saudável. De acordo com o texto, haviam desaparecido quase debaixo dos olhos das pessoas que estavam por perto, porém, sem que ninguém percebesse o ocorrido ou ouvisse qualquer som estranho. Pegou outras fotos das mesmas vítimas. Em duas delas, descobriu detalhes que o deixaram atônito. Eram tomadas feitas minutos após a ocorrência, cujo ambiente apresentava ainda sinais, alguns não muito perceptíveis, das consequências do acontecimento. Olhando bem para um canto da fotografia, Patrick deixou escapar uma interjeição de admiração e espanto. Ficou de tal modo estupefato que não ouviu o toque do telefone, senão quando da terceira vez que soou. Do outro lado uma voz que ele não custou a reconhecer; era Jane Walters.

Ele ia explicar o por quê de não ter ido aquele dia, por estar reunindo algumas informações valiosas sobre o caso. Mal teve tempo de abrir a boca; a mulher, com a voz totalmente embargada, como que pelo choque de um susto recente, interrompeu-o. - Aconteceu algo horrível! Venha para cá imediatamente.

- O que houve?

- É Pat. Ela está muito mal. Pelos sintomas acredito que tenha relação com o que aconteceu com Henri.

- Chame-a. Deixe-me falar com ela.

- Impossível. Está desacordada e com uma febre estranha e tão alta que a faz delirar.

- O que diz?

- Não compreendo, está confuso. Venha, por favor!

- Tudo bem, acalme-se. Chame apenas um médico e ninguém mais. Estou indo agora mesmo. - desligou. Reuniu o material, guardou uma parte e, a outra, colocou numa maleta preta de couro e saiu com ela, não sem antes telefonar para casa, comunicando o imprevisto.

V

Era começo de uma tarde muito ensolarada quando Patrick encostou com seu cavalo junto à varanda da residência de Jane Walters. A porta da frente encontrava-se entreaberta. Ele entrou, atravessou a antessala e penetrou em um quarto com uma decoração simples, mas muito bem arrumado. Ao lado da cama havia uma poltrona e na outra extremidade, encostada à janela, uma penteadeira recheada de perfumes. Sobre a mesinha de cabeceira havia um copo com água pela metade, ao lado de uma caixa de comprimidos. Pat dormia. Sentada à beira da cama, Jane sentia-lhe o pulso, quando Patrick aproximou-se. O aspecto da jovem era assustador. Possuía algo de hermético e incompreensível aos padrões comuns de análise, que costumam apresentar os doentes. A expressão era insólita e chocava à primeira vista. Os olhos, profundamente cravados nas órbitas e ao mesmo tempo inchados, estavam sombreados de um círculo verde e era, de fato, um verde- montanha com tons levemente azulados. A boca ligeiramente aberta, parecia esforçar-se para dizer qualquer coisa, mas o torpor, talvez causado pela medicação, a impedia. Porém, o que mais impressionou Patrick, e o fez sentir-se seguro quanto ao caminho de suas investigações, foram duas manifestações advindas do corpo de Pat, as quais foram-lhe percebidas assim que ele penetrou no aposento. Uma era a altíssima temperatura que ali fazia sem nenhum sistema de aquecimento ativo dentro da casa e em total contraste com a situação exterior. Ele confirmou sua dedução ao por o dorso da mão sobre a testa da enferma e constatar-lhe o altíssimo grau de calor, segundo Jane, insuportável a qualquer mortal momentos antes daquela horrível prostração em que caíra. O outro efeito, também já agora em menor grau, fazia aparecer e sumir muito rapidamente do corpo inteiro de Pat um brilho, um clarão pálido e repentino, agora de um verde muito escuro, que é a combinação deste com o preto, e que lhe fulgia assustadoramente a aparência. Durava décimos de segundo e desaparecia. Surgia-lhe parcialmente, primeiro na cabeça e, em intervalos variáveis, cintilava sobre as outras partes do corpo.

Apesar do seu estado grave e preocupante, ela começou a reagir lentamente e, no decorrer daquela tarde, os sintomas foram, um a um, desaparecendo para, no início da noite, abandoná-la de vez. Um sono longo e profundo fê-la recuperar quase que totalmente o bem estar. Patrick partira por volta das seis, prometendo retornar no dia seguinte pela manhã. Conversou longamente com Jane, expondo-lhe as evidências que davam suporte às suas suspeitas. Mostrou-lhe fotografias e documentos. Fez comentários sobre as notícias que saíram nos jornais e deu sua opinião sobre elas. As pessoas de cor negra que apareciam nas fotos, os clarões esverdeados, eram fatores que quase o convenciam da existência de algum efeito sobre humano naquelas ocorrências. As escavações arqueológicas no terreno, abaixo de onde hoje está a mansão dos Walters, que resultaram no projeto de construção ali de uma mina que chegou a ser iniciada e logo depois abandonada, era o ponto que o vinha intrigando.

No dia seguinte, no horário que haviam combinado, ele chegou. Tinha como tarefa primeira e essencial uma conversa com a jovem Pat. Já mais animada, mas ainda repousando em seu quarto, procurava atender, na medida do que permitia o seu estado, os anseios dele e também de Jane.

- Eu não lembro de nada - dizia -, apenas um súbito mal estar, e tudo se apagou.

- Você já ouviu falar em hipnose? - perguntou-lhe Patrick.

- Eu acho que sim. Mas não deve funcionar comigo não, senhor. Sou muito medrosa; sim, tenho muito medo. - Com um pouco de insistência, mas muita sutileza, conseguiu convencê-la a se deixar hipnotizar . Acomodou-a na poltrona e, fazendo-a descansar, com a cabeça para trás, sobre duas almofadas redondas e avermelhadas, fez com que entrasse em total estado de relaxamento induzido por ele, que começou em seguida. Os poucos conhecimentos que possuía desta técnica misteriosa, adquiridos em pesquisas que fizera durante seus estudos universitários em Kansas City, foram de grande valia, mas somente até certo ponto. Dali em diante, as reações da jovem em transe passaram a ser preocupantes. Agia como se estivesse vendo à sua frente alguém ou alguma coisa que a fazia gritar e contrair-se de modo assustador. Os olhos negros começaram a esverdear-se, emitindo um brilho inexplicável e pavoroso. Temendo alguma consequência trágica, Jane pediu-lhe que interrompesse imediatamente a sessão. Patrick, no entanto, falou concentrada e decididamente.

- Espere um pouco. Olhe, parece que está querendo nos mostrar alguma coisa. - Seu olhar incerto, que antes vagueava pelo ambiente do quarto sem se fixar em parte alguma, de repente, ao transformar-se, caiu sobre um único ponto e ali ficou, magnetizado. Parecia que alguma atração dominava-a por completo, imobilizando-a; algo que transcendia mesmo a compreensão de Patrick, que julgava tê-la sob seu poder. Numa tentativa persistente e frenética ele conseguiu trazê-la de volta, mas o esforço fê-la completamente exausta e, quando mal voltou a si, deixou-se descansar sobre a poltrona, ali ficando até sentir-se recuperada. - Ajude-me a levantar esta cama - disse ele para Jane. - vejamos o que há ali embaixo.

A cama em que Pat dormia era toda em estrutura de ferro e, portanto, bastante pesada. Muito alta, deixava um vão considerável entre ela e o chão. Este não era de piso vitrificado como o da maioria dos cômodos da casa, mas de madeira cortada e trabalhada em formatos retangulares diretamente sobre o solo. Uma colcha de casal de linho cobria-a totalmente, e os folhos roçagavam, com suas belas estampas de pássaros, o assoalho liso e esbranquiçado. Quando Patrick e Jane conseguiram, finalmente, erguê-la e arrastá-la, não puderam dominar o espanto e o gesto de estupefação. Havia, na direção da cabeceira, onde termina a parede e inicia-se o solo, um enorme buraco; na verdade, um túnel gigantesco. As proporções beiravam em torno de dois metros de diâmetro. Um arrepio gelado e pavoroso passou pela espinha de Jane Walters ao ver aquilo. Patrick abaixou-se para olhar a profundidade e ficou alarmado ao sentir a imprecisão de qualquer cálculo. Porém, percebeu que, muito longe, até onde conseguia visualizar com a ajuda de uma lanterna e onde o túnel fazia uma curva, um brilho, o tal brilho esverdeado, cintilava de forma tímida mas ininterrupta. Todavia, ao desligar o flash, o clarão voltava a crescer com todo o vigor.

- Meus Deus! O que é isso? - exclamou Jane, abaixando-se ao lado dele e olhando na direção do foco luminoso. Patrick desligou a luz da lanterna e levantou-se rapidamente e decidido.

- Onde fica o telefone?

- O que vai fazer?

- Temos trabalho pela frente. Consiga dois ou três homens entre os seus funcionários; precisamos fechar imediatamente esta passagem e, se minhas suspeitas estiverem certas, este caminho leva até a mina de carvão e é para lá que eu, você e Pat iremos.

- O doutor deve estar é brincando! Querer que eu entre neste buraco que tá me assustando só de eu olhar pra ele. Não faço isso nem morta! Também, não durmo nunca mais nessa cama - era a voz da empregada atrás deles na poltrona.

- Não se preocupe, Pat. Ninguém vai passar por aí - disse Patrick, meio que sorridente, tranquilizando-a. Jane sinalizou da porta com um telefone; tinha acabado de chamar dois empregados que não deveriam tardar em aparecer. Patrick foi até o aparelho e ficou nele um bom tempo. Ela acompanhou-lhe em toda a conversa com o delegado distrital de Springfield, em que pedia o reforço de um ajudante de polícia, uma charrete e dois carregadores, entre outras coisas.

VI

Decorridas duas horas, um magnífico trabalho de concretagem e tamponamento havia sido executado por dois hábeis empregados de Jane. Isolava totalmente aquela passagem misteriosa. Em seguida, chegava a ajuda que havia sido requisitada. Uma charrete azul clara puxada por dois cavalos, brancos e saudáveis, conduzida por um senhor de certa idade em trajes simples de camponês, exibindo uma barba grande e grisalha. Protegia-se do sol, que era forte, com mero chapéu de palha. Havia no banco atrás de si uma espécie de arca pequena com cadeado. Devia ter meio metro de comprimento por quarenta centímetros de altura. Aos pés desta, uma caixa menor, preta, com alça de couro. Por último, montados em cavalos, vinham o ajudante policial e dois homens fortes, um branco e um moreno, que eram os carregadores. Partiram imediatamente.

Contornaram a fazenda em sentido contrário ao do rio e pegaram a estrada abandonada. A certa altura do caminho, Jane, que ia ao lado de Pat (que só a muito custo aceitou acompanhá-los) no carro, agora atrás dos outros, atendeu à solicitação de Patrick que precisava falar-lhe. Ela trocou de condução com o ajudante de polícia que foi sentar-se ao lado da jovem na charrete. A marcha era a mais lenta possível a fim de que pudessem observar melhor cada trecho do caminho. Neste momento, passavam pelo local das estranhas pegadas.

- Aqui estão outras pistas que corroboram a minha tese.

- Que tese? - perguntou Jane, muito curiosa.

- Os exames não conseguiram identificar a origem destas pegadas, mas eu descobri o que são. Vem de um ser desconhecido por nossa civilização.

- Você quer dizer um monstro?

- Ainda não tenho certeza, mas é muito grande. Você conhece canguru?

- Canguru?! É claro que conheço, mas não há deles por aqui - admirou-se Jane.

- Eu sei que não há. Apenas quis dar um exemplo. Refiro-me aos marsupiais. Houve uma era geológica denominada mesozóica, caracterizada pela predominância e variedade dos répteis e algumas espécies de mamíferos. Nela, a vida foi marcada pelo desenvolvimento de certas espécies que, em seguida, desapareceram abruptamente. Começou há 225 milhões de anos e terminou há 65 milhões de anos. O último período desta era, também chamada secundária, denominou-se cretáceo; durou de 70 a 80 milhões de anos e compreende os terrenos formados nesse período. Acontece que, dentre os mamíferos daquele tempo, apenas os marsupiais e os insetívoros persistem até hoje, enquanto outras ordens extinguiram-se.

- Está querendo me dizer que meu marido pode ter sido levado por um marsupial, um canguru?

- Você disse-o bem, pode ter sido. Contudo, não quero me precipitar. Mas não falo de um animal comum, refiro-me a um tipo gigantesco e pré-histórico - disse Patrick, olhando-a muito sério dentro dos olhos. - Esqueceu-se do túnel? - prosseguiu. - Saiba que estamos passando por cima dele neste momento. - Ela olhou instintivamente para o chão, assustada, e fez menção de desviar seu cavalo para o lado. - Não se preocupe, não sei exatamente onde está, mas não há problema. Se eu estiver certo, o animal, se é que podemos chamá-lo assim, não suporta luz por muito tempo; por isso utiliza o diamante.

- Diamante!?

- Sem dúvida. Entre as variedades alotrópicas do carbono, as cristalizadas são as mais bem definidas, como o diamante, pôr exemplo. E quando isso ocorre, sempre há desprendimento ou absorção do calor.

- Então o corpo quente de Pat… e... o brilho verde.

- Muito simples: fotossíntese.

Jane olhou para o mato e outras plantas destruídas ao longo do percurso. Ficou boquiaberta. Estava aterrada. Patrick, como que lhe adivinhando os pensamentos, prosseguiu.

- Sabemos que esse fenômeno, caracterizado pela absorção do carbono e liberação do oxigênio, efetua-se ao nível dos órgãos verdes das plantas, principalmente nas folhas. A clorofila transforma diretamente a energia luminosa em energia química. Acredito que deva existir um outro mecanismo de fotossíntese que permite às plantas assimilar completamente o CO² da atmosfera interna do vegetal, como estas gramíneas que vemos aqui, por exemplo. Alimentando-se destas plantas, a criatura consegue, por algum processo alotrópico existente em seu organismo, cristalizar carvões minerais que são, na verdade, o alimento principal e, o mais impressionante, expeli-los em forma de diamantes. Isto lhe dá condições de suportar, por algum tempo, a luz do dia.

- Só não compreendo como pode essa coisa existir nos dias de hoje.

- Não existe. Ou melhor, deixe-me explicar. O fim do cretáceo ficou marcado com a extinção de diversos grupos que haviam se desenvolvido até quase o fim do período; os dinossauros, por exemplo. Só que, por um processo qualquer de química orgânica inconcebível, este fóssil conseguiu combinar o carbono com algum elemento presente na constituição de outros organismos animais. Não sei ao certo, qualquer espécie de carbonatação, pôr exemplo. - Patrick calou-se por alguns momentos enquanto percebia em Jane um ar absorto. - Sei o que deve estar pensando - arriscou -, que Henri esteja morto.

- Seria possível a esta altura conceber o contrário?

- Tenho minhas dúvidas, mas quero acreditar que sim. Que este animal não seja carnívoro já quase posso garantir. Por outro lado, porém, a fera é gigantesca; calculo não menos do que cinco metros de comprimento. Quando digo comprimento, refiro-me a sua passagem pelo túnel, por exemplo, a qual faz de forma agachada. Quanto aos outros movimentos, compara-se a qualquer marsupial. Lembra-se das semelhanças que constatei entre as vítimas? A juventude saudável e os olhos verdes são dois fatores de grande influência. A cor dos olhos dessas pessoas dão à criatura uma espécie de…como vou dizer… "segurança" para a sua ação. Do mineral carbonizado mantém conservada a sua existência fóssil e, através da luz verde, sente-se, digamos…protegido. Todavia, por não ser carnívoro, não destroi suas vítimas, pelo contrário, precisa delas.

- Deve estar brincando! - surpreendeu-se Jane.

- Gostaria que estivesse; porém nunca falei tão sério. Sabemos que os carboidratos são um fator energético de primeira importância para o organismo e um dos componentes da matéria viva, tendo o carbono como um de seus elementos. Esse ser, na verdade - não saberia em que reino situá-lo, no animal, no mineral ou na mistura desses dois, o que seria o mais provável - para conseguir parte de sua energia, utiliza, de suas vítimas, os carboidratos. Não me pergunte como o faz. Só sei, e espero que esteja certo em minhas deduções, que não as mata. Outros fatores, como o calor ou a falta de oxigênio, poderiam levá-las à morte, mas não a falta de alimentos. Isto porque, por um processo osmótico que não saberia definir, substâncias vitais são repassadas de um organismo ao outro.

- Como faz isso? - perguntou Jane assustada.

- Isto é o que vamos tentar descobrir.

VII

Tendo já percorrido um longo trecho do caminho, encontravam-se agora a menos de meia milha de uma encosta que era o ponto limite de um platô que se via a esquerda. Patrick fez com que todos parassem. Queria analisar melhor onde estavam. O chão, dali em diante, era quase todo em rocha calcária, a se perder na continuidade da estrada que ia em direção ao centro da planície. Retomaram a caminhada, porém, desviando o rumo e seguindo no sentido da encosta. Não haviam andado cinquenta metros quando, uma transformação e um susto paralisou-os sem que tivessem tempo sequer para sacar as armas e reagir. Os olhos de Pat tomaram aquele terrível aspecto já conhecido ao se hipnotizarem diante do enorme buraco a uns oito metros do veículo. A criatura, ali surgida de medonha profundeza, e aureolada da mais indescritível luminosidade, emitia uma ordem. Em uma ação tão rápida quanto impensável, Pat agarrou com ambas as mãos o carregador ao seu lado, cujo verdor dos olhos era não mais que medo e horror. Com a facilidade de quem se desfaz de simples casca de banana indesejável, lançando-a em uma lata de lixo, ela atirou o coitado, que foi cair e desaparecer no marsúpio da fera, cuja bolsa fechou-se imediatamente. Em passos para trás, sumiu dentro do enorme túnel, deixando no ar os ecos dos tiros disparados por Patrick e seu ajudante.

Jane, chorando desesperada, tentou descer do cavalo. Uma das sandálias brancas que calçava desprendeu-se-lhe do pé ao ter a fivela arrebentada no choque com as pedras. Patrick apeou-se a fim de ajudá-la mas ela correu para a charrete. Ao tentar subir, viu que um dos pés, o direito, sangrava e percebeu a dor. Ele auxiliou-a ao mesmo tempo em que esticava a outra mão para segurar a sandália que o policial lhe atirava. Pat passava pela fase do choque que a deixaria prostrada por algum tempo. Tentaram dar-lhe um pouco de água de um cantil mas sem sucesso. Acomodaram-na então no veículo. Tinha o corpo e os membros entorpecidos.

- Leve-a para casa, deixe que cuidemos do resto. - Patrick não conseguiu convencer Jane que, pôr sua vez, não aceitou os seus conselhos. Ela ordenou ao homem de barba e chapéu de palha que seguisse em frente, com todo o cuidado.

Patrick, já em seu cavalo, ia à frente de todos, a mais ou menos vinte metros de distância. Alcançaram o platô e chega am à encosta. Num estudo que fez das rochas, intuiu o local onde poderia ter sido uma das entradas da mina. Descobriu em seguida mais dois possíveis acessos. Sinalizou para os homens, que foram até o veículo e desembarcaram as caixas. Após um exaustivo trabalho de três horas de escavação, tendo deixado de lado as outras possibilidades, expuseram o que, na verdade, era a entrada principal. Porém, teriam mais pela frente; aí as forças físicas, vencidas, deram vez a engenhosidade humana. Mais uma hora de preparo e colocação das dinamites. Voltaram até a sombra onde estavam os outros e cearam. Após a inspeção e ordem de Patrick, ouviu-se a detonação. O estrondo, seguido de rochas e estilhaços cuspidos para todos os lados, descortinou o caminho escuro, misterioso e sinistro que teriam pela frente. Quem possuísse coragem que os acompanhasse, e Jane teve essa coragem; e o faria destemidamente.

Desceram por uma rampa e penetraram nas frentes de lavra, chegando à galeria do topo. Lentamente, iluminando com suas lanternas restos de travessas, escoramentos e pedaços de correias transportadoras e outros objetos que sobreviveram à ação dos anos, alcançaram uma galeria de base. Desceram mais uma rampa; chegaram ao que denotava ter sido um complexo nível de preparação, desmonte e manuseio de recursos da mina. O calor ali reinante estava insuportável; todos suavam em profusão. Patrick percebeu o pilar de sustentação do poço ainda totalmente intacto mas cheio de rachaduras, e só seguro graças ao capitel que o encimava. Os skips transportadores mostravam-se partidos e completamente inutilizados pelas rochas que vieram iluminando os painéis das vias secundárias. Ele e todos que acompanhavam o foco de sua luz detiveram-se apalermados; filões de diamantes, em sua forma bruta, desfilaram ante os olhares estarrecidos. Em alguns pontos, o minério coriscava incessantemente. Para um dos lados em que pendiam as jazidas surgiu enorme abertura. Parecia uma passagem em forma de arco, cujo perigo Patrick pressentiu de imediato e o fez desligar a lanterna; sinalizou para que os outros fizessem o mesmo. Devia ter de cinco a seis metros de diâmetro. Era em forma de abóbada e assemelhava-se à parte superior da entrada de uma caverna.

Ao aproximarem-se, em sepulcral silêncio, sentiram-se enregelar ao notarem a mesma presença verde, porém, distante. Patrick adiantou-se e chegou à entrada. Viu um inexplicavelmente amplo recinto. Acostumando a visão percebeu, de um lado, um fenômeno inédito de concreção calcária, no qual as estalactites do teto, ao unirem-se às estalagmites do solo, formavam imensas pilastras, cujo gigantismo e forma excediam a qualquer comparação que ele pudesse fazer e, o mais excepcional, na outra metade daquele salão tenebroso, estas formações estavam totalmente interrompidas, como se algo muito forte as tivesse destruído. A luminosidade esverdeada despertou nesse momento toda sua atenção e quando também os outros, que agora olhavam com ele, viram-lhe a origem, não conseguiram conter o espanto. A criatura, a monstruosa criatura, recostada à imensa parede rochosa exibia-lhes o todo do seu pavoroso aspecto. Os olhos dardejavam este verdor quando ela os abria e mirava ao redor; como uma luz horripilante tudo iluminava. A cabeça era pequena e desproporcional em relação ao tamanho do corpo que se aproximava dos cinco metros prefigurados por Patrick, se não mais. Quanto ao resto, tudo se assemelhava aos conhecidos marsupiais. A respiração amedrontava pelo ritmo e pelo barulho ensurdecedor. Nas extremidades das patas posteriores, a mesma luz cintilava. Ao lado, a pouca distância, a abertura de um túnel.

- Temos que encontrar Henri, você o vê? - disse Jane logo atrás; na voz, medo e aflição.

- Só há um meio. Atrair aquela coisa de alguma forma. Vamos jogar com as suas armas que é a luz.

- Olhe! Está se mexendo! - exclamou o outro policial. O bicho levantou-se e deu algumas passadas em direção ao lado oposto ao do túnel; aí agachou-se novamente. Jane soltou um grito de terror, logo sufocado pelas mãos de Patrick. Na frente do monstro e estendido no chão, aparentemente sem sentidos, estava o carregador. A criatura, com as patas, fazia gestos lentos e ritmados sobre o homem como se transmitisse ou recebesse, ou ambas as coisas, algum fluido que lhe era vital. Porém quando, erguendo um pouco mais os membros, ela deixou à vista outro corpo, o de Henri, o terror de Jane não pôde desta vez ser sufocado. Parecia vivo, a julgar pela coloração das faces, mas qualquer avaliação do seu estado era imprecisa e não havia tempo para isso. O grito da mulher alertara o animal que se virou e passou a vir na direção deles.

Seria tudo ou nada para os conhecimentos de Patrick. O segundo carregador, que acabara, naquele instante, de colocar todos os cartuchos de dinamite nos locais que lhe havia sido indicado, tirava agora, de uma das caixas, enorme refletor portátil ligado a uma bateria. Ao aproximar-se a criatura, suas pisadelas estrepitosas faziam estremecer tudo ao redor. A um sinal do inspetor, um clarão foi projetado sobre seus olhos que, imediatamente, paralisaram-se e perderam o brilho e a ação; como uma estátua, o bicho ficou imóvel e inofensivo. Estava a menos de três metros da imensa passagem. O ajudante de polícia, e logo em seguida Jane, passaram correndo diante do monstro imobilizado e foram parar próximo do túnel. O estado de Henri chocou a mulher e tinha tudo para tal. Estava vivo, mas quase sete dias ali prostrado deixaram-no irreconhecível. Emagrecera bastante, tinha a respiração fraca e estava todo sujo de terra e detritos de carvão pendiam de sua barba inédita. O estado de inconsciência era preocupante e denotava um coma intermediário entre o leve e o profundo. Estaria salvo, contanto que fosse levado dali para fora o quanto antes.

Do lado de cá, Patrick notou que seu ajudante, ao correr com Jane, esquecera de levar consigo o detonador; ele mesmo teria que fazê-lo e, com todo o cuidado, pegou o artifício com a outra mão, agarrou a fiação condutora e colocou-a num dos ombros. Precisava ser rápido e preciso. Correu e, no meio do caminho, passou-o para o policial que veio ao seu encontro. O carregador, por sua vez, tudo o que tinha a fazer era continuar focalizando firmemente a luz artificial nos olhos da criatura até que Patrick retornasse para auxiliá-lo a atrair o monstro para a armadilha. Mas não foi isso o que fez. Sua ganância falou muito mais alto do que o instinto de salvar a própria pele. Desceu a pesada fonte de luz, mantendo sempre o mesmo foco e ajeitou-a sobre o seu pedestal. Pegou atrás de si uma das caixas vazias e correu, porém, em outra direção. Foi até as paredes rochosas, que ficara logo atrás, e começou a arrancar, dos filões que cintilavam a sua frente, todas as pedras de que era capaz, até encher totalmente o conteúdo da caixa.

Só que não previra a fatalidade que o aguardava. Ao puxar o fio do detonador para chegar até próximo ao túnel do outro lado, o ajudante de Patrick arrastou também, por uns dois metros, o cavalete, em cujos pés se enroscara o fio. A lâmpada não se apagou mas o foco desviou-se totalmente do seu objetivo, o que fez despertar a fera. Para sorte de todos ou quase isso, ela não se voltou, mas seguiu em frente e entrou pela grande abertura, exatamente na hora em que o carregador retornava, aturdido pelo barulho. Patrick ainda tentou fazer alguma coisa para salvar o infeliz mas já era tarde demais. Parou bem antes da entrada ao ver que a luz se apagara totalmente. Um grito pavoroso fê-lo estremecer e correr para juntar-se aos outros ao sentir novamente a predominância daquele verde assustador.

A saída agora era o túnel. Patrick posicionou o detonador. O primeiro dos carregadores, antes sem sentido, via-se agora bem e reanimado; quanto a Henri, teriam que carregá-lo. Ergueram-no com cuidado e enfiaram pela passagem. Quando já estavam bem adiantados, Jane, auxiliando os outros dois na condução do esposo, voltou o olhar e lá vinha Patrick a correr. Atrás de si um estrondo e, lá fora, a céu aberto, Pat e o homem de barba e chapéu de palha, perplexos e aterrados com tamanha explosão. Mas quando voltaram para trás suas cabeças e viram, ao longe, os seus heróis, o sentimento passou a ser bem outro. A alegria da solução de um mistério. Poderiam considerar solucionado o dilema que já não mais existiria. Deviam o agradecimento à coragem e decisão daquele herói de Jefferson City que colocou não uma, mas várias pedras sobre tudo aquilo.

  • Publicado em: 02/06/2006
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