A Garganta da Serpente
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Amor e Preconceito

(Edgard Santos)

Este fato se deu na famosa e prestigiada Universidade de Vanderbilt, em Nashville e envolveu as pessoas que gozavam, na época, de afamado respeito e admiração. Charles Thompson, o reitor, administrava com competência o local mas não conseguia evitar as constantes desavenças entre turmas rivais. Há muito rondava a desconfiança de que o preconceito seria a causa principal dos conflitos. Nas aulas de história era Greg o centro das atenções. Não por ser ele o professor, mas por ser negro, o que gerava um mal estar ainda maior. Se ficasse apenas no dissimulado preconceito a causa desse mal estar, isto seria compreensível, embora nada justificável. Porém, vinha da jovem e atraente Clarice os indisfarçáveis suspiros em favor de Greg. Levando-se em conta ser ele casado e aparentemente feliz, imagine-se as consequências de um caso como esse.

Por força da posição e não menos de seu caráter discreto e reservado, Greg pouco falava e com quase ninguém conversava nas horas do dia em que se dedicava ao trabalho. Ao entrar ou sair das dependências da escola, procedia à rotina de sempre. Estacionava seu belo Jaguar sempre na mesma vaga do amplo pátio, após passar pelo portão principal e contornar o caminho sombreado pela exótica vegetação de porte médio que guarnecia e enfeitava a frente do prédio. Abria o porta-malas, pegava o folder prateado que continha não mais do que o material referente às matérias que iria lecionar naquele dia e entrava. O primeiro a receber o seu cumprimento era Trump, o inspetor de turmas que, do corredor principal, distribuía suas informações a todos que a ele se dirigiam. Laconicamente, ia saudando os que encontrava pelo caminho até chegar à sala dos mestres. Abria o armário, de onde tirava o avental azul, e o vestia. O fato de chegar para o trabalho e não encontrar outro professor já era proposital, visto que chegava bem mais cedo que todos a fim de evitar a obrigação de ter que encetar uma conversa.

Este comportamento incomum de Greg, se não era esperado, passou a ser mais do que compreensível. Ele era o único homem de cor dentro do corpo docente e criou, por isso mesmo, em sua mente, a invisível couraça de amparo contra uma rejeição, origem de todo preconceito. Havia na faculdade um número considerável de negros entre os alunos de ambos os sexos, tal a sábia providência da reitoria com o objetivo de evitar as desavenças. Mas nas turmas de Greg isto não trouxe o efeito esperado, podendo-se afirmar, sem muita margem de erro, que se deu inevitavelmente o contrário. E Clarice destoava completamente de quase todos de sua turma. Não era negra. Tinha, antes, a pele morena clara, quase branca, e os cabelos ruivos. Outras havia, a contar nos dedos de uma só mão, que não traziam a marca de uma pele negra, tampouco a beleza descomunal de Clarice. Se por um lado, e para muitos, ser negro representava rancor ou revolta, ser linda - para Clarice - era sofrer, no coração e na alma, a inveja e a injustiça. Quando sorria, fazia-o com a naturalidade que Deus lhe deu e não chegava a perceber, por trás de uns poucos sorrisos correspondidos, o verdadeiro sentimento; não distinguia entre a cobiça e a sedução.

Foi justamente o vislumbre de um sentimento inocente e desnudado que a fez sentir-se atraída ao professor logo no início das aulas. Os grandes olhos castanhos e amendoados de Clarice não sem frequência descontrolavam os gestos e as palavras de Greg. Precisava o jovem mestre submeter-se a um esforço, a princípio circunspecto, mas não por muito tempo. Quando a jovem, já insinuante sem aparatos, passou a temperar de volúpia algumas atitudes em forma de trajes e até de palavras, o que era disfarçado passou a ficar notório e desconfortável. Tudo remediável, enquanto Clarice permanecia quieta em seu canto, natural e sem ostentação. Ao mudar-se porém para a primeira fileira, bem em baixo dos olhos do mestre, e fazer deste o seu lugar definitivo em todas as aulas de história e somente nestas, iniciou um conflito que mudou a vida pacata e rotineira de Greg. Seu desempenho dava sinais de declínio, e a admoestação passou a ser lugar comum nas conversas com Charles Thompson,além de seu superior, grande amigo e companheiro de longa data.

Corria o mês de junho, já nos seus últimos dias, tendo a situação se agravado a tal ponto que tornou-se insuportável para Greg. Pensou em se afastar de tudo e de todos sem nada avisar, mas pensou também em Linda, sua esposa. Tanto a omissão quanto a apresentação da verdade tal como vinha ocorrendo depunham contra ele. Sendo assim, tentou solucionar sozinho o problema. No último dia de aula, anterior às férias de julho, tomou coragem e decidiu falar com Clarice, mas longe dali, onde as vistas de curiosos e mal intencionados não os alcançassem. Não esperou que ela saísse. Saiu primeiro, ganhando o benefício da sorte e da destreza da última turma do dia, que concluiu com rapidez oportuna o teste que ele havia aplicado. Despediu-se como sempre, entrou no carro, após certificar-se, na sua peculiar discrição, que a moça ainda não saíra e, lentamente, foi deixando o local. Como não sabia a rua que ela costumava tomar após deixar o prédio, Greg precisou ficar de longe, dentro do automóvel, com os olhos pregados em todos que passavam do portão para fora, até que a viu sair. Vinha com ela uma outra moça, também sua aluna. Tomaram a direção contrária àquela em que ele se encontrava e começaram a subir a rua, afastando-se. Ligou o motor, esperou que elas desaparecessem na primeira esquina e deu a partida. Como não pretendia passar de novo em frente à universidade, contornou pela rua de trás e parou ao vê-las conversando em um ponto de ônibus. Não precisou esperar mais que alguns minutos, pois a sorte o ajudou. A amiga embarcou em uma condução e Clarice ficou só, como ele queria. Sem perder tempo, aproximou-se.

- Aceita uma carona de um negro mal educado e sem jeito? - disse sorrindo, colocando a cabeça para o lado de fora. Na verdade, quem ficou totalmente sem jeito e sem ação foi Clarice, que certamente não esperava tal surpresa. Sua resposta foi o belo sorriso que mostrou e que foi realçado pela luminosidade que vinha do alto do poste e incidia sobre eles. Greg, ao fim de suas palavras, já tinha a porta do carro aberta. Ato contínuo, ela entrou e ele, sem dizer palavras, deu partida no veículo. A velocidade, um pouco acima do normal, fez com que, em poucos segundos, já estivessem longe dali, seguindo pela avenida principal. Clarice foi quem primeiro quebrou o incômodo silêncio ao perceber no professor o seu nervosismo característico.

- Será mesmo uma carona que quer me dar? Nesse caso, precisa mudar o itinerário. - Greg, como que balsamizado por estas palavras da moça, ditas em tom suave e muito pausado, acalmou-se rapidamente e disse num sorriso.

- Espero que me perdoe a falta de cavalheirismo. Na verdade o que estou querendo é conversar um pouco com você, se pudermos dispor de alguns minutos. Aceita beber alguma coisa?

Dali para um restaurante foi consequência esperada pelo comportamento de clarice e pela atração que já vinha algum tempo demonstrando abertamente em relação a ele. Não gastaram minutos apenas. Quase duas horas foi o tempo em que o magnetismo da jovem, feito uma teia sutil e intransponível, conseguiu aniquilar o último reduto de resistência que ainda pudesse pairar no interior de Greg. Tal foi o efeito que não o deixou dormir normalmente aquela noite. E nas outras, bem, nas outras precisou o mestre de muito auto controle para resistir ao ímpeto de pegar no telefone e marcar novo encontro. Mas, o que fazer nas férias? Longos trinta dias a lhe infundir na alma o doloroso teste do amor e da saudade. Mas os dotes de Clarice falaram mais alto. O telefone foi a maior testemunha. Os encontros se sucederam e era uma vez um casamento entre dois negros. Sim, porque linda, a mulher de Greg também o era. E juntos se esforçavam por manter uma união que, ao menos na aparência, parecia feliz, a cara de uma sociedade a beira da decadência.

Passaram-se as férias, terminou aquele ano letivo. Antes do retorno para a temporada seguinte, Greg já era um homem separado e Linda uma ex-esposa. O namoro entre os novos apaixonados seguia às escondidas. Contudo, a ira e a insatisfação de quem perdeu para o amor fizeram-se mostrar na pessoa de Linda. Inconformada, tentou a reconciliação. A atitude de Greg, cego pela paixão, balançou o resto de sua esperança. A insistência dela só fez piorar a situação e o rechaço desmoronou de vez qualquer chance e rematou a separação. Porém, a felicidade de um recresceu o inconformismo da outra. Decidiu não se entregar e com a decisão reacendeu um desejo há muito acalentado e reprimido pelo ciúme. Voltaria a estudar. Retomaria o curso de direito interrompido com o casamento. Ao fazê-lo, teria nas mãos a oportunidade da reconquista ou a constatação da derrota.

Matriculou-se naquele mesmo ano. O contato com a nova vida encheu Linda de entusiasmo e abriu-lhe o espírito a novas perspectivas. Fez novos amigos e até tentou um início de namoro. Não se surpreendeu ao ficar sabendo que o seu ex já não mais pertencia àquela faculdade. Demais, angariou em pouco tempo, de todos que testemunharam o ocorrido, o oposto dos sentimentos provocados por ele. O bem estar diminuiu-lhe o rancor. Ao saber que haviam se casado já não sofreu tanto.

Os meses transcorriam e os estudos faziam sua cabeça, dando-lhe certa paz. Charles Thompson, o reitor, acumulava algumas outras funções, dentre elas, também, a de lecionar. Exímio professor de literatura francesa, era benquisto por seus alunos e conquistou, ao longo do tempo em que vinha à frente daquela casa, um respeito assaz merecido. Tinha por Greg especial estima. Compartilhavam preferências, ideias e muitas outras coisas, embora uma diferença entre eles, uma grande diferença evidenciava-se: a raça. Charles era louro, de olhos verdes, exemplo típico do ariano legítimo. Destoavam de tal forma, em gestos como em timbre de voz, que seria desconchavo crer-se que dali pudesse surgir alguma forma de afinidade. Porém, a estima de Charles por Greg não era desprovida de interesse. Havia, por trás daquela amizade, um outro sentimento que, embora puro, no caso em questão não o era. Falo do amor enlouquecido, do amor desnorteado que Charles sentia por Linda. Por conta dele deixou para trás uma carreira de empresário, cujo êxito já o situava entre os principais milionários do Tennessee. Linda foi, durante quase uma década, a alavanca que o projetou e, como mentor e amiga, manteve-o no topo da fama; foi cúmplice do seu enriquecimento e bastião de sua glória. Charles passou a amá-la ao sentir necessidade de uma segurança que não conseguia encontrar no dinheiro. Os prazeres da carne já não o satisfaziam. A sucessão dos encontros amorosos não diminuíam-lhe a ansiedade. Aumentavam-lhe, por outro lado, o amor por linda.

Ela, por sua vez, não o amava. Greg já entrara em sua vida e a conquistara pela simplicidade de caráter e pela grande afeição, natural e despojada. Três meses de namoro bastaram para solidificar o amor de Linda. Não foi difícil para Greg convencê-la a mudar de vida. Abandonou a carreira, a posição e o próprio Charles que, desesperado, entregou-se à bebida. Sem Linda, na forma do apoio profissional que o mantinha no auge, ele sobreviveria. Mas sem a esperança do amor que passou a vislumbrar e que, de uma hora para outra, tornou-se-lhe grau e desígnio, foi-se a fortaleza, ruiu-se o centro. Onze meses, foi o tempo que conseguiu resistir longe dela. Depois disso, o que fez foi vender a empresa e deixar sua cidade. Gastou um pouco da fortuna em viagens pelo mundo com o intento de esquecê-la. Ao saber do seu paradeiro em Nashville, dirigiu-se para lá. Não foi difícil para Charles entrar na faculdade como professor. Já havia exercido este cargo antes de se tornar empresário de sucesso. A experiência trouxera-lhe novamente a esperança. Ao aproximar-se de Greg e cultivar sua amizade já tinha Charles todo o plano em sua mente.

Linda afastou-se dos estudos, dando como desculpa a Greg, já seu esposo, a total dispensabilidade da sua formação a fim de melhor poder dedicar-se a ele como esposa exemplar e aos futuros filhos como mãe sempre presente. Manifesto está que Greg, apaixonado e confiante, aceitou de bom grado o alvitre e dobrou de felicidade os seus dias.

De volta aos estudos, suas conversas com Charles Thompson eram agora muito mais frequentes e despreocupadas. Elas ocorriam, todavia, fora do estabelecimento. Assim, à vontade, não furtar-se-iam às verdadeiras intenções de suas almas.

- Será que tenho alguma chance nesse coração solitário? - perguntou uma vez Charles, demonstrando felicidade ao desfrutar ao lado dela de um jantar finalmente aceito após vários convites e várias frustrações.

- Você sabe o quanto amo Greg. E já me conhece para saber que não me entrego facilmente. Hei de conquistá-lo outra vez. Ele está enfeitiçado; estou certa de que me ama também. - Apenas o olhar de Charles era o bastante para dar a entender o seu coração. Ele sabia que Linda falava a verdade e sabia do que ela era capaz.

- Não duvido de você. Mas acredito no meu amor, provas não são mais suficientes. Acha que existe ainda algo que eu possa fazer para conquistar o seu coração?

- Certamente que há - respondeu Linda, fazendo saltar aos olhos o broto de esperança na fisionomia e no sorriso de Charles.

- Então me diga. Sou um escravo do seu amor.

- Faria mesmo qualquer coisa, tudo?

- Tudo - respondeu, entre surpreso e desconfiado.

- Então, mate-a. - Ele emudeceu à princípio. Ao refazer-se, falou:

- Tem certeza do que está falando? Está no seu juízo normal?

- Perfeitamente - disse, sem manifestar alteração. - É o que tem a fazer. Mate-a. É o preço da minha conquista; se realmente me ama, não vejo problema. Não é o que mais quer, o meu amor?

- O preço é alto demais. Além disso, como diz que será minha, se o maior obstáculo ao seu objetivo deixaria de existir? Não acha que sou grande demais para acreditar em histórias da carochinha?

- Se acha que é assim, então não faça nada. E me esqueça como alvo do seu amor. Por outro lado, - disse, aproximando os lábios no ouvido esquerdo de Charles - poderá, hoje mesmo, receber antecipadamente uma prova da minha gratidão. - Isto arrepiou-o dos pés à cabeça e fez revirar, dentro de sua mente, todos aqueles pensamentos que já sentira em relação a Linda, mescla de desejos e intenções.

Certas atitudes de Linda, caracterizadas pelo tom da voz, melífluo e envolvente, ou pelo olhar sensual, provocante, conseguiam mexer com Charles, levando-o ao Desvario. Ela era bonita, de uma beleza incomum que atraía, muito menos pela estética, donairosa e fecunda, do que pela malícia de mulher, que sabia, como ninguém, conferir a sua prosa, a fim de conseguir o que queria. Vestia-se nesta noite de forma refinada. O longo vestido branco um charme a mais, audaz e provocante, cúmplice de uma atitude premeditada. Deixou evidente com sua proposta que pertencia a Greg o seu coração. Mas poria em jogo a astúcia e, muito mais que isso, a intimidade, o corpo à disposição de Charles para, com isso, garantir o sucesso do seu intento. Saíram naquela noite. E em outras mais. A paixão de Charles por linda tornava-se a cada dia mais forte e ofuscante. O apego, o ciúme incontrolável e outras demonstrações faziam dele um vassalo em suas mãos. Encontros e saídas regadas à peso de ouro tornaram-se a marca registrada do amor comprado. Território do despudor. Ele, amando perdidamente. Ela, deixando-se amar. Aproveitando o momento. No usufruto e no deleite de um sentimento cego e deslumbrado.

Greg e Clarice viviam um verdadeiro conto de fadas, amando-se perdidamente. Ela formara-se em arquitetura e encontrava-se estagiando em uma empresa construtora no bairro de Clarksville a poucos quilômetros da faculdade onde ele lecionava. À noite, após o expediente, ao sair do elevador e encaminhar-se para a rua, Clarice avistava o automóvel estacionado na calçada em frente ao prédio e, dentro dele, Greg, esperando-a e sempre com um sorriso de satisfação nos lábios. Saíam para jantar em algum restaurante das proximidades, conversavam sobre os seus dias e falavam do futuro. Vez ou outra iam ao cinema. Em casa, amavam-se com paixão, sentindo que haviam nascido um para o outro. Uma noite, recostados sobre o sofá, assistiam a um programa de televisão quando o telefone tocou. Greg, que tinha as pernas relaxadas sobre uma mesinha a sua frente, acariciava o rosto de Clarice, deitada sobre suas coxas. Encolheu as pernas e ajeitou-se enquanto esticava uma das mãos para o aparelho. Do outro lado reconheceu a voz de Charles Thompson.

- Não imaginei que fosse ficar tanto tempo sem ver o amigo. Por quê não aparece? - desde que se casara com Clarice, Greg não mais aparecera em Nashville. Já passavam de três meses.

- Você sabe, trabalha-se muito por aqui - respondeu. - Além do mais, considere que ainda me encontro em lua de mel. É Charles - disse, colocando a mão no fone e virando-se para a esposa. - Ela sorriu sem muita surpresa e ele prosseguiu. - Não deixei um bom conceito ao sair deste lugar; receio voltar e ter que encarar as pessoas.

- Você não fez nada, não matou nem roubou ninguém.

- Sei disso. Mas eles não veem desta forma. Isto agora é passado. Quero esquecer tudo e concentrar-me em minha nova vida. Sou feliz onde estou e ao lado de quem amo. - Clarice sorriu novamente, desta vez com muito entusiasmo.

- Ok. Como preferir. Farei então uma visita assim que tiver um tempo. - conversaram mais algum tempo sobre assuntos de trabalho e despediram-se.

Dias depois, Charles aparece de surpresa no trabalho de Clarice. Almoça com ela e tem a seguinte conversa:

- Estou feliz por ter feito aquilo que combinamos, mas não esperava que levasse a coisa assim tão longe. Não era este o plano. Devia seduzi-lo e fazer com que se apaixonasse mas estou vendo que o contrário aconteceu.

- Tem razão, amo Greg como nunca amei outro homem. Mas não aconteceu o contrário como diz. Fui correspondida, ele me adora. Por isso nos casamos. Não deve queixar-se, ele agora está livre e o caminho está aberto para você. Cumpri minha parte no trato.

- Sei disso. Também cumpri a minha parte, o dinheiro já está em sua conta; considere-se uma mulher rica de hoje em diante. Apenas previno para que tenha cuidado a fim de não criar desconfiança. Linda está inconformada e eu paguei muito caro para realizar o meu sonho. - Charles não mencionou a conversa que tivera com a outra. Quanto ao fato de eliminar Clarice, é claro que ele não o faria. Seria facilitar demais para Linda e não garantir o que ele queria. Charles a amava e ela teria que ser dele apenas. Possuir o seu corpo não era o suficiente. - O que vai fazer com o dinheiro? - perguntou, amenizando o tom de voz.

- Para falar sério, ainda não pensei nisso - Clarice respondeu sem vacilar. - Sou uma mulher feliz ao lado do homem que amo. O dinheiro está em segundo plano, mas é sempre bem vindo. Sei lá, vou inventar uma história; posso falar de uma herança inesperada ou coisa desse tipo. Lidar com o dinheiro não deve ser coisa difícil. O problema é a falta dele - concluiu satisfeita.

A conversa com Charles deixou Clarice assaz preocupada. Mas ela soube usar de tato e inteligência para não dar perceber a Greg a sua situação. Ao mesmo tempo em que aumentava o seu amor por ele, crescia também o medo de perdê-lo. Ele acreditou na origem da inesperada fortuna sem muita dificuldade e alegrou-se de poder compartilhar com ela de tamanha sorte ao mesmo tempo em que agradecia à alma do benfeitor inexistente. Mudaram de vida. Ele antecipou por trinta dias as férias e gastaram os dois meses seguintes em passeios e viagens pela Europa, um sonho antigo de Clarice. Ao retornarem, instalaram-se em uma suntuosa chácara nos arredores de Wynstone e passaram a viver ali dias de gáudio e felicidade. Greg, como a maioria das pessoas, teve sua vida transformada pela força do dinheiro. No lugar de voltar ao trabalho naquele ano que já iniciara, decidiu fazer diferente. Propôs um acordo pelo tempo de serviço prestado à causa, no que foi aceito. Mesmo recebendo abaixo do que teria direito se continuasse ativo na profissão, achou vantajosa a contra proposta e a agarrou. Com o próprio capital que não era muito, somado ao capital da esposa que pouco não era, compraram e melhoraram a referida chácara, a qual passou a ser, além de moradia para os dois pombinhos, repouso e distração aos numerosos viajantes que por ali passavam diariamente.

Charles e Linda perdera-os de vista por um bom tempo. Clarice, apaixonada, não resistiu e abriu a verdade ao marido. Este, bem que tentou ignorar o fato, mas tornou-se-lhe impossível acreditar que Linda, a mulher a quem um dia amara verdadeiramente, tenha sido vítima de um conluio para perdê-lo. Se não fosse o amor, que a esta altura sentia por Clarice, tentaria aproximar-se e pedir perdão. Ao pensar em Charles, não conteve a ira. Era ele o responsável por toda essa reviravolta. Por outro lado, o coração de Greg encontrava-se dividido. Entre o ódio e a gratidão. A felicidade presente e o amor por Clarice eram mais fortes, porém. Mas não esqueceria o embuste. Foi ter com Linda em casa desta, a fim de comunicar-lhe o ocorrido. Ele não quis entrar, apesar da insistência. Conversaram na varanda, envoltos pela brisa tímida e refrescante, anunciadora do inverno que se aproximava. Ela pareceu-lhe ainda mais bela do que antes. Havia saído do banho onde lavara a cabeça. Recebeu-o dentro de um chambre azulado e com uma toalha branca em forma de touca embrulhando-lhe os bastos cabelos ainda umedecidos. Quando abriu a porta e o viu, não conteve a alegria. Os dentes muito brancos de Greg sorriam para ela, como que acendendo em seu coração uma esperança sofredora e combalida.

- Meu amor, você voltou para mim? - disse, tomada pelo entusiasmo e pela surpresa feliz e inesperada. Greg sentiu-se meio sem jeito ante a efusão repentina de Linda e guardou o sorriso. - Entre - emendou, sem dar a ele chance para uma resposta.

- Não, Linda. Podemos conversar aqui mesmo na varanda. Você tem alguns minutos? Preciso lhe falar. - Sentaram-se à varanda. Ela ofereceu café mas ele não aceitou.

Situava-se a residência do ex-casal numa parte não muito movimentada de Village West. Dali para o centro fazia-se em vinte e cinco a trinta minutos de automóvel, dependendo da hora e do tráfego que para lá fluía. Um ou outro veículo era avistado passando em frente à casa para depois juntar-se na estrada vicinal a uns quinhentos metros dali. Um Cadilac azul turquesa, vindo em marcha muito lenta, fez menção de parar à vista de Greg, que se encontrava de frente para a rua. Pela distância e por estar concentrado no que pretendia dizer a Linda, não deu muita importância a este fato. O carro prosseguiu sua marcha e Greg o seu intento.

O relacionamento entre Linda e Charles caiu no esfriamento a partia do dia em que este a viu conversando com Greg na varanda, pois era de Charles o automóvel que ele avistara, embora não o tivesse reconhecido. Após o ocorrido, Charles passou a exigir dela uma explicação, mas que não o convenceu. Incendiadas pelo ciúme, mais do que conversas, as discussões entre os dois beiravam ameaças por Charles, traído, e por Linda, vilipendiada e abatida. Ela parou de procurá-lo, o que fez-lhe aumentar a revolta. O estado do homem era indescritível. Gastara uma fortuna, modificara radicalmente o estilo de vida em prol de um sentimento que não fora correspondido. Linda, malograda pelo descarte efetivo do homem que amou e que ainda amava, teria se conformado com o destino infeliz e desistido de acabar com a vida de Clarice, como dava a entender pelo seu comportamento. Já há semanas não dava o ar da graça aos bancos escolares e não se soube de seu paradeiro. Apareceu morta dias depois ao também abandono por parte de Charles de suas funções na universidade. A suspeita inicial de suicídio não convenceu às autoridades que, por isso, abriu averiguação e saíram à cata do autor do provável homicídio.

Charles encontrou-se mais uma vez com Clarice, desta feita em um café ao lado do mercado onde ela tinha por hábito realizar as compras para a sua pousada. Mostrando-se consternado, queixava-se de sua sorte. Mas nem por isso deixou de parecer suspeito aos olhos da jovem.

- Não possuía, em absoluto, motivos para assassiná-la. Porque o faria se estava apaixonado? Ela é tudo que eu sempre quis - dizia, procurando convencê-la.

- Está querendo dizer que a matei? - disse, elevando o tom da voz, despertando a atenção dos que ali se encontravam.

- Não, Charles... não é bem assim. Mas há suspeitas, você sabe. Enquanto houver indícios, todos...

- Cale-se! - gritou Charles, indignado. - Foi suicídio, vão acabar descobrindo. - Clarice virou o último gole do chocolate que estava bebendo, colocou sobre a mesa de mármore a xícara e disse, envergonhada pela atitude grosseira de Charles:

- Espero que sim. Boa sorte. Por favor, não me procure mais. Nem ao Greg. Não queremos problemas com a polícia. Não estrague a nossa felicidade, Charles - e virou-se, deixando o recinto. Ele permaneceu imóvel, contemplando-a ao sair e ingressar em belo automóvel estacionado sobre a calçada, adquirido pelo toque de sua generosidade.

Ao tomar conhecimento da morte da ex-esposa, Greg sentiu-se arrasado, o mais infeliz dos mortais. As lembranças de um passado verdadeiramente feliz como que retornavam, uma a uma a sua memória e não conseguia esconder de Clarice os seus sentimentos, por mais que o tentasse. Era frequente vê-lo cabisbaixo e triste. Os olhos vermelhos e inchados denunciavam o choro e a saudade. Este estado de coisas continuou por dias, precedendo discussões acaloradas entre o casal.

- É este o amor que diz sentir por mim? Vejo como está mudado depois que ela morreu.

- Uma dor alheia merece respeito. Foram anos de uma convivência harmoniosa. Será que você não entende como eu a amava? - ao dizer estas palavras, levou ao rosto ambas as mãos, num frenesi incontido dor e frustração. Encobrindo o pejo do choro e o banho de lágrimas. Não se falaram por quatro dias seguidos. No quinto, ao despertar, Clarice olhou ao redor do quarto. O vazio da cama ao seu lado não lhe causou estranheza, já que o sofá da sala de visitas é que servia de repouso para Greg nos últimos dias. Porém, ao não ver sobre o guarda-roupa a grande mala de couro avermelhada, suspirou, imaginando o pior. Num ímpeto, levantou-se. Amarrou o laço da camisola branca de seda, presente dele no último aniversário, calçou os chinelos e, apressada, ganhou a sala. Como previa, Greg lá também não se encontrava.

Pensamentos conturbados, olhar perdido, retorna ao quarto. Contempla, sobre o criado-mudo, envolta pela moldura escarlate de belo porta-retrato, uma das cenas mais felizes que já vivenciara ao lado dele . Juntos em Veneza, cercados pela magia da praça São Pedro, num click inesquecível, abraçados e tendo ao fundo a catedral, projetando sobre a imagem sua enorme e agradável sombra. Vencidos pelo sono incontrolável, fecham-se os lindos olhos de Clarice.

Em casa de Charles Thompson, Greg desabafa sua tristeza e consegue, após evidentes conclusões, acreditar na inocência do amigo. Difícil foi perdoar-lhe a trama, mas o fez ao ficar sabedor de quão antigo era o relacionamento entre ele e Linda e como Charles sempre a amara. Juntos, colaboraram com a polícia para desvendar o homicídio. E não demorou muito. Em nova vistoria na residência do ex-casal, local do crime, esclareceu-se o caso, graças à percepção e a boa visão de Greg. Linda morrera por estrangulamento. A arma: um cordão de pérolas que havia sido da vítima, mas que retornara para as mãos de Greg entre outras joias que ela fez questão de devolver após a inevitável separação e ele, sem outra alternativa, aceitou; deu-as a Clarice sem, no entanto, mencionar-lhe a origem. Esta, soube-a por Charles. Guardou a inveja e a humilhação para uma ocasião oportuna. Ao utilizar o colar para eliminar Linda do seu caminho, uma das pérolas desprendeu-se sem que ela desse por isso e foi o seu brilho, quase imperceptível, por vir de baixo de um dos móveis da sala, para onde rolou, que chamou a atenção de Greg, pondo fim ao mistério.

Uma ordem foi emitida e uma busca iniciada; não precisaram de muito esforço. Chegaram para prender Clarice. Greg e Charles os acompanhavam. Bateram à porta, sem resultado. Usando a chave de Greg e com a autorização deste, entraram. Nenhum som, nenhum sinal de vida. Vindo do quarto do casal, um grito reúne ali todos os homens. De pé, ao lado da cama, olhos esbugalhados e estático, está Greg. A penumbra do ambiente impede a visão perfeita dos objetos do quarto. O delegado dirige-se até a janela e afasta o cortinado, trazendo para o interior da peça uma nesga de luz de um débil sol matinal. Sobre a cama, ainda na mesma camisola branca e enlaçada, pálido e sem vida, o corpo de Clarice. Dorme o sono eterno. Irreconhecível, dada a posição natural de quem se deita para uma rotina normal e noturna. Causadoras da reação de Greg, sobre o mesmo criado-mudo, pílulas se esparramam, algumas dentre tantas que compunham o vidro aberto e caído ao lado do porta-retrato, testemunha inútil e indiferente.

  • Publicado em: 04/07/2006
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