O tempo tem suas razões. Ele transforma a vida da gente em fumaça
de passado. Melhor dizendo, farrapo de coisas do passado. O passado, ele puro,
é pétreo, estou certo disso porque tive uma experiência
que marcou a vida de todos nós, minha família, os amigos, os visitantes,
a cidade inteira de onde parti pensando que jamais voltaria. O tempo implacável
ia passando sobre as coisas. Não digo que não deixava sinais,
porque estaria mentindo. Alguns sinais permaneciam intactos, indeléveis,
e eram os que marcavam o passado das coisas. É aí que entra a
ponte. Era uma ponte agarrada no solo com dois blocos de concreto, como dois
pés enormes, firmes na terra, e seu complemento, a certeza de que era
uma ponte, o tronco, um meio corpo de onde se estendiam os dois braços
abertos, suspensos no ar, destinados a amparar alguma coisa muito grande que
ninguém sabia explicar. Na verdade, nada podia ser explicado, mas todos
tinham a sua versão, a sua história, que, afinal, poderia ser
a mais a adequada, de acordo com as circunstâncias, ou a mais verdadeira,
a oficial, ou, ainda, aquela em que acreditávamos, nós, eu e meus
irmãos, a história contada por nossa avó, a mais fantástica,
a única que não poderia ser a oficial, porém, a história
que tinha a mágica de nos atrair para o quarto da avó.
Parecia uma ponte comum que atava dois pontos fixos, dois lugares que precisavam
ser ligados para que se tornassem verídicos. Não sei se estou
conseguindo me explicar, pois foi isso que me ensinaram o tempo todo, a certeza
de que o que víamos era realmente uma ponte. Talvez por isso a versão
oficial fosse a única que a cidade aceitava sem discussão. Era
uma ponte. Ponto. Nada mais há a discutir. Uma ponte é uma ponte.
Não é uma rosa. Nenhuma pessoa em sã consciência
tinha coragem de afirmar o que eles consideravam uma grande tolice. Eu e meus
irmãos, no entanto, acreditávamos que a nossa avó sabia
a verdade. Não a oficial, a que era reproduzida nos cadernos de história
municipal, nos folhetos para chamar turistas, pesquisadores, estudiosos, essa
caterva de gente que pouco tem o que escrever, a não ser repetir o que
o passado firmou como verdade, a indiscutível verdade do passado pétreo.
Agora, a nossa história, aquela que nos encantava e que o tempo jamais
apagou, mesmo hoje, há mais de 80 anos, essa me levou a repeti-la para
meus filhos e meus netos, e eles, certamente, irão contá-la também
para os filhos deles.
Houve um dia, já adulto, que pensei que fosse caduquice de uma velha
que precisava alimentar os seus sonhos, a única coisa que a sustentava
e lhe dava um ar de importância, o ar que ela aspirava profundamente,
o alimento de sua vida. A ponte seria um sonho de minha avó? Não
digo a ponte física, essa existiu oficialmente. Refiro-me a da história
de minha avó. A única que me levou à atitude extrema de
a revelar depois de tantos anos. A que aconteceu da forma que minha avó
nos contou. Ainda consigo visualizar aquela multidão de pequeninos seres
alados como pequeninas borboletas de asas douradas, milhares, talvez milhões,
que desceram a ponte e a pousaram sobre o solo deserto, infinito, vazio, onde
ao longe se via apenas a nossa casa perdida no descampado, a casa que minha
avó tinha herdado de seu pai, criador de cabras, filha única,
e onde ela viveu toda sua vida, mesmo contra a vontade de seus filhos que partiram
e somente voltavam para vê-la e ouvi-la repetir a sua fantástica
história.
A história oficial conta que foi um general espartano, vindo fugido de
sua terra natal, por motivos políticos, que construiu a única
coisa que ele sabia fazer: pontes. A ponte, então, tinha a sua razão
de ser, a sua explicação plausível, havia um rio que atravessava
a planície naquele local e a dividia. De um lado a terra era seca, árida,
uma longa extensão de pequenas pedras e nada produzia. O outro lado era
de terra produtiva, fértil, uma vargem verde e florida, onde pastavam
cabras selvagens. Depois, inexplicavelmente o rio secou e restou apenas um fio
de água que corria lento e sem serventia. O general viu frustrado o seu
projeto. A ponte, porém, ali permaneceu, de pé, um gigante de
braços abertos, estendidos, suspensos no ar. A história oficial
revela que as águas voltaram, porém em outro local da planície.
Nasceu, então, em volta da ponte, a nossa cidade, com toda sua beleza.
A ponte aí permaneceu como um monumento importante, capaz de atrair centenas
de pessoas curiosas que a fotografavam em todos os ângulos. Um dia, o
governo resolveu vender a cidade para os estrangeiros construírem uma
barragem e resolverem o problema de abastecimento de energia elétrica.
A cidade foi demolida, casa por casa, minha avó resistiu, ninguém
a arrancaria de sua casa. Foi quando nossa avó caiu doente. Todos nós
que havíamos deixado a cidade, voltamos para o seu velório e enterro,
e afinal libertá-la de sua sina. Eram poucas as pessoas que a foram visitar.
Estávamos todos ali, sentados em volta de seu caixão, quando uma
pequenina borboleta de asas douradas pousou no rosto de minha avó. Alguém
se levantou e enxotou-a com um leve movimento de mão. A borboleta esvoaçou,
girou em torno de seu corpo e tornou a pousar sobre seu rosto. Novamente tornaram
a espantá-la. Ela voou ligeira e desapareceu. Apenas eu a vi pousada
ao lado da cabeça de minha avó. Quando o enterro ia partir, levantei-me,
para dar meu último adeus à minha avó. Nunca soube explicar
a mim mesmo minha atitude, minha decisão, seja lá o que for. Peguei
a pequena borboleta de asas douradas, encerrei-a na palma da mão. Ela
não se buliu. Senti a presença da morte em minhas mãos.
Após o enterro de minha avó, todos partiram, e eu resolvi ficar
mais alguns dias, para dar tudo por acabado. Resolvi caminhar até o local
onde a ponte ainda se sustentava desafiando o próprio tempo. Senti que
a presença de minha avó me acompanhava, pelo perfume, o mesmo
perfume que envolvia o seu corpo deitado no caixão. O mesmo perfume que
eu sentira exalar da pequena borboleta. Vi, então, como a versão
de minha avó sobre a ponte era realmente a única verdadeira, a
única que jamais revelei a qualquer pessoa, a ponte estava totalmente
coberta de milhares de pequenas borboletas de asas douradas e ia sendo levada
para o alto, flutuando, leve como paina e pude ver quando ela desapareceu desfeita
numa poeira dourada. No ar pairava o cheiro de minha avó, o cheiro das
borboletas de asas douradas.
(10.06.2007)