Gorda, pálpebras empapuçadas, cabelos ralos na cabeça toda
branca, os músculos dos braços flácidos pendurados como
folhas de bananeira seca, derreada na poltrona de chenile, Joaquina bordava,
sem pressa. Sozinha, como sempre estivera há perto de 20 anos. Não
desfiava reclamações, mas repassava sua vida, mentalmente, com
os olhos fixos na parede do quarto, onde se reprogramava o seu filme.
Não esperava ninguém.
Simplesmente bordava como uma espécie de resignação.
Predestinação? Fatalidade, talvez.
Não acreditava em destino.
O filme de sua jornada ia passando, quadro por quadro, ou melhor, cena por cena.
1ª Cena:
Uma sala ampla. As paredes cobertas de cortinas até o assoalho de pinho
de riga que cintilava. Poltronas espalhadas pelo cômodo. Numa poltrona
de couro, comodamente sentada, sua avó, D. Plácida. De pé,
junto à janela a irmã mais velha, o cunhado engenheiro, e o outro,
o seu parceiro.
- Pura perda de tempo - repetia a voz.
- Perda de tempo? - alguém interrogava.
Vozes indistintas:
- Os quadros... alguém iniciava uma frase que foi interrompida.
- O Pancetti, não. Nem a Djanira... Inimá... DaCosta..
- As aquarelas de menor valor - Era com certeza a irmã mais velha a falar.
Uma voz rouca, sons guturais, do fundo da garganta.
A irmã sempre com suas soluções práticas.
A solução deveria ser como acontece nos filmes. Surge um cavalheiro
saindo do recesso dum dado local encoberto pelas sombras de uma árvore
ou das paredes.
- Senhores, eis o meu cartão - é o que dizem, invariavelmente.
Estou diariamente à disposição.
Na vida real é diferente.
Na adversidade.
Todos se desviavam do caminho.
D,. Plácida, calada, observava.
Aos 100 anos ultrapassara o terreno das reações contraditórias
de situações adversas. Fitava o único retrato na parede,
o marido de pé, de terno e gravata, com a mão direita pousada
nos ombros dela sentada numa cadeira de palha.
- Não me vendam meu retrato - murmurou mais para si mesma. O retrato
era o que lhe restava passados longos 30 anos de uma separação
inexorável.
- Ninguém vai vender lembranças!
Joaquina sacudiu-se arrepiada, como saída de um transe. Como se a fita
tivesse arrebentado e escapado do rolo. Acontecia isso duas ou três vezes
nos filmes a que assistira no Cinema Jannuzzi, de sua cidade natal. Imediatamente
as luzes se acendiam e ouvia-se os sons do piano, altissonantes, acelerados
pelos dedos leves de tia Filomena. Subiam os ritmos, os apupos, as risadas da
mulher de Carlitos no filme Limite, mesclados aos acordes da 5a de Beethoven.
Morrera a avó.
No salão do cinema meteram um púlpito, de onde pregava um pastor
evangélico, aos berros, possesso, numa voz cavernosa, chicoteando os
demônios que falavam pela boca dos fiéis.
- Saia demônio! Satanás! Belzebu, vade retro, rebotalho, cão...
A uma só voz todos repetiam:
- Fora! Fora! Fora!
- Fora Satanás!
O fiel caía aliviado no chão.
- Graças, Senhor!
- Aleluia! Aleluia!
Joaquina retomava seu bordado.
Mais uma vez se perdia na reprise do filme e sua vida, visto e revisto, tantas
vezes, na mesma parede vazia.
Não havia maior dor do que recordar os tempos felizes de sua vida, Beatriz,
ela à procura de seu Dante, amor maior que o mundo, o sol, a lua, as
estrelas. Como é doloroso e íngreme o atalho escuro, ínvios
caminhos por onde passa o Poeta, na selva selvagem, e ela Joaquina, como tantas
outras, quem sabe mesmo Beatriz, carregada nos braços fortes do seu amante
amado cantor de divinos espaços celestiais.
Um ponto e um nó, sem nada esperar.
Como na cena do assassinato, no filme, por trás do retrato, e que muito
mais tarde seria percebido.
A ampliação se sucedia mais e mais.
Até que o rosto se afigurasse alguém que existia realmente e teria
cometido o crime mais perfeito de todos, aquele que não poderia ser provado
por sua inverossimilhança.
Como no abandono do Sr. Jardim da mesa na direção do pântano
e penetrando na água sem sentir que seus sapatos estão se molhando,
mas ele caminha sobre a água como o Senhor Jesus, puro, casto, tão
imaculado que ninguém sente sua santidade.
2ª Cena:
A plataforma da estação comprida e completamente vazia. O trem
chega trepidante, numa nuvem de poeira e fumaça como um dragão
bafejando as chamas pela bocarra desmesurada. Repenica o sino de bronze anunciando
que o trem acabava de chegar e com certeza trazia as novidades que o pessoal
gostaria de não saber. Desembarcam somente eles dois, o desconhecido
e ela.
- Onde está a cidade?
- É... onde está a cidade?
O desconhecido perguntou e ela perguntou.
Os dois deixaram juntos a estação.
No hotel se conheceram.
Fizeram amor.
O desconhecido partiu.
Ela disse para si mesma, mas querendo estabelecer um diálogo: ?parece
que devo ficar. As pessoas não precisam chegar. Porém se chegarem,
não precisam necessariamente ir embora?.
Seriam essas as suas reflexões daquela época?
Joaquina jamais se lembrava de palavras que tivesse pronunciado em qualquer
época de sua existência. Hoje era como se as palavras fossem colocadas
no interior de sua boca, e fossem expelidas, saindo nas salivas, sem que ela
sentisse.
- O prefeito morreu.
O gerente do hotel justificou o vazio.
- Morreu?
- Assassinado.
- Machadadas?
- Machadadas.
- Quem?
- O amante.
O desconhecido teria sua razão de ter partido.
O assunto que o levara à cidade talvez não se resolvesse.
A cidade logo se reacendeu com todas as luzes.
A vida seguiu seu curso. Joaquina estabeleceu-se no sobrado do Damas.
Não se casou.
Dava festas e recebia os amigos. Íntima de cada um de seus convidados.
De repente a fita escapa do rolo, arrebenta-se.
Não deu para ela ver as chamas devorando o sobrado.
Viu o escândalo da buganvília florida.