(A minha tia)
As tias sempre foram um mistério para mim. Eu sabia desde criança
que eram gêmeas, embora as nítidas diferenças me impedissem
de ver as semelhanças. Era natural que a percepção infantil
não tivesse a sofisticação de atentar aos detalhes, como
nuanças fisionômicas ou coisas assim. Fato é que uma era
negra de olhos azuis enquanto a outra de pele clara os tinha castanhos. Mas
sua história sempre se contava em casa, e, toda a vez que se fazia isso,
algo novo - que nunca ouvíramos ou que escapara à atenção
em função de outras peripécias que se destacavam - era
acrescida ao conjunto da obra.
Não lhes romancearei sua vida por ser já suficientemente romanesca.
Bastam-lhes alguns traços resumidamente para que compreendam a simbologia
que se gravou em minha memória e de que não consigo apartar. Nasceram
filhas de uma professora e de um alcoólatra (pelo menos foi assim que
me chegou a história pelas vozes familiares). Tendo morrido a mãe
no parto, uma delas fora criada pela parteira, enquanto a outra por uma tia.
Não se sabe se de comum acordo ou se por pressões culturais a
segunda recebeu o nome de Cosma e a primeira de Damiana, em homenagem aos gêmeos
Cosme e Damião. Separadas fugiam para se ver, até que Damiana,
não suportando os maus-tratos da madrinha, como a chamava, fugiu. Durante
anos não se encontraram até que já casadas se reencontraram
acidentalmente numa feira. Reataram vínculos de amizade e, sendo Damiana
estéril, passou a criar a filha mais nova de Cosma, cuja família
já contava com catorze filhos.
Essa história, ouvira-a diversas vezes de minha mãe ou de minhas
próprias tias. Todavia, não era a força apelativa desse
argumento farsesco que incendiava minha imaginação e que ficou
gravada em minha memória como se com ferro em brasa. Era algo mais nitidamente
tênue e insistentemente presente a que é difícil nomear
e que espero que os leitores pressintam. Elas eram diferentes. E talvez essa
diferença me incomodasse mais que tudo que se pudesse dizer sobre elas.
Quando criança, as diferenças físicas era tudo que percebia
e desafiava minha curiosidade. Todavia, ao passar dos anos, entreguei-me a cogitações
mais sofisticadas quanto a essas diferenças. Passava do físico
para o comportamento e gradativamente chegava à personalidade - e ouso
dizer que eu aspirava ao espírito. Enquanto tia Damiana parecia mais
dinâmica - poder-se-ia dizer até serelepe - tia Cosma mostrava-se-me
mais circunspecta, serena e firme em suas tão poucas e medidas palavras.
É natural que eu tivesse mais visível ao espírito a natureza
de tia Damiana, pois morávamos na mesma casa, enquanto que Cosma nos
visitava regiamente uma vez por mês, quando vinha à cidade receber
a aposentadoria. Chegava como uma matriarca e esperava de nós a bênção.
Pouco falava e talvez pouco tivesse a dizer. Mesmo com sua irmã as palavras
eram breves e mínimas, acomodava-se ao quarto de hóspedes de onde
pouco saía e muito rezava. Sempre a vimos com um terço à
mão. Dois ou três dias depois partia. Tia Damiana em casa dificilmente
sentava-se, muito pouco dormia e, embora se mostrasse religiosa, fazia suas
orações à noite quando já todos dormiam. Ao longo
do dia cuidava da casa, em todos os seus afazeres, e da criação,
especialmente as galinhas. Embora fosse assim ativa e enérgica parecia
mais ingênua e menos perspicaz que sua irmã Cosma. Esta estava
sempre pronta a uma observação sagaz, muitas vezes atenta às
malícias da vida. Aquela, malgrado a mesma idade e tanta experiência
de vida quanto a irmã, era propensa a disparates despropositados em meio
às conversas, em função de em certo modo distraído
de ser.
Frente à irmã, tia Damiana era muitas vezes de uma subserviência
incômoda. A começar pela cor da sua pele cuja negritude considerava
seu único defeito. Tia Cosma, sendo alva, era também altiva. Assumia
ares régios especialmente diante da irmã, como se houvesse entre
elas alguma outra diferença além daquelas a que eu me agarrava
como quem perscruta um mistério. Havia um hábito na família
de que determinadas conversas, as quais não se consideravam apropriadas
para crianças, fizessem-se aos cochichos, e isso só atiçava
mais a minha curiosidade.
E assim passaram-se os anos.
Um dia, um dos irmãos de minha mãe chegara em casa, trazendo a
notícia da morte de tia Cosma. Houve um melancólico frenesi entre
todos os de casa. Meus olhos correram para tia Damiana, embora fosse minha mãe
que já se derramava em lágrimas. Tive a impressão de que
seus olhos azuis se acinzentaram. Não chorou. Nem antes nem depois do
enterro. Seus olhos é que nunca mais foram os mesmos. Assumiu aquele
tom cinza até que sobreveio a cegueira. Com ela, uma certa relutância
em retomar a vida. Prostrara-se na cama e dali saía pouquíssimas
vezes para ouvir a televisão. Depois nem mais isso. Apenas rezava e conversava
com os poucos que ousavam aproximar-se do quarto. Isso porque abandonara a natureza
alegre por certa casmurrice tal qual a falecida irmã. Transformara-se
na outra.
A velhice e o hábito recluso lançaram-na mais depressa à
esclerose. Agora sequer conversava. Falava muito da morte, recordava sozinha
e em voz alta pessoas antigas e já falecidas. Confessava coisas da juventude
em meio a frases soltas e tresloucadas. Um dia assaltou-nos com uma verdade
perdida na cegueira do tempo: fora também mulher do cunhado. Amara-o
desde que se reencontrara com a irmã. Pedia que a irmã a perdoasse.
Calou-se e nunca mais falou.
Agora já passados mais de trinta anos da morte de tia Cosma, ela ainda
vive como uma árvore ressequida e desfolhada. Não fala, mal come,
quase não respira. Agarrada a vida que nunca lhe deu frutos, mas de que
não se quer apartar. Ao contrário da irmã, cuja fertilidade
a fez repleta de filhos, tia Damiana tinha a si mesma, mas dá-se inteira
à vida - é sua única fertilidade e talvez o elo maior que
a une a irmã. Está condenada a viver, e esse contra-senso me perturba.