A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A garagem

(Emil de Castro)

Apareceu por entre os dormentes amontoados em fileira à beira da rua, foi-se esgueirando de fininho, ressabiado, olhou para a garagem da casa do padrinho e ouvindo voz de gente, pôs-se a correr desabaladamente.

- Lá vai ele!

Era a voz do padrinho que vinha na dianteira do pessoal, esbravejando com o dorso nu. Espalharam-se por entre os dormentes. O gordo ficara para trás. Não dera muita importância ao fato, mas era obrigado a fingir que estava solidário com o amigo. "Para os diabos o amigo - falava consigo mesmo - à mulher não se dá sopa. É isto que acontece. Vagabunda!" Alcançou o primeiro monte de dormentes, parou para descansar. Já não aguentava mais a corrida. Fosse para o inferno a mulher do amigo. O garoto tinha razão em fazer aquela desfeita com ela. Esperou sentado no dormente, quando ouviu o alarido da voz do pessoal que voltava.

- Sumiu como por encanto, o desgraçado do moleque!

O gordo suspirou aliviado. A camisa empapada de suor colada ao peito de tal maneira que chegava a retardar-lhe os movimentos dos braços. O padrinho parou diante dele praguejando. O gordo observou a cicatriz que ele tinha do lado do baço: um talho que atravessava a barriga lado a lado.

Zeda esperou alguns minutos depois que o pessoal passou, encolhido junto da mureta da linha férrea. Quando notou que tudo estava realmente em calma, abandonou a toca e voltou para casa. Passava diante da janela dos fundos da casa do padrinho, ainda meio ressabiado, quando um psiu vindo do canto da garagem sobressaltou-o. Sentiu-se completamente perdido. Agora já não tinha mais jeito pra escapar. Permaneceu parado no lugar, sem se mexer. A mulher estava ali defronte dele, bem no meio do caminho, o corpo todo impedindo a sua passagem. Desta vez não havia escapatória. A mulher chamaria o padrinho, gritaria os vizinhos, escândalo!

Zeda baixou os olhos para o chão, procurou desculpar-se.

- A senhora me desculpe a ousadia.

Ela continuou calada. Zeda quase não tinha em que se apegar. As palavras não lhe obedeciam. Ele embaralhava tudo. Complicava as coisas.

- Não sei como pude. Deu-me uma vontade.

A mulher deixou cair os braços junto do corpo. Segurou no blusão de Zeda com as pontas dos dedos.

- Entre aqui, Zeda.

Ele não se moveu.

- Venha. Vamos apenas conversar.

Zeda penetrou na garagem, sem saber por que o fazia. Ela sentou-se num monte de sacos de lona, vazios. Convidou-o a sentar. Zeda recusou o convite. Tentou arranjar uma desculpa.

- Foi tudo tão repentino. Não fui eu não senhora. Não estava em mim naquele momento. A senhora me perdoe, dona Emília. Fala com o padrinho. Não caio noutra não senhora. Não sei o que me deu. Deve ter sido o gole que tomei.

D. Emília fitava-o em silêncio. Trinta e oito anos, mas não parecia ter esta idade. Usava os cabelos soltos sobre os ombros e eles lhe cobriam metade do decote da parte de trás do vestido. Os olhos negros enormes; umas sobrancelhas assim como se pintada a lápis-tinta.

- Não precisa ter medo de mim, Zeda.

Ela interrompeu as explicações dele, e mais num tom de ordem do que de pedido:

- Senta aqui, Zeda!

Então ele sentou-se. Aos poucos foi acostumando-se com o silêncio que d. Emília fazia de vez em quando. Ele também abaixou o tom de voz. A respiração tornara-se ofegante. D. Emília olhou-o fundamente nos olhos. O corpo de Zeda tocava-lhe de leve no seu. Zeda percebeu que o primeiro passo tinha mesmo que ser o dele. Por isso ameaçou levantar-se par deixar a garagem. D. Emília alcançou-lhe a bainha da calça, puxou-o para perto do seu corpo sem vexar-se.

- Só esta vez, Zeda!

Os dormentes tinham sido recolhidos por uma prancha da Estrada de Ferro, e no lugar deles um caminhão descarregava uma batelada de tijolos. Zeda estava sentado no cimentado da mureta, picando uma vara com o canivete, tão entretido naquilo, que não percebeu a aproximação do gordo. Só quando ele lhe tocou no ombro.

- Preciso de você, Zeda!

- De mim?

- Se a gente se entender, vou precisar.

- Então se conversa.

- Depois, não. Agora, Zeda.

- Pois fale. Vai falando.

O gordo olhou em redor. Enfiou a mão no bolso e retirou uma folha de caderno dobrada com cuidado. Voltou-se para Zeda, colocou-a no bolso da camisa e, sem ouvir a confirmação do outro, indagou:

- Quanto se paga por um favor?

Como Zeda não respondesse, apalpou os bolsos, apanhou a carteira gorda de dinheiro, empalmou-a, abriu, folheou as notas com o dorso do polegar e retirando uma cédula de mil, deixou-a cair junto do corpo de Zeda. O outro tentou dizer que não podia fazer nada. O gordo, porém, não esperou a resposta. Afastou-se bruscamente, deu as costas para Zeda e gritou:

- Na garagem!

Zeda quis continuar a picar a vareta, mas não conseguia reter o canivete com firmeza na mão. Sentiu que o corpo inteiro tremia. Um gosto de bílis subia da garganta, enchia-lhe a boca d'água, transbordava escorrendo pela ventosa do nariz. Zeda levantou-se de um salto, agarrou o maço de cigarro e tentou fumar, numa tentativa de evitar o vômito. O cigarro tombou de suas mãos. Zeda levou a mão à boca, num último esforço, mas não evitou aquele jorro de espuma esverdeada que deslizou por sua camisa abaixo.

Naquela noite não conseguiu dormir. Acordou na manhã seguinte com os olhos inchados e com a boca amargando. Depois que tomou café, saiu para a rua. Três ou quatro vezes sofrera aquele distúrbio do fígado. O médico aconselhara que ele deixasse de fumar, pelo menos, durante uns dois meses. No entanto ele não conseguira abandonar o fumo mais do que três dias. Agora mais do que nunca, vinha fumando desbragadamente, cigarro após cigarro. E d. Emília era a culpada. Ela bem que poderia ser mais compreensiva. Não havia motivo para persistir naquela intransigência. Ele era de casa, morava com ela, dormiam a um passo um do outro, uma porta apenas os separava. Um pedaço de madeira retangular, mais nada. Padrinho não desconfiara da primeira vez. "Por que, d. Emília?" E ela de costas balançava a cabeça: "Nunca mais, Zeda. Eu te avisei". Foi naquele dia que Zeda quis vingar-se dela.

- Te mandaram um bilhete, d. Emília. Toma!

Zeda atirou o papel e bateu a porta.

Arrumou a mala com suas coisas, acabou de ajeitar os papéis da gaveta do padrinho e no meio dele colocou o bilhete escrito na noite anterior. Eram apenas três ou quatro linhas. Nada revelava. Agradecia somente o trato. Um dia pago, acrescentava abaixo.

No dia seguinte, d. Emília cansou-se de bater na porta de seu quarto. Estava resolvida a ceder. Zeda era o único que não sabia a verdade. Até a cidade desconfiara. Ninguém condenava. Mas Zeda era inocente. O padrinho não tinha mais jeito. Estava decrépito.

D. Emília empurrou a porta do quarto e entrou. Pobre Zeda! Mas não podia fazer nada por ele. Começou a caminhar para a porta de saída. O gordo estava esperando por ela havia quase meia-hora.

  • Publicado em: 10/11/2010
menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br