Apareceu por entre os dormentes amontoados em fileira à beira da rua,
foi-se esgueirando de fininho, ressabiado, olhou para a garagem da casa do padrinho
e ouvindo voz de gente, pôs-se a correr desabaladamente.
- Lá vai ele!
Era a voz do padrinho que vinha na dianteira do pessoal, esbravejando com o
dorso nu. Espalharam-se por entre os dormentes. O gordo ficara para trás.
Não dera muita importância ao fato, mas era obrigado a fingir que
estava solidário com o amigo. "Para os diabos o amigo - falava consigo
mesmo - à mulher não se dá sopa. É isto que acontece.
Vagabunda!" Alcançou o primeiro monte de dormentes, parou para descansar.
Já não aguentava mais a corrida. Fosse para o inferno a mulher
do amigo. O garoto tinha razão em fazer aquela desfeita com ela. Esperou
sentado no dormente, quando ouviu o alarido da voz do pessoal que voltava.
- Sumiu como por encanto, o desgraçado do moleque!
O gordo suspirou aliviado. A camisa empapada de suor colada ao peito de tal
maneira que chegava a retardar-lhe os movimentos dos braços. O padrinho
parou diante dele praguejando. O gordo observou a cicatriz que ele tinha do
lado do baço: um talho que atravessava a barriga lado a lado.
Zeda esperou alguns minutos depois que o pessoal passou, encolhido junto da
mureta da linha férrea. Quando notou que tudo estava realmente em calma,
abandonou a toca e voltou para casa. Passava diante da janela dos fundos da
casa do padrinho, ainda meio ressabiado, quando um psiu vindo do canto da garagem
sobressaltou-o. Sentiu-se completamente perdido. Agora já não
tinha mais jeito pra escapar. Permaneceu parado no lugar, sem se mexer. A mulher
estava ali defronte dele, bem no meio do caminho, o corpo todo impedindo a sua
passagem. Desta vez não havia escapatória. A mulher chamaria o
padrinho, gritaria os vizinhos, escândalo!
Zeda baixou os olhos para o chão, procurou desculpar-se.
- A senhora me desculpe a ousadia.
Ela continuou calada. Zeda quase não tinha em que se apegar. As palavras
não lhe obedeciam. Ele embaralhava tudo. Complicava as coisas.
- Não sei como pude. Deu-me uma vontade.
A mulher deixou cair os braços junto do corpo. Segurou no blusão
de Zeda com as pontas dos dedos.
- Entre aqui, Zeda.
Ele não se moveu.
- Venha. Vamos apenas conversar.
Zeda penetrou na garagem, sem saber por que o fazia. Ela sentou-se num monte
de sacos de lona, vazios. Convidou-o a sentar. Zeda recusou o convite. Tentou
arranjar uma desculpa.
- Foi tudo tão repentino. Não fui eu não senhora. Não
estava em mim naquele momento. A senhora me perdoe, dona Emília. Fala
com o padrinho. Não caio noutra não senhora. Não sei o
que me deu. Deve ter sido o gole que tomei.
D. Emília fitava-o em silêncio. Trinta e oito anos, mas não
parecia ter esta idade. Usava os cabelos soltos sobre os ombros e eles lhe cobriam
metade do decote da parte de trás do vestido. Os olhos negros enormes;
umas sobrancelhas assim como se pintada a lápis-tinta.
- Não precisa ter medo de mim, Zeda.
Ela interrompeu as explicações dele, e mais num tom de ordem do
que de pedido:
- Senta aqui, Zeda!
Então ele sentou-se. Aos poucos foi acostumando-se com o silêncio
que d. Emília fazia de vez em quando. Ele também abaixou o tom
de voz. A respiração tornara-se ofegante. D. Emília olhou-o
fundamente nos olhos. O corpo de Zeda tocava-lhe de leve no seu. Zeda percebeu
que o primeiro passo tinha mesmo que ser o dele. Por isso ameaçou levantar-se
par deixar a garagem. D. Emília alcançou-lhe a bainha da calça,
puxou-o para perto do seu corpo sem vexar-se.
- Só esta vez, Zeda!
Os dormentes tinham sido recolhidos por uma prancha da Estrada de Ferro, e no
lugar deles um caminhão descarregava uma batelada de tijolos. Zeda estava
sentado no cimentado da mureta, picando uma vara com o canivete, tão
entretido naquilo, que não percebeu a aproximação do gordo.
Só quando ele lhe tocou no ombro.
- Preciso de você, Zeda!
- De mim?
- Se a gente se entender, vou precisar.
- Então se conversa.
- Depois, não. Agora, Zeda.
- Pois fale. Vai falando.
O gordo olhou em redor. Enfiou a mão no bolso e retirou uma folha de
caderno dobrada com cuidado. Voltou-se para Zeda, colocou-a no bolso da camisa
e, sem ouvir a confirmação do outro, indagou:
- Quanto se paga por um favor?
Como Zeda não respondesse, apalpou os bolsos, apanhou a carteira gorda
de dinheiro, empalmou-a, abriu, folheou as notas com o dorso do polegar e retirando
uma cédula de mil, deixou-a cair junto do corpo de Zeda. O outro tentou
dizer que não podia fazer nada. O gordo, porém, não esperou
a resposta. Afastou-se bruscamente, deu as costas para Zeda e gritou:
- Na garagem!
Zeda quis continuar a picar a vareta, mas não conseguia reter o canivete
com firmeza na mão. Sentiu que o corpo inteiro tremia. Um gosto de bílis
subia da garganta, enchia-lhe a boca d'água, transbordava escorrendo
pela ventosa do nariz. Zeda levantou-se de um salto, agarrou o maço de
cigarro e tentou fumar, numa tentativa de evitar o vômito. O cigarro tombou
de suas mãos. Zeda levou a mão à boca, num último
esforço, mas não evitou aquele jorro de espuma esverdeada que
deslizou por sua camisa abaixo.
Naquela noite não conseguiu dormir. Acordou na manhã seguinte
com os olhos inchados e com a boca amargando. Depois que tomou café,
saiu para a rua. Três ou quatro vezes sofrera aquele distúrbio
do fígado. O médico aconselhara que ele deixasse de fumar, pelo
menos, durante uns dois meses. No entanto ele não conseguira abandonar
o fumo mais do que três dias. Agora mais do que nunca, vinha fumando desbragadamente,
cigarro após cigarro. E d. Emília era a culpada. Ela bem que poderia
ser mais compreensiva. Não havia motivo para persistir naquela intransigência.
Ele era de casa, morava com ela, dormiam a um passo um do outro, uma porta apenas
os separava. Um pedaço de madeira retangular, mais nada. Padrinho não
desconfiara da primeira vez. "Por que, d. Emília?" E ela de
costas balançava a cabeça: "Nunca mais, Zeda. Eu te avisei".
Foi naquele dia que Zeda quis vingar-se dela.
- Te mandaram um bilhete, d. Emília. Toma!
Zeda atirou o papel e bateu a porta.
Arrumou a mala com suas coisas, acabou de ajeitar os papéis da gaveta
do padrinho e no meio dele colocou o bilhete escrito na noite anterior. Eram
apenas três ou quatro linhas. Nada revelava. Agradecia somente o trato.
Um dia pago, acrescentava abaixo.
No dia seguinte, d. Emília cansou-se de bater na porta de seu quarto.
Estava resolvida a ceder. Zeda era o único que não sabia a verdade.
Até a cidade desconfiara. Ninguém condenava. Mas Zeda era inocente.
O padrinho não tinha mais jeito. Estava decrépito.
D. Emília empurrou a porta do quarto e entrou. Pobre Zeda! Mas não
podia fazer nada por ele. Começou a caminhar para a porta de saída.
O gordo estava esperando por ela havia quase meia-hora.