Vim a São João Marcos para cumprir meu juramento na cabeceira
de minha mãe. "Você tem que voltar lá para saber a
história verdadeira" foi o que ela determinou e eu tive que cumprir.
Todavia não foi só por sua vontade, havia os meus motivos, minha
razão particular e só minha de descobrir o que aconteceu naquele
dia fatídico, um dia de dor e sangue, como estampou em manchete o jornal
local.
Ninguém prestou atenção na minha chegada, apesar de eu
ter mandado um telegrama para minha tia. Na verdade, eu não era uma figura
importante que causasse alguma curiosidade em alguém. Se fosse em outro
tempo, na época de meu avô, poderia ser uma visita muito importante,
mas agora nem minha tia se lembrou de que um sobrinho chegaria na cidade. Com
certeza ela deve ter ficado chateada, não é que não ficasse
contente em receber o filho mais velho de seu irmão que não via
há mais de 20 anos, mas por causa das festividades.
A cidade estava em festa. Minha tia era a maior festeira de seu tempo, conhecida
por sua facilidade em aproximar as pessoas e jamais seu nome deixava de ser
incluído nas comissões de festa do santo padroeiro. Deve ter pensado
que não teria o sobrinho um dia melhor para visitar a sua única
tia viva? Como se tudo na vida fosse planejado como se quer, principalmente
na nossa família que trazia a sina de causar tantas coisas surpreendentes.
Não vou bater pé firme com essas ideias sem sentido. Se
vim até aqui, é porque o destino me impôs. Discutir é
o que menos me interessa nessa altura dos acontecimentos. Vim porque tenho que
decifrar o mistério que atormentou meu pai. Mesmo que minha tia não
apareça, ou quem sabe nem tenha como aparecer depois de tantos anos.
Quem sabe ela não tenha morrido de fato como parecia ter ocorrido contra
a vontade de minha mãe que afirmava que recebeu uma carta dela pouco
antes de morrer. Pode ser. "Pode ser" era o que meu pai repetia para
si mesmo ao remexer mil vezes nas suas lembranças. "Pode ser"
repetia minha mãe. Eu era o que menos tinha alguma coisa a dizer, a não
ser ouvir sem nada entender desse intricado de mistério.
Vim aqui não propriamente para descobrir a verdade, mas para revelar
a história com toda sua crueza, e é isso que pretendo fazer se
me for permitido por minha tia. Aqui estou de volta onde sempre estive no passado.
Contra a minha vontade, pois jamais gostei de acompanhar meu pai nas suas visitas
à minha tia. Se nasci em São João Marcos não foi
por minha decisão, nem poderia ser, eu sei disso. Algo do meu interior
me assegurava essa certeza de que eu não desejava essa terra como meu
berço natal. Pura tolice. Aliás, como tolice foi o que levou meu
pai a insistir naquela fixação de querer desvendar o que parecia
não poder ser desvendado: o mistério da tragédia que o
mortificou toda a vida.
Agora eu estava mais próximo do casarão. Bastava atravessar a
ponte sobre o rio do Bagre, subir a ladeira e desembocar no lado oposto da praça
central. Pronto, com um abrir e fechar de olhos, estaria a um passo do portão
do fundo do casarão. Era o caminho que minha mãe me ensinou. O
caminho que ela sempre fizera todo santo dia para ir à farmácia
do Gonçalves. O caminho por onde meu avô passou para conhecer sua
mulher. Mas essa é outra história. A história que me interessa
é a que o levou a agir como agiu daquela forma. O que o levou a matar
sua mulher, a filha e suicidar-se enforcado no galho da grande figueira que
atravessava seus galhos sobre o rio do Bagre era o mistério que meu pai
levou a vida toda a decifrar, se tornando um homem destroçado. Isso depois
de recobrar a memória 10 anos após o acontecimento. O que contava
minha mãe. Meu pai foi quem encontrou os corpos e entrou em estado de
choque. Não era mais do que um menino de 12 anos que via no pai a imagem
que adorava. "Virou mania" falou minha mãe. O pai muitas vezes
contou o fato para todos os que vinham de São João Marcos visitá-lo.
Mil vezes repetiu a história com todos os detalhes, como encontrou os
corpos da mulher, sua mãe, e da filha, sua irmã, e o pai pendurado
no galho da figueira, o corpo a balançar de um lado para o outro. A mãe
jamais o contrariou no que ela dizia ser a sua sina. Pelo contrário,
ela dava o seu colorido na história, acrescentando alguns qualificativos
que a tornava algo mais poética e menos dolorosa para quem se via obrigado
a participar daquela tragédia.
Um dia, no entanto, o pai pareceu não se interessar mais pela história.
Quando alguém de lá vinha à sua casa, de passagem, ele
já não falava mais nada sobre o assunto. Com certeza teria apagado
dentro de si a memória daqueles fatos. Quando a visita partia, ele entrava
para o seu quarto, onde se trancava e permanecia durante horas, sem dar de si.
No princípio a mãe ficou preocupada, mas depois, como ele nunca
deixou de sair, ela aceitou suas justificativas. O pai, na verdade, jamais perdera
a normalidade. Jamais perdera o tino das coisas. Agia com a mesma naturalidade
de sempre e não deixava ninguém perceber qualquer desvio de conduta.
Assim corriam as coisas. O pai se isolava no quarto e lá ficava horas
e horas e depois tudo voltava ao normal. Somente com sua morte, tranquila,
durante uma noite de inverno, e de sua mulher, minha mãe, é que
penetrei no seu quarto e observei a gaveta da escrivaninha fechada à
chave. Alguma coisa importante nela estaria encerrada. Talvez a resposta de
todo o mistério. A resposta que o pai tanto procurava. A resposta que
hoje eu ainda procuro e tenho a esperança de encontrar senão nos
papéis que permaneceram no casarão, quem sabe na poeira das ruas
da cidade.
Abri a gaveta com todo o cuidado, com o auxílio de uma chave de fenda,
pois que não encontrei a chave que a fechava. Foi então que entendi
o que ele fazia trancado no seu quarto. Ele, cansado de tanto narrar a mesma
história por infinitas vezes, passou a escrevê-la para si mesmo
e a cada vez dava uma versão nova para a velha história. Versões
que pareciam inverossímeis, porém conservando o mesmo tom de mistério.
Mas é a verdadeira história do por que todos morreram que vim
aqui descobrir. Se é que minha tia não foi como os outros arrastada
pelas águas da represa que arrasaram a cidade.
Vim para desvendar o mistério que atormentou o meu pai. Sei que de nada
me adiantará descobrir a verdade. Meu pai na sua última versão
diz que meu avô era um homem bom. Sei que ele era um homem bom. Sei também
que meu pai escreveu que minha avó jamais traiu meu avô e que tudo
não passou de um breve momento de loucura. "Minha avó era
uma santa", foi o que escreveu meu pai na sua última versão.
Pode ser verdade. Quem sabe? É por isso que vim a São João
Marcos. Somente por isso e nada mais. A verdade? Meu pai a levou para o túmulo
depois que tanto a reescreveu com o próprio sangue. Mas será que
minha tia poderá revelar o grande mistério? Vim aqui somente por
esse motivo. Amanhã quem sabe saberei a verdade.
(29.05.2003)