A Garganta da Serpente
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Butterfly

(Eliane Cândido)

-Ainda sinto o cheiro forte e ácido do éter, o gosto amargo que penetra nas entranhas e entontece, não pude lutar, não vi ninguém, só a mão com um pano branco aproximando-se de meu rosto incrédulo. Apaguei.

Acordo e olho em volta assustada.

O cômodo iluminado apenas por um lustre antigo dá ao lugar uma atmosfera melancólica e assustadora. As paredes e o chão de pedra, uma grande mesa de madeira antiga organizadamente lotada de vidros cheios de líquido de todas as cores e tubos de ensaio fumegantes.

Tento levantar-me, só então sinto que estou com as mãos amarradas à cama, meu instinto impulsivo é reagir imediatamente, fugir:

- Preciso sair daqui, quem fez isso comigo vai voltar.

Onde estou?

Depois de várias tentativas de fuga sinto meu corpo frágil, debilitado, não sei há quanto tempo estou sem comer, sinto muita sede, minha garganta dói e o cansaço toma conta do meu corpo, durmo profundamente.

II

-Estaciono meu Sedan preto em frente ao chalé, vou até o porta-malas e retiro uma mala de primeiros-socorros e uma caixa de madeira escura com alças de couro.

Na porta lateral do chalé olho ao redor, todo cuidado é pouco, ninguém pode ver nem saber o que estou fazendo aqui. Entro no chalé e subo as escadas com pressa, vou até a porta no final do corredor e entro sem fazer barulho.

Logo percebo que minha pequena butterfly tentou soltar-se, os pulsos ainda estão vermelhos. Desamarro as cordas com cuidado. Admirando seus traços delicados por alguns instantes, nunca estive tão perto dela.

Passei anos, meses, dias, horas observando ela de longe, quando saía para o trabalho, quando voltava para casa, se estava sozinha, feliz ou triste. Sabia de cada passo e o que gostava de fazer.

Só não gosto de a ver com o namorado, por isso ela está aqui, para proteger a mulher que desejo. Quero-a só para mim. Meu desejo arde, tenho vontade amá-la assim mesmo ainda desacordada, mas quero que ela seja minha quando também me desejar.

-Manterei ela aqui até que perceba que posso fazê-la feliz.

A primeira vez que a vi foi quando ela mudou-se há dois anos para a casa em frente a minha.

Gostava de contemplá-la inteira, os ombros nus, a beleza feminina dos seios, mas o que mais me encanta são os olhos, misteriosos e tristes, mesmo quando sorri seus olhos não escondem uma pontinha de melancolia, seus olhos falam por ela e me transportam para um mundo de magia em que me sinto envolvido como raras vezes me senti.

Nas minhas longas noites de sôfrego desejo e paixão, vigiava sua janela enquanto trabalhava em minhas pesquisas e preparava as aulas de biologia para o dia seguinte. Longas noites de trabalho e amor platônico que só encontram alívio quando estou no meu chalé, onde estudo e cuido de borboletas feridas, as que não sobrevivem são catalogadas e eternizadas com sua delicada beleza efêmera.

III

Acordo com os pulsos doloridos:

-Alguém esteve aqui e me desamarrou.

Levanto, vou até a mesa onde tem uma mala branca de medicamentos e faço um curativo nos pulsos, tomo água e penso em procurar algo para comer quando uma caixa de madeira chama a minha atenção, tenho a nítida impressão de que já vi essa caixa antes.

Puxo a alça de couro e a caixa abre em pequenos compartimentos, em cada um deles borboletas de todas as cores com o nome científico, local e data em que foi encontrada.

Vou até uma pequena porta de madeira e para minha surpresa vejo que está destrancada, passo por um longo corredor, desço a escada e entro na sala onde me deparo com um ambiente aconchegante, a lareira acesa, chego mais perto do fogo e fico ali por um instante até ver uma parede inteira coberta de livros.

Tudo aqui é fascinante, mesmo com medo estou encantada.

Ouço passos na varanda se aproximando e não posso deixar de sentir medo, ao mesmo tempo quero ver quem me trouxe até aqui, quem quer que seja não me fez mal algum pelo menos até agora.

Quando abre a porta e vejo meu vizinho não entendo imediatamente o que ele faz ali, nunca nos falamos, vejo-o sempre só.

Ele fala de todo seu amor e paixão e diz que agora eu sou uma de suas borboletas, que não poderei mais sair do chalé, que ali tem tudo o que preciso.

-Você não pode fazer isso comigo, eu quero ir embora agora.

Vejo o semblante dele se transformando. Onde antes via um homem sereno e doce agora vejo a fúria em seus olhos, ele vem em minha direção e segura minhas duas mãos junto ao peito dele, meu corpo colado ao corpo dele.

Não sei de onde surge uma corda, ele amarra minhas mãos e fico imobilizada.

Ele me joga no chão, no tapete da sala e como um lobo faminto e selvagem rasga minha blusa, meu peito arfante de medo e raiva. Grito, mas meu grito é sufocado pelos lábios quentes dele, me beija com tanta sofreguidão que seus dentes arranham meus lábios.

Desce a língua pelo meu corpo enquanto suas mãos erguem minha saia e abrem minhas pernas, eu luto e me debato, mesmo com as mãos amarradas arranho a pele branca do peito dele, já estou cansada e fraca, mas busco forças não sei de onde para me livrar daquele corpo pesando sobre o meu.

Ele tira a própria roupa e nu me abraça e me faz sentir seu cheiro, seu gosto, me faz sentir a textura da pele, o desejo explodindo a espera de ser saciado.

Ele me possui inteira e eu não me debato mais.

Apenas me mantenho imóvel. Como um animal já ciente do seu fim.

Ele ainda está ao meu lado e eu sem dizer nada, apenas olho para o teto de madeira;

Sinto que a culpa é minha, eu o atraí mesmo sem perceber, eu o seduzi. O pior de tudo é constatar que senti prazer quando ele me possuiu, senti prazer, raiva e dor.

Senti-me vulnerável como uma borboleta e culpada pelo prazer que ele despertou em mim.

Ele me leva de volta para o quarto de pedras, me amarra a cama, ainda nua e me cobre com uma manta, sem falar nada desparece pela porta.

Estou presa neste chalé e não sei quanto tempo faz que estou aqui, aos poucos fui me habituando a rotina dele, vem todos os dias, traz tudo que preciso. Enquanto leio um livro ele trabalha naqueles tubos e nas pequenas borboletas que ele toca com o maior cuidado.

Já não o rejeito mais, tornei-me amante dele.

Amante do meu sequestrador.

Tornei-me uma de suas borboletas.

Mas não passa um dia em que eu não pense em fugir daqui. E hoje notei que ele está estranho, sempre fala pouco, mas hoje ele não falou absolutamente nada.

Fez sexo comigo de uma forma delicada e intensa.

Enquanto tomo banho ouço os passos dele na escada, ele está indo embora. De repente tenho uma sensação de perda, saudade dele, como se ele fosse embora para sempre e nesse momento me dou conta de que o amo.

Visto o roupão e corro até a sala, vejo que ele deixou a porta aberta:

-Não acredito que finalmente vou conseguir fugir daqui. Pensei.

Mesmo de roupão abro o grande portão de ferro e saio para a rua. Ainda vejo o carro dele longe, sumindo no meio do trânsito da cidade.

Relembro tudo que se passou comigo naquele chalé e como um "déjà vu" todos os momentos se juntam e se separam formando um puzzle. Olho para as casas e as pessoas passando indiferentes e apressadas por mim, está anoitecendo e sinto frio.

Volto para o chalé e me deito em frente à lareira.

E espero por ele..

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