A Garganta da Serpente
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O aposentado

(Evan do Carmo)

Na cidade do rio Janeiro, havia um homem robusto, um verdadeiro atleta, um militar disciplinado que servira ao país durante toda sua vida útil. O Sr José Ribeiro. O mesmo tinha mulher, e apenas um filho macho. Com muita bravura e patriotismo serviu ao exército durante a segunda grande guerra. Foi um dos pracinhas que foram para Itália apoiar os aliados, que combatiam contra o III Reich, esse foi o nome adotado no tempo em que vigorou o regime nazista (de 1933 a 1945) para a Alemanha e o grande império formado pelas nações por ela conquistadas para servir sob o domínio da Raça Ariana preconizada por ele. O nome foi escolhido pelas ideias do Partido Nacional Socialista alemão (Nationalsozialismus - nazismo), liderado por Adolf Hitler.

Um fato estranho, no entanto, foi que apesar da vontade que os conduzia para a euforia da guerra, com a ideia de se tornarem heróis; ficaram muito felizes ainda quando receberam a notícia para voltarem, não haveria mais a necessidade de lutar, pois, Adolf Hitler perdera a grande guerra em um dia sagrado, quando a humanidade se viu livre da bactéria mais nociva que viera do inferno, e que já pousara sobre este planeta.

Voltando para sua terra de origem, o Soldado raso viraria sargento, promovido e recebido como herói, também receberia uma gorda pensão. Não seria mais submisso ao regime militar, desfrutaria seus dias em paz, longe da expectativa de uma nova guerra.

Em casa, sua esposa estava também em paz, e o esperava com os braços abertos. O filho porém, já homem feito, não se apresentava para lhe prestar homenagem como fazia sua esposa, que sempre lhe acompanhara com o dom do espírito para onde quer que ele fosse.

O filho sempre fora um tanto confuso, não gostava muito das letras, dera muito trabalho para mãe, enquanto criança e quando deixou de ser, não melhorara em nada sua conduta, fato esse, que a mãe nunca revelara para o pai, as suas peripécias de jovem delinquente. Achava que o pai era muito o rígido, e por achar que ele seria duro demais na repreenda, devido o fato de ser militar, e homem de muita honra, não aceitaria as maledicências de um filho rebelde. Sua vida não lhe permitia que desse a atenção diária que devia ao rapaz, que crescera à sombra da conivência da mãe, que se achava tanto generosa por proteger o rapagão do pulso firme do pai.

Todavia, não fora sempre assim, depois que aposentado ficou, o Senhor José, já percebia que o filho não era flor para se cheirar, a não ser se estando embriagado. Logo que se tornou maduro, e que contraiu matrimônio, mostrou de fato quem era: um magnífico explorador de seus pais idosos. A mãe que tinha saúde fraca morreu pela soma dos desgostos sofridos, na maioria das vezes em secreto. Ficando o velho José só, para conviver com seres estúpidos, que não lamentavam suas confusões, que muitas vezes levava suas vítimas ao hospital, pela fúria e violência que empregava para rechaçar a quem ousasse lhe condenar, pelo modo opressivo que tratava seu bondoso e idoso pai. Dizia sempre depois do acontecido, que fora por causa do excesso de álcool. Todavia, o malfeitor não escondia mais suas intenções, com relação ao seu cansado pai, que não estava assim tão inútil. O seu José, como era respeitado em todo seu bairro, carregava consigo ainda algum vigor, no entanto, não demonstrava. Parecia, ser de fato, um homem indefeso. Ninguém seria capaz de prever do que seria capaz tão manso e bondoso homem, apesar de sua formação militarista.

Uma vez viúvo, o sargento José não mais suportaria os desmando de um filho. Era tempo de tomar uma atitude mesmo que fosse drástica, porém que removesse aquela escravidão.Todo dinheiro que recebia da pensão do estado, não lhe servia, pois o filho tomava para suprir suas próprias necessidades e os abusos do vício.

Os vizinhos não suportavam mais o sofrimento de um homem tão bom, e um amigo de todos, as dores do pai injustiçado eram as dores de toda uma vila de moradores antigos, que conheciam de perto a história daquela infeliz família. Entre os bons vizinhos, havia um que merece nossa atenção:

Uma senhora que padecia de uma singular doença, entretanto, não media esforços para auxiliar o querido vizinho que perdera a companheira. Então esta amiga vizinha fazia às vezes da esposa, concernente às obrigações domésticas. Lavava e passava as roupas do seu José, arrumava a casa, porém, sempre sob os protestos do José que dizia que ela não devia se preocupar com ele, e sim, que devia cuidar de sua saúde fraca.

Todavia, o filho, não levava em conta o estado de doença da boa vizinha. Muitas vezes, quando ia perturbar a paz do pai, sempre em busca de mais dinheiro para acalentar suas inquietações causadas pela abstinência das drogas e do álcool. O quadro de delinquência piorava a cada dia. Um certo dia quando lá estava a infernizar a vida, ou o resto de vida que possuía o pai, a senhora abnegada chegou no calor da discussão, e não pode se conter, tamanha fora a pressão que viu o maldito varão dispensar sobre as costas cansadas de seu velho pai. Então intercedeu a favor do seu amigo:

-Não faça isso com seu pai meu filho! Não vê que ele já não aguenta mais tanta pressão, e que você vai acabar matando-o?

-Não se meta! Velha atrevida, isso não lhe diz respeito. Ele é meu pai, e o que eu faço ainda é pouco! Ele merece tudo isso, e muito mais.

-Como pode dizer uma insanidade dessas? Seu pai sempre foi um homem exemplar. Sua mãe nunca reclamou da sua conduta, um pai e um marido, que muito nessa cidade gostariam de ter.

-Você não sabe de nada, eu vivi só, ele ia e vinha sem se preocupar como eu me sentia na sua falta. E eu sempre usei drogas, minha mãe não falava pra ele com medo, da sua mão de ferro, que nunca parou para me dá um carinho.

Enquanto acontecia este diálogo tolstoiano, o seu José se mantinha inerte sobre o efeito das sombrias revelações que ele não sonhara sequer, que sua esposa tão leal pudesse esconder dele, coisa tão séria, e reveladora de sua própria consciência de tudo que acontecia debaixo dos seus olhos. Não podia conceber a ideia de ser ele o principal culpado por todo desvio de personalidade do único filho.

Não acreditava no que ouvia, e, com efeito, pode recordar os dias em que vivia envolto nos seus afazeres de militar, quando achava que em casa tudo corria as mil maravilhas sob os cuidados da mãe tão capaz. Todavia, era preciso parar com aquela situação. Um homem da sua estatura moral se via sem desonra, toda vizinhança comentava sobre a sua passividade diante da injustiça do filho viciado.

As dores do pai, que até então se achava um exemplo no que tange prover as necessidades da família, se via agora em um dilema emocional: o de saber de forma tão abrupta, que não fora competente em edificar no filho as qualidades morais que possuía. No fundo, ele sabia que fora mesmo um pai um tanto ausente, que delegou as responsabilidades de pai para uma mãe também incapaz de imprimir um caráter probo numa criança, que precisava de mão firme para se adequar às regras que se exigia de um cidadão de bem.

Por semanas, ficou o José a meditar nas palavras que ouvira do filho revoltado, que de alguma forma fora vítima de uma criação relapsa. Todavia, não justificava suas atitudes, o desrespeito notório a todos os moradores do seu bairro. Todos os dias que vinha visitar o pai, o filho ingrato forçava a barra para que ele lhe desse todo seu dinheiro, e quando se negava, ele tomava à força.O filho do José não lhe dava atenção que precisava, por se tratar de um velho já com as mazelas da idade avançada. Muitas vezes era socorrido por aquela boa alma, que estava sempre atenta para lhe auxiliar em todas as suas desventuras emocionais.

Enquanto isso, o filho do José também se afogava em um mar de desilusão, só que sob a mão poderosa das drogas, onde ele buscava resposta para sua confusa existência. Acontece que mesmo uma pessoa, que por algum tempo tenha vivido sobre os trilhos da moral, conduzido por princípios; uma vez escravo das drogas não responde mais por suas ações, sobretudo, quando está enlouquecido pelo ópio alucinante. É muito perigoso o convívio com alguém que faz uso de qualquer tipo de drogas, e não pense que o álcool não faz parte das drogas mais nocivas à mente humana.

Um dia, depois de gastar tudo que tinha e o que não tinha, depois de vagar por dias longe de casa, o filho do José, como era costume, aparece, desta feita, à meia noite, fazendo estardalhaço, gritando que ia matar o pai se o mesmo não lhe desse mais dinheiro para completar sua loucura.

O Senhor José acordou atordoado pelo escarcéu que vituperava mais uma vez a sua reputação diante das pessoas que lhe tinha em alta-estima, apesar de saberem dos rumores a respeito do filho delinquente. Até então, tinha mantido as confusões maiores em secreto, os piores abusos que sofria às mãos impiedosas do filho único. Todavia, aquela noite, um homem pacato que não se excedia em nenhum limite, não suportaria passivo outra violação dos seus direitos. Depois de ouvir o que mudaria de uma vez para sempre sua história de homem calmo, depois de ouvir o que não queria, e o que não imaginaria, ainda mais sobre os ouvidos atentos dos seus bons vizinhos, seu José não teria mais cara para encarar seus conhecidos, aquelas pessoas que ele conhecia desde o tempo de rapaz. Também sabia que todos esperavam dele uma atitude à altura da sua reputação, do nome que construira em muitos anos de dedicação e companheirismo social. Vivendo a angústia derradeira, de um pai que perdera total e definitivamente o domínio sobre um filho, não sabe mais o que pensar; em sua cabeça só passa a vergonha do dia seguinte, onde todos lhe dirigirão um olhar, no mínimo de repúdio, por ter ele trazido à luz pessoa tão desqualificada como era a olhos nus seu primeiro e último filho.

Entretanto, a confusão não ficaria apenas do lado de fora de casa: sobre o silêncio do pai, o filho arrebenta a porta que sempre estivera aberta, como aberto fora o coração das duas almas que lhe recebera como filho, aquela linda e meiga criança que fora um dia. O filho sobe as escadas, como quem carregava consigo a força de sete demônios, os quais o ajudara a consumir toda droga que encontrara e que pudera comprar com o dinheiro honesto do pai.

Lá em cima, o pai espera descrente, da visão que lhe adiantara o seu estado psíquico-emocional, seria a última vez que olharia nos olhos vermelhos de um ser que ajudara pôr no mundo. Dentro do seu quarto, que fora seu abrigo nas noites de completa solidão, onde sonhava com a sua amada, que partira para não ver o final trágico daquele que tanto amara, até de forma irresponsável, quando omitia do pai os desvios de conduta do filho errante. O bravo José aguardava desfecho de um conflito, o momento que seria o fim trágico para o que restara da sua família.

De arma em punho, assustado, diante de um quadro inimaginável; enquanto o filho sobe as escadas em sua direção com passos firmes e com um pedaço de ferro nas trêmulas mãos, e com a fúria insana no olhar, que denunciava sua resolução final, um pai, um homem que errara por inocente repetição, tenta compreender o incompreensível: como voltar ao passado para consertar um erro irreversível? Todavia, não lhe será permitido uma segunda chance. Há mesmo ações que não serão amenizadas nas suas consequências. Ao ser humano não foi concedido o dom divino de viver várias vidas, só temos direito a uma escolha, se a fizermos mal, não poderemos recomeçar do zero, do zênite da nossa concepção de mundo, sobretudo no que respeita à criação de um filho. Uma vez que o mesmo se torna adulto, não há como fazer de novo, ou fazer de outra maneira, já estará definido, concretizado o nosso projeto, seja ele uma obra prima, ou um mero fracasso, um triste engano, ou um erro de cálculo.

Sobre o poder mágico da angústia, o pai não tem mais raciocínio lógico, agirá como qualquer ser acuado, não discerne bem a gravidade do momento, e seu instinto falará mais alto do que sua pseudorrazão. O pai apenas se defenderia? Como é irônico o instinto humano, que nós humanos, quando nos encontramos longe da frêmita paixão pela vida, chamamos de racionalidade. Há, portanto, crédulos que afirmam: isso sobre os demais: "alguém que ama não pode por motivo algum ser capaz de matar".

Então veremos:

A porta do quarto está bem fechada. Que denota isso? Se por acaso ocorrer um crime pode ser qualificado como legitima defesa.

Para um ancião de quase setenta anos, que nunca vivera um drama similar, não será fácil prever as suas reações, embora já nos pareçam óbvias. Todavia, para um bom atirador que exercitara por anos o manuseio de armas de fogo, até de grosso calibre, pode parecer coisa fácil, disparar à queima-roupa e acerta em cheio um alvo tão visível.

No último degrau da escada uma alma perdida chega ao topo da estupidez, derruba a porta com apenas uma ponta-pé, e grita para um homem velho, que se encontrava em lástima:

Agora velho covarde, vai ou não me dar tudo que é meu por direito? Quero tudo, não só mais um mísero dinheiro como das outras vezes.

Juntos com as frias palavras, despeja sobre a face do pai um golpe que poderia ser fatal. Um pai não diz uma palavra e abraça o monstro que fora um dia seu filho. E sobre o calor do abraço dispara um tiro de misericórdia na nunca do filho assassino. E os dois caem abraçados.

(09/08/06)

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