A IMPLICÂNCIA
- Parece um anjinho.
A mãe se derretia. Era lourinho, o cabelo cor de sol, riso de gengiva,
gritadinho, sacudia a rosada barriguinha.
- Um anjinho. Cuspido e escarrado.
Ele só fazia resmungar:
- Hun...
- Todo mundo acha, João. Por que a tromba?
- Não posso mais ver a novela das oito...
- Ora!
-... não posso mais ver o Big Brother...
- Ora!
- ... ele berra a madrugada inteirinha...
- Toda criança faz isso.
-... vivo com o sono atrasado...
- Pergunta só pra dona Gertrudes.
E ele, abespinhado:
- Qué que a minha mãe tem a ver com isso?
- Tu deve ter feito a mesma coisa, João.
- Ah! Não lembro.
- Ô, João! E quem é que se lembra?
A SUSPEITA
Por dias e dias o mesmo lero. Com um acréscimo:
- A cara dele não é a minha.
- Não!?
- Tenho olho azul?
- Não...
- Tenho cabelo clarinho, de algodão?
- Não...
- Que cor é o meu olho?
- Preto.
- Que cor é o meu cabelo?
- Preto.
-Retinto?
- Retinto.
- Liso ou pixaim?
- Pixaim.
- Sou rosadinho?
- Não...
- Sou o quê?
- Mulatinho.
INTERMEZZO
- Queria saber se a bicha do Big Brother vai pro paredão... queria dormir
a noite inteirinha... queria te comer como antes... queria tu me chupando...
queria toda a sacanagem do mundo... queria tu de quatro... queria te enrabar...
tu te lembra, Crotilde? Te lembra?
- Dorme, João... dorme. Tu tá de porre. Desde que o Raphael nasceu.
ULTIMA RATIO
Ela saiu. Para comprar leite Ninho desnatado para o filho. Ele acordou, pôs-se
a chorar. Na sala, João desligou a televisão, entrou no quarto.
No bercinho, assim que o viu, Raphael agitou as perninhas, os bracinhos, gorgulhou,
tremelicou a barriginha, mostrou as gengivinhas, deu gritinhos.
João pegou-o pelo tornozelo esquerdo, ergueu-o, no espremidinho do quarto
girou-o, a cabeça, o corpinho nas quinas do guarda-roupa bateu, no espaldar
da cama, os esgares e o chorinho começou e ele não parou o giro
e giros continuou.
Até que o chorinho e os esgares se findaram, os olhinhos azuis se apagaram,
os miolos, os cabelos lourinhos de cor vermelha, de sangue novo e purinho se
borraram.