A Garganta da Serpente
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Messalina ou pater noster

(Eduardo Borsato)

LAMENTOS

Não sei o que essa menina tem, parece até que está com raiva do mundo, credo, lamuria-se a mãe, dia sim o outro também. Por que, perguntam as vizinhas, embora já estejam carecas de saber a resposta. Vai ficar pra titia, tá encalhando, dá pra entender? E é a mais bonita das minhas três garotinhas, mete-se na conversa o pai. A mãe completa: a caçula, a Marialice, tá morando, com casamento já apalavrado, com um sargento do Corpo de Bombeiros. O pai, com risinho maroto: tá com um barrigão de dar medo. Mais se amargura a mãe: a do meio, a Clarivalda, se casou faz 3 anos. Com um apontador do jogo do bicho. Tá tão bem, só vendo. E já tem 4 bacuraus, o pai, sempre safadinho, acrescenta. Vai daí, vai daí... balbucia a mãe.

LUXÚRIA

Cléo, ajoelhada, um véu preto cobrindo os cabelos alourados à custa de xampu de camomila da l' OreaL. O jovem e amorenado padre, do outro lado da tabuinha fina do confessionário suspira grosso. Com o lenço apara o espesso líquido que lhe escorre pernas abaixo. Ela confessa - ai, o arzinho santamente edulcorado - que toda noite se acaba de desejo. Pensa no corpo nu do Cristo, desde que, ainda criança, entrou na igreja, deu de cara com ele, quase peladão, coberto só com um paninho, no último quadro da via crucis, pendurado na parede ao lado da pia batismal.

JOGO DE ESPELHOS

Não foi o que lhe ensinei, dói-se o pai. Tô cansado de dizer que mulher que dorme com padre vira mula sem cabeça. A mãe faz um muchocho: e adiantou? Risinho abafado da primeira vizinha. Leva as costas da mão direita à boca, fala por entre os dedos, olhando para Cléo: não virou.

A ACUSAÇÃO

Ao que Lourival Pedro dos Santos, o Val, trocador de ônibus da linha 417, Guandu do Sapê-Mazomba, retruca: aquele padre sempre foi um safado. Não gostava dela como eu.
Segundo o inquérito 2437, registrado na 34ª DP, iniciado a 8 de fevereiro do corrente e encaminhado à 35ª Vara Criminal a 10 de dezembro do mesmo ano, a menor Cleonice dos Santos Morais, vulgo Cléo, foi violentada no interior do ônibus de placa WE 3534 daquela linha.

A DEFESA

O padre: Messalina, devassa, isso que ela é. Diante do Delegado: violo o sagrado segredo do confessionário, mas deixo aqui registrado o que ela me revelou, em suas próprias, cínicas e impronunciáveis palavras: "o Val até que era legal, dei pra ele numa boa. O pé de chumbo do motorista é que não teve vez. Nem ia ter. Credo! Um negão daqueles! Bom, isso foi o que eu pensei quando estava com o Val. Depois acabei dando pro negão também. E quis dar prum velhote. Mas ele queria só ficar olhando e batendo bronha. Era brocha A Comissão de Direitos do Menor se meteu, ficaram um tempão me enchendo o saco, eu dizendo pra eles que tinha dado porque quis, eles dizendo pra eu dizer na delegacia que tinha sido por causa da miséria, que eles tinham tirado o meu cabaço à força."

PATER NOSTER

Acho que não foi assim, não - diz a mãe. Volta-se para o marido: foi? Ele finge não ouvir. Foi?- as vizinhas insistem. A mãe: uma tarde, ele levou ela pra passear. Disse que ia levar ela pra ver o sapo cururu, que morava debaixo dum pé de jamelão seco, no matinho nos fundos do quintal do vizinho. Nessa época ela estava com 12 aninhos, os peitinhos saltando do vestido. Saíram às 4 da tarde, voltaram era mais de 8 da noite. Lembro bem que ela choramingava. Tinha a calcinha suja de sangue. O pai: não levei ela pra matinho nenhum. E lá não tinha nenhum sapo cururu.

CORO DE VIZINHAS

Tinha lá o quê?
O que é que tinha lá?
O curupira?
O neguinho do pastoreio?
O boitatá?
O que é,
O que é
Que tinha lá?

Pai: tinha um parquinho, muita coisa pra se olhar. Ela comeu algodão doce, andou na roda gigante, no pula pula, no gira gira Depois foi pro escorrega. Nele subiu, nele escorregou. Quando chegou embaixo, já estava cheia de sangue, porque no meio do escorrega tinha uma gilete que ninguém viu.

OS PARDAIS

De novo o risinho pouco disfarçado da primeira vizinha, o pigarro arranhado da segunda. A terceira acompanha com a cabeça o cisca cisca de dois ou três pardais ao pé da mangueira, até que, alvoroçados, eles se alçam, num voo miudinho e rápido, para os lados do abacateiro.

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