LAMENTOS
Não sei o que essa menina tem, parece até que está com
raiva do mundo, credo, lamuria-se a mãe, dia sim o outro também.
Por que, perguntam as vizinhas, embora já estejam carecas de saber a
resposta. Vai ficar pra titia, tá encalhando, dá pra entender?
E é a mais bonita das minhas três garotinhas, mete-se na conversa
o pai. A mãe completa: a caçula, a Marialice, tá morando,
com casamento já apalavrado, com um sargento do Corpo de Bombeiros. O
pai, com risinho maroto: tá com um barrigão de dar medo. Mais
se amargura a mãe: a do meio, a Clarivalda, se casou faz 3 anos. Com
um apontador do jogo do bicho. Tá tão bem, só vendo. E
já tem 4 bacuraus, o pai, sempre safadinho, acrescenta. Vai daí,
vai daí... balbucia a mãe.
LUXÚRIA
Cléo, ajoelhada, um véu preto cobrindo os cabelos alourados à
custa de xampu de camomila da l' OreaL. O jovem e amorenado padre, do outro
lado da tabuinha fina do confessionário suspira grosso. Com o lenço
apara o espesso líquido que lhe escorre pernas abaixo. Ela confessa -
ai, o arzinho santamente edulcorado - que toda noite se acaba de desejo. Pensa
no corpo nu do Cristo, desde que, ainda criança, entrou na igreja, deu
de cara com ele, quase peladão, coberto só com um paninho, no
último quadro da via crucis, pendurado na parede ao lado da pia batismal.
JOGO DE ESPELHOS
Não foi o que lhe ensinei, dói-se o pai. Tô cansado de dizer
que mulher que dorme com padre vira mula sem cabeça. A mãe faz
um muchocho: e adiantou? Risinho abafado da primeira vizinha. Leva as costas
da mão direita à boca, fala por entre os dedos, olhando para Cléo:
não virou.
A ACUSAÇÃO
Ao que Lourival Pedro dos Santos, o Val, trocador de ônibus da linha 417,
Guandu do Sapê-Mazomba, retruca: aquele padre sempre foi um safado. Não
gostava dela como eu.
Segundo o inquérito 2437, registrado na 34ª DP, iniciado a 8 de
fevereiro do corrente e encaminhado à 35ª Vara Criminal a 10 de
dezembro do mesmo ano, a menor Cleonice dos Santos Morais, vulgo Cléo,
foi violentada no interior do ônibus de placa WE 3534 daquela linha.
A DEFESA
O padre: Messalina, devassa, isso que ela é. Diante do Delegado: violo
o sagrado segredo do confessionário, mas deixo aqui registrado o que
ela me revelou, em suas próprias, cínicas e impronunciáveis
palavras: "o Val até que era legal, dei pra ele numa boa. O pé
de chumbo do motorista é que não teve vez. Nem ia ter. Credo!
Um negão daqueles! Bom, isso foi o que eu pensei quando estava com o
Val. Depois acabei dando pro negão também. E quis dar prum velhote.
Mas ele queria só ficar olhando e batendo bronha. Era brocha A Comissão
de Direitos do Menor se meteu, ficaram um tempão me enchendo o saco,
eu dizendo pra eles que tinha dado porque quis, eles dizendo pra eu dizer na
delegacia que tinha sido por causa da miséria, que eles tinham tirado
o meu cabaço à força."
PATER NOSTER
Acho que não foi assim, não - diz a mãe. Volta-se para
o marido: foi? Ele finge não ouvir. Foi?- as vizinhas insistem. A mãe:
uma tarde, ele levou ela pra passear. Disse que ia levar ela pra ver o sapo
cururu, que morava debaixo dum pé de jamelão seco, no matinho
nos fundos do quintal do vizinho. Nessa época ela estava com 12 aninhos,
os peitinhos saltando do vestido. Saíram às 4 da tarde, voltaram
era mais de 8 da noite. Lembro bem que ela choramingava. Tinha a calcinha suja
de sangue. O pai: não levei ela pra matinho nenhum. E lá não
tinha nenhum sapo cururu.
CORO DE VIZINHAS
Tinha lá o quê?
O que é que tinha lá?
O curupira?
O neguinho do pastoreio?
O boitatá?
O que é,
O que é
Que tinha lá?
Pai: tinha um parquinho, muita coisa pra se olhar. Ela comeu algodão
doce, andou na roda gigante, no pula pula, no gira gira Depois foi pro escorrega.
Nele subiu, nele escorregou. Quando chegou embaixo, já estava cheia de
sangue, porque no meio do escorrega tinha uma gilete que ninguém viu.
OS PARDAIS
De novo o risinho pouco disfarçado da primeira vizinha, o pigarro arranhado
da segunda. A terceira acompanha com a cabeça o cisca cisca de dois ou
três pardais ao pé da mangueira, até que, alvoroçados,
eles se alçam, num voo miudinho e rápido, para os lados
do abacateiro.