A Garganta da Serpente
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Canção de Dois Acordes

(Edu Beckandroll)

Ele chegou, sacou a sua guitarra e começou a tocar uma canção esquisita. A letra era bizarra e os acordes somente dois. Mas eram acordes hipnóticos. Então ele pediu ao seu amigo que improvisasse sobre esses dois acordes. Ele queria um solo que começasse lento, viajante e que de repente se tornasse violento, arrebatador. Delirava ao imaginar jovenzinhos fazendo poses ouvindo aquela canção. Então os dois ficaram ali por longos minutos cada um com seu instrumento, executando aquela canção insólita. De repente a porta se abriu. Por ela um senhor entrou e disse:

- Agora chega! Acabou o recreio meninos, podem voltar para suas celas.

Quando cada um já encontrava-se em sua respectiva cela a luz do sol foi morrendo lentamente lá fora, colocando dentro do prédio, pelas minúsculas janelas, um mosaico perturbador de cores e luzes. Os dois sentiam um gosto adstringente na boca e ouviam mentalmente a canção que tocaram ainda a pouco. O relógio deu 18 horas e um silêncio amedrontador tomou conta das galerias. Depois de algumas horas as portas de suas celas abriram-se. E por elas dois senhores entraram e disseram a cada um dos meninos:

-Vocês estão livres.

Foram conduzidos até a porta principal, uma porta enorme, de madeira maciça, de um marrom muito escuro predominantemente. Então, ele e seu amigo, cruzaram a porta e deram de cara com um mundo louco, movimentado, intenso e barulhento. Ficaram boquiabertos. No entanto, não sentiram medo e procuraram um lugar mais apropriado para tocar. Decidiram-se por uma praça, não muito longe do prédio do qual saíram a pouco. Pegaram alguns jornais que estavam sobre um banco, estenderam estes jornais de forma geométrica pela grama e sentaram-se cuidadosamente sobre eles. Sacaram suas guitarras e antes do primeiro acorde apertaram, de forma afetuosa, demoradamente as mãos. Ele limpou a garganta. O outro afinou uma corda. Olharam-se ainda mais uma vez antes de tocar, enquanto pelo enorme e róseo pórtico da pracinha entravam centenas de senhores com as bocas abertas prestes a falar alguma coisa. Mas o que aconteceu em seguida foi mágico. Eles começaram a tocar. E das bocas dos centenas de milhares de senhores não saía absolutamente som algum. E cada vez mais a canção tocada pelos meninos ficava mais forte, mais alta, mais envolvente. A música já não saía somente das suas guitarras e de suas gargantas. Ela emanava de tudo e de todos. Os prédios, as pedras, as folhas, os pássaros, os transeuntes! Tudo! Todos! Aquela canção bizarra de dois acordes e letra estranha era o mundo.

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