Ele chegou, sacou a sua guitarra e começou a tocar uma canção
esquisita. A letra era bizarra e os acordes somente dois. Mas eram acordes hipnóticos.
Então ele pediu ao seu amigo que improvisasse sobre esses dois acordes.
Ele queria um solo que começasse lento, viajante e que de repente se
tornasse violento, arrebatador. Delirava ao imaginar jovenzinhos fazendo poses
ouvindo aquela canção. Então os dois ficaram ali por longos
minutos cada um com seu instrumento, executando aquela canção
insólita. De repente a porta se abriu. Por ela um senhor entrou e disse:
- Agora chega! Acabou o recreio meninos, podem voltar para suas celas.
Quando cada um já encontrava-se em sua respectiva cela a luz do sol foi
morrendo lentamente lá fora, colocando dentro do prédio, pelas
minúsculas janelas, um mosaico perturbador de cores e luzes. Os dois
sentiam um gosto adstringente na boca e ouviam mentalmente a canção
que tocaram ainda a pouco. O relógio deu 18 horas e um silêncio
amedrontador tomou conta das galerias. Depois de algumas horas as portas de
suas celas abriram-se. E por elas dois senhores entraram e disseram a cada um
dos meninos:
-Vocês estão livres.
Foram conduzidos até a porta principal, uma porta enorme, de madeira
maciça, de um marrom muito escuro predominantemente. Então, ele
e seu amigo, cruzaram a porta e deram de cara com um mundo louco, movimentado,
intenso e barulhento. Ficaram boquiabertos. No entanto, não sentiram
medo e procuraram um lugar mais apropriado para tocar. Decidiram-se por uma
praça, não muito longe do prédio do qual saíram
a pouco. Pegaram alguns jornais que estavam sobre um banco, estenderam estes
jornais de forma geométrica pela grama e sentaram-se cuidadosamente sobre
eles. Sacaram suas guitarras e antes do primeiro acorde apertaram, de forma
afetuosa, demoradamente as mãos. Ele limpou a garganta. O outro afinou
uma corda. Olharam-se ainda mais uma vez antes de tocar, enquanto pelo enorme
e róseo pórtico da pracinha entravam centenas de senhores com
as bocas abertas prestes a falar alguma coisa. Mas o que aconteceu em seguida
foi mágico. Eles começaram a tocar. E das bocas dos centenas de
milhares de senhores não saía absolutamente som algum. E cada
vez mais a canção tocada pelos meninos ficava mais forte, mais
alta, mais envolvente. A música já não saía somente
das suas guitarras e de suas gargantas. Ela emanava de tudo e de todos. Os prédios,
as pedras, as folhas, os pássaros, os transeuntes! Tudo! Todos! Aquela
canção bizarra de dois acordes e letra estranha era o mundo.