A Garganta da Serpente
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A Segunda Banda da Noite

(Edu Beckandroll)

Quando a segunda banda da noite entrou no palco e eu tomei mais um gole daquela cerveja que já estava ficando quente eu tive certeza: a noite seria uma merda.

Os acontecimentos desagradáveis já haviam começado desde bem mais cedo quando algumas pombas cagaram sobre o meu baixo quando estávamos fumando um baseado rechonchudo numa pracinha ali perto da birosca onde iríamos tocar naquela noite. Eu fiquei extremamente emputecido mas não deixei esse pequeno incidente me abalar até porque a essas alturas eu já estava curtindo a brisa da maconha e meu corpo todo estava relaxado e mole como uma sopa de minhocas.

Depois de caminharmos, Rudolf e eu, alguns metros além da praça esbarramos com duas garotas já meio altas devido a uísque ou cola que elas estavam cheirando e resolvemos partir pra cima das moçoilas. Uma era magra e feia de rosto. Com os cabelos pretos bem curtinhos parecendo um espanador de loja bagaceira. A outra era meio gorda mas com peitos enormes, embora tivesse pouca bunda, era loira e tinha os olhos verdes. A magricela de cabelo preto tinha manchas estranhas na cara mas era muito charmosa. A gorda era bonita mas não parecia ser muito asseada. Ambas se vestiam como menininhas roqueiras de botique e davam gargalhadas sinistras que, aliadas a paranoia causada pelo baseado que havíamos fumado a instantes, me davam calafrios.

Chegamos nas garotas e oferecemos um gole do vinho que estávamos levando dentro da capa da guitarra de Rudolf e elas ficaram super contentes com essa cortesia, pegaram a garrafa e deram goles enormes como se fossem muito mais acostumadas a beber do que nós. E realmente deviam ser mesmo, apesar de já termos alguma fama como marginais bêbados arruaceiros.

A nossa banda se chamava Trupe Maravilhosa. Tocávamos diversos sambas clássicos, em versões extremamente originais, carregados de velocidade e peso. Tocávamos muitas canções nossas e planejávamos gravar um disco em breve. Falamos isso tudo pras gurias e elas ficaram super excitadas querendo saber o que cada um de nós tocava, quem fazia as canções, quais nossas influências, onde ensaiávamos, quantos membros tinha a banda. Elas fizeram milhares de perguntas, alvoroçadas que estavam pelo vinho, pela cola e pelo uísque que haviam tomado antes e por terem encontrado dois carinhas de instrumentos em punho que as estavam convidando para um show logo mais à noite. Então eu agarrei a branquela de cabelo preto e Rudolf deu o braço para a linda loira fofinha de peitos enormes e começamos a caminhar em direção ao pequeno boteco fodido e decadente onde iríamos tocar dali algumas horas.

Havia um misto de chicletes, tocos de cigarro, tampas de garrafa, cacos de vidro, jornais, papéis sujos e baratas, tudo isso bailando sobre a calçada defronte a porra do bar. Pegamos as garotas e entramos. Lá dentro cada um foi pra um canto curtir a sua solidão sossegadamente. Eu estava pensando nisso tudo quando a segunda banda da noite entrou no palco e começou a fazer sons extremamente irritantes e desagradáveis. Então bebi um pouco mais de cerveja quente e dei uma olhada em todas aquelas pessoas viajando dentro do bar e não vi nem as gurias que conhecemos na rua muito menos Rudolf ou o nosso baterista, que a essa hora devia estar transando com o seu namorado num canto qualquer da rua atrás do bar. A propósito o bar se chamava A Moita. Era um nome estranho para um lugar mais estranho ainda. Então saí caminhando entre todos aqueles seres esquisitos da noite e foi quando de repente eu percebi que havia muito mais gente do que eu imaginara que haveria. Fiquei um tanto quanto preocupado e nervoso, temendo por nossa performance.

Naquele dia iríamos tocar pela primeira vez a canção que estávamos preparando desde um mês antes e ela se chamava Cadência Escrotal. Falava sobre os movimentos que o saco faz quando estamos trepando em cima de uma mulher e era na realidade uma alegoria sobre as eminências pardas, pois mesmo não influindo diretamente na penetração o movimento das bolas é muito importante. Eu saboreava por antecipação o anúncio da música "Agora vamos tocar uma nova canção chamada Cadência Escrotal".

Eu sabia que a maior parte daqueles bêbados e degenerados que frequentavam a espelunca não teria sensibilidade suficiente para compreender a canção mas ela era dançante e vigorosa então eu sorria antecipadamente pelo efeito que causaria na plateia.

No momento que eu estava bem no meio do lugar em frente ao palco vendo a segunda banda da noite estuprar os ouvidos do público eu senti alguém me puxando. Não foi uma simples puxada, mas um puxão violento que quase me quebrou ao meio. Então olhei rapidamente para o lado de onde vinha esse puxao e vi um cara enorme me puxando e falando coisas desconexas. Ele me levou até o fundo da casa e começou a me falar altas coisas.

Ele estava aparentemente muito ligado de cocaína e com um odor terrível de álcool exalando por todos os seus poros. Ele me falava coisas sobre naquela noite estar no bar um cara de uma gravadora que viera somente para nos ver tocar pois nossos pequenos e malditos shows já começavam a chamar a atenção de algumas mídias especializadas e dos malucões mais antenados. Ele soltava essa torrente de informações bem sobre a minha cara ao mesmo tempo em que seu hálito milenar de álcool quase me entorpecia. Então eu fiquei pensando se aquilo tudo era mesmo verdade e fui falar com o dono do lugar pra ver se ele estava sabendo de algo.

O cara confirmou a história e ainda disse que o tal sujeito da gravadora havia perguntado muitas coisas sobre a Trupe Maravilhosa e que depois de nos ver tocar gostaria de nos chamar para jantar e trocar algumas ideias. Perguntei quem era o cara e onde ele estava, então o dono da birosca me apontou um carinha esquálido e de óculos, com uma pequena barbicha e vestido como se fosse um gay aristocrático. Vivi um grande dilema nesse momento, eu não soube o que fazer. Não soube se procurava Rudolf ou o nosso baterista para contar a história incrível ou se chegava na mesa do cara e o cumprimentava.

Então pedi mais uma cerveja e fiquei ali tremendo de medo e excitação. A segunda banda da noite estava fazendo muito barulho, isso estava me irritando demais, e não só a mim, mas todos os malucos do pedaço, então algum psicopata puxou uma arma e deu cinco tiros no vocalista da banda. Houve aquela estupefação generalizada ao que se seguiu uma correria absurda e pessoas foram pisoteadas na fuga maluca do público. Eu fiquei perplexo com o assassinato do cara ali a cinco metros de mim mas fiquei muito feliz também pois aquele barulho pavoroso finalmente terminara.

Depois de alguns segundos eu percebi algo que me deixou mortificado. O assassino era o cara da gravadora! Alguns caras estavam o imobilizando enquanto ele vociferava e espumava de tanto ódio. Foi muito azar o meu e da Trupe Maravilhosa. O grande homem da gravadora resolveu enlouquecer e cometer um homicídio bem na noite em que nos descobriria, ficaríamos ricos, famosos e comeríamos as melhores mulheres da mídia. Pouco tempo depois a Trupe Maravilhosa se separou por falta de grana e tempo e agora eu trabalho de garçom no mesmo bar que aconteceu tudo isso.

Até hoje eu fico muito nervoso quando sobe ao palco a segunda banda da noite.

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