O elevador baixa cada vez mais no poço negro. Apenas a luz da lanterna
permite aos meus olhos observarem o interior daquela boca escura e úmida que
me engolia. A sensação, enquanto as engrenagens ronronavam e liberavam
meu corpo à gravidade, era de estar penetrando cada vez mais no inferno;
cada centímetro descido, cada segundo passado, eram um centímetro
e um segundo mais próximo do fim. Para mim, assim que o elevador parasse
e a sua porta abrisse, meus pés tocariam o solo blasfemo, dentro do meu
íntimo eu tinha a certeza de que era apenas a porta do elevador se abrir
e ela estaria lá, pronta, me esperando, com os olhos verdes felinos,
os cabelos negros lisos sobre o rosto falsamente angelical e o corpo sensualmente
diabólico agindo em conjunto, se unindo para me hipnotizar e me fazer
igual a ela.
Eu não poderia titubear; não, não poderia me dar ao luxo
de olhá-la com desejo, tal como tantos desgraçados; parar e admirar
a sinuosidade de seu corpo; não, não poderia; esse seria o meu
fim: um único instante de hesitação, uma fração
de segundo sequer de dúvida destruiria meses de planejamento e pesquisa.
Haveria tempo para apenas um único golpe, firme e certeiro. A adrenalina
tomava o lugar dos meus glóbulos vermelhos na circulação
do meu corpo, me fazendo tremer desconexamente, tal como um doente mental. O
elevador pára de repente, fazendo meu coração quase parar
junto; meus pensamentos foram bruscamente interrompidos. Era este o momento.
Na minha mente ela estava ali do outro lado da porta. Busquei coragem no limiar
da minha sanidade, nas profundezas das minhas células, e abri a porta
do elevador. Apenas a escuridão apareceu para me receber. Fiquei ao mesmo
tempo aliviado e decepcionado. Com o facho da lanterna penetrei na escuridão;
havia um túnel com paredes e teto de concreto, água gotejante
escorria pelas frestas e rachaduras, o chão era escorregadio pelo limo,
estava atulhado de lixo.
Enveredei-me por este túnel com cautela, o ambiente era úmido
e gelado.
Depois de alguns instantes, notei uma porta no final dele. Fixei-me de tal forma
nessa porta que não notei que o túnel se alargara formando um
salão. Só notei isso depois que senti algo agarrar meus pés.
Desvencilhei-me com movimento de defesa instintivo e iluminei a coisa. Os olhos
parados e fundos, a face esquelética, pensei ser um zumbi, um morto vivo,
mas percebi se tratar apenas de um mendigo esfomeado. Iluminei o resto do salão
e vi montes deles dormindo: alguns com cobertor, alguns com jornais, alguns
apenas com a roupa do corpo e outros ainda nus, mas todos incrivelmente magros
e com a pele branca, como se não saíssem no sol há anos.
Alguns acordaram e começaram a me encarar. A luz da minha lanterna refletia
a fome e a angústia naqueles olhos, naquelas faces.
Então percebi que, se não eram zumbis, não estavam muito
longe de se tornarem.
Me olharam de uma maneira tão estranha, como se eu fosse um enorme almoço;
não duvidei que aquele estranho grupo de mendigos pudesse ter adotado
o canibalismo, naquele local distante e fétido. Se atacassem em bando
eu estaria perdido, mas permaneceram distantes, estáticos apenas olhando.
Me apressei em direção à porta e notei que aqueles mendigos
se amontoavam nos cantos do salão, mas nas proximidades da porta não
havia ninguém . Também não havia ninguém no caminho
entre a porta e o resto do túnel. A porta não estava trancada.
Isso me fez lembrar de uma frase perdida e esfacelada em meio a livros, e contos
que li, filmes que vi e músicas que ouvi. A tal frase, na época
em que foi lida, não me tocou e mal lhe dei importância. Era apenas
mais uma frase ou um verso em meio a páginas, diálogos e acordes.
Pois a situação desenhada a minha frente arrancou essa frase do
interior da minha memória fazendo-a vagar ansiosa pela minha consciência:
"Pôr que guardar a sete chaves aquilo que ninguém ousa roubar"?
Agucei os sentidos ao máximo, temia um ataque tanto de trás da
porta quanto pelas minhas costas. Os olhares vidrados dos "zumbis"
queimavam-me. Coloquei cada nervo, cada neurônio em alerta, prontos para
captar qualquer movimento no ar, de qualquer direção. Abri a porta
como se cada milímetro aberto pudesse conter a morte rápida, como
se cada centímetro iluminado pela lanterna pudesse guardar um monstro
deformado e pronto para saltar em mim. Verifiquei que não havia nenhum
perigo imediato, então atravessei a porta e a fechei.
Estava seguro de que, mesmo destrancada, aqueles mendigos com cara de lobos
famintos não ultrapassariam a porta. À minha frente seguia a trilha.
Não como o túnel anterior, não havia paredes visíveis,
nem pavimento no chão, só escombros, lixo, e ferro-velho. Tudo
soterrado. Segui pela trilha com o mesmo cuidado de antes. O chão de
terra batida estava úmido, mas era firme.
O bolor e a umidade imperavam naquele ambiente, contaminando o próprio
ar e fazendo-o mais congelante que o do túnel anterior. E por todo o
lado havia velharias amontoadas e abandonadas. Destroços de uma era antiga,
esquecida e enterrada no profundo poço do desprezo. Havia coisas de várias
épocas: restos de roupas, de aparelhos eletrônicos, discos de vinil,
garrafas e latas por toda a parte e até veículos enferrujados
e depenados. Mas o que predominava eram artigos do século passado, ou retrasado, não
sei ao certo.
Havia pelo menos uma carroça identificável, da qual apenas as
rodas apodreceram e desabaram, deixando a parte de cima inteira; acredito que
os montes de madeira carcomida juntos a esses restos também eram carroças.
Havia uma enorme quantidade de móveis em estilo colonial: armários,estantes,
mesas, cadeiras, sofás, quadros, todos tomados pelo mofo, cheios de galerias
feitas por cupins e cobertas por consistente lençol de pó e teias
de aranhas. Pilhas de madeiras nobres usadas nas paredes de alguma casa, madeiras
hoje completamente extintas, sendo roídas por ratos e devoradas pelos
cupins. Mas a mais impressionante das visões impressionantes, o mais
triste dos tristes abandonos, que me tocou com um ferro ardente, brilhante,
abrindo caminho na minha carne, o mais revoltante dos revoltantes desprezos,
cobrindo uma área de mais ou menos cinco metros quadrados, ao longo da
trilha, o mais desconcertante dos desconcertantes desperdícios, montes
com altura acima de dois metros; pilhas de desprezo à historia, à
cultura e à inteligência humanas e universais, por Deus, eram montes
de livros. Dados de alimento a traças e cupins; servindo como moradia
a fungos e insetos: livros. Antes serviam como amparo à solidão e ao tédio, traziam
cultura, ideias, pensamentos e sentimentos.
Peguei um dos livros, que estava mais acima do monte, e dele fiquei somente
com a capa grudenta e úmida nas mãos, o miolo caiu ao chão
e desmanchou-se em montes de ovos de algum inseto.
Um profundo sentimento de desolação me abalou, me acompanhando
pelo resto do caminho, junto com a solidão. A passagem se mantinha naquilo:
chão lamacento, escombros e sujeira por todo o lado; por mais de uma
centena de metros permanecia larga depois se afilava tornando-se um túnel,
uma caverna escavada pelo tempo, e no fim desta caverna uma estranha e débil
luminosidade. Ao constatar o brilho tremulante, toneladas de adrenalina foram
despejadas em minha corrente sanguínea, a respiração
se tornou pesada e acelerada, o ar gélido queimava minhas vias respiratórias.
Apaguei minha lanterna e rastejei na direção da luz sem produzir
o mais leve ruído; me postei o mais próximo possível sem
me tornar visível para o que quer que estivesse lá dentro daquela
sala timidamente iluminada.
Quando olhei para o interior desta sala, meu coração começou
a se chocar intensamente contra o esterno, como se quisesse abrir caminho para
fora do meu peito, a respiração era mais difícil, meus
pulmões ardiam, cada fibra muscular estava tencionada, sentia a loucura
e o desespero tocarem meus calcanhares. Naquela sala havia um castiçal
com velas que geravam aquela luminosidade franzina, e sobre um elevado de pedra
jazia um... esquife.
Eu sabia muito bem o que havia naquele esquife. Adentrei-me naquela sala com
os olhos colados nele.
Parei exatamente à sua frente, respirei profundamente, querendo com isso
arrancar de mim todo o medo e incerteza; num movimento rápido escancarei
a tampa do esquife e ... lá estava ela.
Notei sua beleza. Ela quis me pegar, me agarrar e me devorar, eu sabia.
Seus cabelos negros estavam ressecados, a pele pálida, as olheiras nos
olhos eram profundas.
Não! Por favor, não. Ela ainda era bela. Ela ainda era jovem.
O rosto inocente... o corpo desejável, apesar dos trapos que vestia.
Sim! Desejável. Não! Não posso me deixar levar. Limpei
meu cérebro, não pensei em nada. Tinha que agir por instinto.
Tentei, pelo menos.
Retirei a estaca e o martelo que trouxe comigo numa sacola, encostei a ponta
da estaca em seu seio esquerdo e ergui o martelo. Nisso ela acordou e abriu
os olhos; a expressão deles me pareceu confusa. Deus! O arco desenhado
pelo martelo até a estaca parecia ser infinito. Naquele momento toda
a minha vida até ali me apareceu como num filme, uma patética
comédia, sem graça.
Sua normalidade, seu tédio, me assustou, mas nada eu poderia fazer agora,
então apenas deixei o martelo completar seu movimento.
A estaca penetrou no seio até a costela, sem contudo chegar ao coração.
Descerrou-se um grito horrível, quase humano, dela. Seus braços
tentavam segurar os meus enquanto tentavam retirar a estaca que eu fincara em
seu seio.
Juro! Por Deus, juro que não pensei um só momento. Juro, agi unicamente
movido por uma coisa que acreditava não possuir mais: o instinto.
Meu braço com o martelo descreveu um novo arco, no movimento mais poderoso
e mais decisivo de toda a minha vida, e não cheguei a pensar ou planejar
nada.
Dei-me conta do que havia feito apenas quando seu berro, ainda mais horrível
e afogado em sangue, que brotava da boca, nariz e ouvidos, ecoou pela sala.
A estaca finalmente atravessa seu peito e se fincara no fundo do caixão.
O belo corpo se ergueu numa convulsão mortal e, num suspiro, toda a vida
que ela não possuía, a abandonandou.
Acabado?! Estava acabado?! Aquele corpo estático na minha frente me dizia
que sim. Estava escrito na face pálida e sem qualquer expressão
a não ser alívio. Ela estava morta! Finalmente, depois de séculos.
Eu a matei!
Um ato instintivo, animalesco, um espírito - anjo ou demônio -
que se apossou de meu braço o fez martelar tal como um louco desesperado
na estaca. Não importa. Serei reconhecido mundialmente dentro dos restritos
círculos dos conhecimentos, círculos esses frequentados por
cientistas, pesquisadores e mesmo por feiticeiros de enorme experiência
e respeitabilidade.
Eles escreverão meu nome em seus livros e diários e estes serão
passados às próximas gerações dos estudantes destas
artes. Eu matei a última vampira da terra.
Um ruído, um pequeno silvo me desperta. Um som grave e que vai tomando
forma numa palavra, uma palavra.
- AASSSSSASSSSIINNOO!!!!
Então algo me agarra por trás com incrível violência,
me ergue e me atira a um canto da sala. Não houve tempo de me reerguer,
um fantasma translúcido se jogou sobre mim mais rápido que meus
reflexos condicionados, então me agarrou de novo, me ergueu e me encarou.
Deus! Aquele rosto! Como uma fagulha acedendo uma grande tocha na minha mente,
os cabelos crepitando os olhos faiscando, os contornos incertos, a boca:
- ASSASSINO!!!
Fui atirado novamente, minhas costas se chocaram contra a parede fria de pedra.
A dor foi lancinante mas cessou completamente quando a vislumbrei de novo. A
luz das velas atrás dela desenhava uma sombra moldada pelo seu corpo,
e como era belo, e a sombra parecia conter mais substância do que ela
própria. Estava vestida com um pequeno vestido antigo, já corroído,
gasto e sujo, a saia que outrora fora comprida, estava com grandes rasgões
e tentava inutilmente esconder as lindas pernas. Não podia acreditar.
Aquele corpo, aquele rosto, seios, olhos, cabelos, pernas, tudo, tudo mais,
exatamente como foram descritos, tudo fiel, cada detalhe, nada foi esquecido.
Nunca tanta beleza foi tão bem descrita, tão bem trabalhada pela
linguagem humana.
- Humano idiota! Assassino! Não sabe, não sabe o que fez! - aquela
voz denotava tanto ódio e angústia quanto nunca vi em um ser humano
- não sabe, não é!? Humano ignorante! - tão rápida
quanto suavemente ela se aproximou de mim e me encarou - Por que ainda me persegues?
Por quê? - Os olhos verde-azulados pareciam que iam me afogar em suas
íris, e o movimento dos lábios enquanto falavam era tão
sedutor tão sensual.
- Há tanto tempo que estou aqui, há tanto que não saía
para o seu mundo lá em cima - não senti medo, não mesmo,
estava tão maravilhado, estupefato, mal conseguia prestar atenção
ao que dizia, não conseguia separar o som de sua voz das palavras proferidas,
elas se mesclavam formando uma música lenta e melancólica - Por
que continuam a me procurar!? Por quê?
Num movimento felino, como uma nuvem que muda de direção com o
vento, ela se virou e foi até o esquife. Não parecia tocar o solo,
flutuava sobre ele.
Os movimentos eram suaves e sensuais, me hipnotizavam com um incrível
magnetismo corporal. Exatamente como estavam descritos nos diários secretos.
Uma incrível força exalada pelo seu corpo que nos aprisiona e
nos torna escravos devotos de sua beleza. Mas eu notei algo que não estava
nos diários: essa força sedutora era algo instintivo, próprio
de sua natureza, algo que ela não podia controlar ou mesmo evitar, fazia
parte dela como seus dedos, seus cabelos.
Tal qual a vida eterna, a beleza era algo da qual ela não podia se livrar.
Parou em frente do esquife e olhou para o seu interior:
- Ela era inocente - sua voz parecia carregar o peso imensurável da amargura
- Uma pequena viciada, que como eu fugiu de seu mundo, procurando abrigo. Nos
tornamos amigas e confidentes. Eu a protegia e em troca ela trazia pequenos
animais para me alimentar. Conversávamos, conversávamos e conversávamos.
Contava-lhe séculos da minha existência e ela apenas ouvia, ria
ou chorava. A pessoa que sempre procurei e nunca havia encontrado até
aqui. Nos amávamos.
Mas nunca toquei em seu corpo, nunca bebi uma gota de seu sangue. Ela era humana!
- então ela se debruçou sobre o corpo imóvel e a beijou
os lábios inundados de sangue. A boca cintilava escarlate na luz fraca
das velas.
Então se virou para mim, encarou-me, noutro segundo já estava
a centímetros de meu rosto.
- Preste atenção, humano, muita atenção! Pois o
deixarei viver! - o movimento descontrolado dos lábios fazia com que
o sangue em sua boca espirrasse em gotas vivas contra o meu rosto - O deixarei
viver, mas por um único motivo: você voltará para o seu
maldito mundo lá em cima e contará aos hipócritas ignorantes
de seus círculos de conhecimento e magia o que ocorreu aqui: que eles
não precisam mais se preocupar com vampiros, pois você matou a
última vampira da terra. Que eles coloquem em seus diários, junto
com todas as mentiras e bobagens que acumularam durante esses malditos anos
em que a civilização humana - a expressão "civilização
humana" veio com uma enorme carga de desprezo e ódio - empesteou
o mundo. Para vocês eu já estou morta, morta e enterrada.
- Me esqueçam! Por favor, me esqueçam!
Aquelas palavras, a expressividade com que foram proferidas, todo o sentimento
descarregado nelas, me mordiam ferozes; arrancaram pedaços de meu orgulho.
Mas não, em nenhum momento senti medo dela, ou temor. Segundo os escritos
aquela criatura se escondeu nesta caverna profunda há pelo menos um século,
aparentemente sem razão. Ela sentenciou a si própria àquele
pequeno calabouço, uma prisão perpétua. Ela possuía
a vida eterna e a abandonou, agora sequer pode esperar a morte.
- Agora vá, humano. Não se atreva a revelar que ainda existo,
nem mesmo ao seu diário mais confidencial. Quero que em suas mentes,
daqui para frente, não haja qualquer lembrança de minha passagem
por sobre a terra. Tudo o que quero é ser totalmente esquecida. Vá
em paz. - eu estava paralisado e aturdido, não pude sair do lugar, quis,
minha mente quis sair de lá o mais rápido possível, mas
meu corpo não obedecia - VÁÁÁ!!!
Disparei pelo túnel, correndo na escuridão, seguindo o caminho
apenas com o instinto, apenas o instinto comandava minhas pernas, mesmo se quisesse
não poderia parar até estar no elevador. Passei pelo monte de
livros apodrecidos, pelos escombros de várias épocas antigas,
dei de cara com a porta que dividia o inferno, atravessei por entre os mendigos
moribundos e finalmente alcancei o elevador.
Nos livros históricos e nos diários secretos dos círculos
cientificos será colocado o meu nome: o homem que matou a última
vampira da terra, lá estará escrito como enfrentei o bando de
zumbis canibais que guardavam a porta, como ainda tentei salvar inutilmente
uma jovem aprisionada pela vampira e meu duelo final com ela. Isso será
passado para as futuras gerações junto com todas as outras "verdades
eternas" inabaláveis de nossa cultura histórica humana. E
eu faço parte dela.