A Garganta da Serpente
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Sangue Inocente

(Everson Antunes)

O elevador baixa cada vez mais no poço negro. Apenas a luz da lanterna permite aos meus olhos observarem o interior daquela boca escura e úmida que me engolia. A sensação, enquanto as engrenagens ronronavam e liberavam meu corpo à gravidade, era de estar penetrando cada vez mais no inferno; cada centímetro descido, cada segundo passado, eram um centímetro e um segundo mais próximo do fim. Para mim, assim que o elevador parasse e a sua porta abrisse, meus pés tocariam o solo blasfemo, dentro do meu íntimo eu tinha a certeza de que era apenas a porta do elevador se abrir e ela estaria lá, pronta, me esperando, com os olhos verdes felinos, os cabelos negros lisos sobre o rosto falsamente angelical e o corpo sensualmente diabólico agindo em conjunto, se unindo para me hipnotizar e me fazer igual a ela.

Eu não poderia titubear; não, não poderia me dar ao luxo de olhá-la com desejo, tal como tantos desgraçados; parar e admirar a sinuosidade de seu corpo; não, não poderia; esse seria o meu fim: um único instante de hesitação, uma fração de segundo sequer de dúvida destruiria meses de planejamento e pesquisa.

Haveria tempo para apenas um único golpe, firme e certeiro. A adrenalina tomava o lugar dos meus glóbulos vermelhos na circulação do meu corpo, me fazendo tremer desconexamente, tal como um doente mental. O elevador pára de repente, fazendo meu coração quase parar junto; meus pensamentos foram bruscamente interrompidos. Era este o momento. Na minha mente ela estava ali do outro lado da porta. Busquei coragem no limiar da minha sanidade, nas profundezas das minhas células, e abri a porta do elevador. Apenas a escuridão apareceu para me receber. Fiquei ao mesmo tempo aliviado e decepcionado. Com o facho da lanterna penetrei na escuridão; havia um túnel com paredes e teto de concreto, água gotejante escorria pelas frestas e rachaduras, o chão era escorregadio pelo limo, estava atulhado de lixo.

Enveredei-me por este túnel com cautela, o ambiente era úmido e gelado.

Depois de alguns instantes, notei uma porta no final dele. Fixei-me de tal forma nessa porta que não notei que o túnel se alargara formando um salão. Só notei isso depois que senti algo agarrar meus pés. Desvencilhei-me com movimento de defesa instintivo e iluminei a coisa. Os olhos parados e fundos, a face esquelética, pensei ser um zumbi, um morto vivo, mas percebi se tratar apenas de um mendigo esfomeado. Iluminei o resto do salão e vi montes deles dormindo: alguns com cobertor, alguns com jornais, alguns apenas com a roupa do corpo e outros ainda nus, mas todos incrivelmente magros e com a pele branca, como se não saíssem no sol há anos. Alguns acordaram e começaram a me encarar. A luz da minha lanterna refletia a fome e a angústia naqueles olhos, naquelas faces.

Então percebi que, se não eram zumbis, não estavam muito longe de se tornarem.

Me olharam de uma maneira tão estranha, como se eu fosse um enorme almoço; não duvidei que aquele estranho grupo de mendigos pudesse ter adotado o canibalismo, naquele local distante e fétido. Se atacassem em bando eu estaria perdido, mas permaneceram distantes, estáticos apenas olhando.

Me apressei em direção à porta e notei que aqueles mendigos se amontoavam nos cantos do salão, mas nas proximidades da porta não havia ninguém . Também não havia ninguém no caminho entre a porta e o resto do túnel. A porta não estava trancada. Isso me fez lembrar de uma frase perdida e esfacelada em meio a livros, e contos que li, filmes que vi e músicas que ouvi. A tal frase, na época em que foi lida, não me tocou e mal lhe dei importância. Era apenas mais uma frase ou um verso em meio a páginas, diálogos e acordes. Pois a situação desenhada a minha frente arrancou essa frase do interior da minha memória fazendo-a vagar ansiosa pela minha consciência: "Pôr que guardar a sete chaves aquilo que ninguém ousa roubar"?

Agucei os sentidos ao máximo, temia um ataque tanto de trás da porta quanto pelas minhas costas. Os olhares vidrados dos "zumbis" queimavam-me. Coloquei cada nervo, cada neurônio em alerta, prontos para captar qualquer movimento no ar, de qualquer direção. Abri a porta como se cada milímetro aberto pudesse conter a morte rápida, como se cada centímetro iluminado pela lanterna pudesse guardar um monstro deformado e pronto para saltar em mim. Verifiquei que não havia nenhum perigo imediato, então atravessei a porta e a fechei.

Estava seguro de que, mesmo destrancada, aqueles mendigos com cara de lobos famintos não ultrapassariam a porta. À minha frente seguia a trilha. Não como o túnel anterior, não havia paredes visíveis, nem pavimento no chão, só escombros, lixo, e ferro-velho. Tudo soterrado. Segui pela trilha com o mesmo cuidado de antes. O chão de terra batida estava úmido, mas era firme.

O bolor e a umidade imperavam naquele ambiente, contaminando o próprio ar e fazendo-o mais congelante que o do túnel anterior. E por todo o lado havia velharias amontoadas e abandonadas. Destroços de uma era antiga, esquecida e enterrada no profundo poço do desprezo. Havia coisas de várias épocas: restos de roupas, de aparelhos eletrônicos, discos de vinil, garrafas e latas por toda a parte e até veículos enferrujados e depenados. Mas o que predominava eram artigos do século passado, ou retrasado, não sei ao certo.

Havia pelo menos uma carroça identificável, da qual apenas as rodas apodreceram e desabaram, deixando a parte de cima inteira; acredito que os montes de madeira carcomida juntos a esses restos também eram carroças. Havia uma enorme quantidade de móveis em estilo colonial: armários,estantes, mesas, cadeiras, sofás, quadros, todos tomados pelo mofo, cheios de galerias feitas por cupins e cobertas por consistente lençol de pó e teias de aranhas. Pilhas de madeiras nobres usadas nas paredes de alguma casa, madeiras hoje completamente extintas, sendo roídas por ratos e devoradas pelos cupins. Mas a mais impressionante das visões impressionantes, o mais triste dos tristes abandonos, que me tocou com um ferro ardente, brilhante, abrindo caminho na minha carne, o mais revoltante dos revoltantes desprezos, cobrindo uma área de mais ou menos cinco metros quadrados, ao longo da trilha, o mais desconcertante dos desconcertantes desperdícios, montes com altura acima de dois metros; pilhas de desprezo à historia, à cultura e à inteligência humanas e universais, por Deus, eram montes de livros. Dados de alimento a traças e cupins; servindo como moradia a fungos e insetos: livros. Antes serviam como amparo à solidão e ao tédio, traziam cultura, ideias, pensamentos e sentimentos.

Peguei um dos livros, que estava mais acima do monte, e dele fiquei somente com a capa grudenta e úmida nas mãos, o miolo caiu ao chão e desmanchou-se em montes de ovos de algum inseto.

Um profundo sentimento de desolação me abalou, me acompanhando pelo resto do caminho, junto com a solidão. A passagem se mantinha naquilo: chão lamacento, escombros e sujeira por todo o lado; por mais de uma centena de metros permanecia larga depois se afilava tornando-se um túnel, uma caverna escavada pelo tempo, e no fim desta caverna uma estranha e débil luminosidade. Ao constatar o brilho tremulante, toneladas de adrenalina foram despejadas em minha corrente sanguínea, a respiração se tornou pesada e acelerada, o ar gélido queimava minhas vias respiratórias.

Apaguei minha lanterna e rastejei na direção da luz sem produzir o mais leve ruído; me postei o mais próximo possível sem me tornar visível para o que quer que estivesse lá dentro daquela sala timidamente iluminada.

Quando olhei para o interior desta sala, meu coração começou a se chocar intensamente contra o esterno, como se quisesse abrir caminho para fora do meu peito, a respiração era mais difícil, meus pulmões ardiam, cada fibra muscular estava tencionada, sentia a loucura e o desespero tocarem meus calcanhares. Naquela sala havia um castiçal com velas que geravam aquela luminosidade franzina, e sobre um elevado de pedra jazia um... esquife.

Eu sabia muito bem o que havia naquele esquife. Adentrei-me naquela sala com os olhos colados nele.

Parei exatamente à sua frente, respirei profundamente, querendo com isso arrancar de mim todo o medo e incerteza; num movimento rápido escancarei a tampa do esquife e ... lá estava ela.

Notei sua beleza. Ela quis me pegar, me agarrar e me devorar, eu sabia.

Seus cabelos negros estavam ressecados, a pele pálida, as olheiras nos olhos eram profundas.

Não! Por favor, não. Ela ainda era bela. Ela ainda era jovem. O rosto inocente... o corpo desejável, apesar dos trapos que vestia. Sim! Desejável. Não! Não posso me deixar levar. Limpei meu cérebro, não pensei em nada. Tinha que agir por instinto. Tentei, pelo menos.

Retirei a estaca e o martelo que trouxe comigo numa sacola, encostei a ponta da estaca em seu seio esquerdo e ergui o martelo. Nisso ela acordou e abriu os olhos; a expressão deles me pareceu confusa. Deus! O arco desenhado pelo martelo até a estaca parecia ser infinito. Naquele momento toda a minha vida até ali me apareceu como num filme, uma patética comédia, sem graça.

Sua normalidade, seu tédio, me assustou, mas nada eu poderia fazer agora, então apenas deixei o martelo completar seu movimento.

A estaca penetrou no seio até a costela, sem contudo chegar ao coração.

Descerrou-se um grito horrível, quase humano, dela. Seus braços tentavam segurar os meus enquanto tentavam retirar a estaca que eu fincara em seu seio.

Juro! Por Deus, juro que não pensei um só momento. Juro, agi unicamente movido por uma coisa que acreditava não possuir mais: o instinto.

Meu braço com o martelo descreveu um novo arco, no movimento mais poderoso e mais decisivo de toda a minha vida, e não cheguei a pensar ou planejar nada.

Dei-me conta do que havia feito apenas quando seu berro, ainda mais horrível e afogado em sangue, que brotava da boca, nariz e ouvidos, ecoou pela sala.

A estaca finalmente atravessa seu peito e se fincara no fundo do caixão.

O belo corpo se ergueu numa convulsão mortal e, num suspiro, toda a vida que ela não possuía, a abandonandou.

Acabado?! Estava acabado?! Aquele corpo estático na minha frente me dizia que sim. Estava escrito na face pálida e sem qualquer expressão a não ser alívio. Ela estava morta! Finalmente, depois de séculos. Eu a matei!

Um ato instintivo, animalesco, um espírito - anjo ou demônio - que se apossou de meu braço o fez martelar tal como um louco desesperado na estaca. Não importa. Serei reconhecido mundialmente dentro dos restritos círculos dos conhecimentos, círculos esses frequentados por cientistas, pesquisadores e mesmo por feiticeiros de enorme experiência e respeitabilidade.

Eles escreverão meu nome em seus livros e diários e estes serão passados às próximas gerações dos estudantes destas artes. Eu matei a última vampira da terra.

Um ruído, um pequeno silvo me desperta. Um som grave e que vai tomando forma numa palavra, uma palavra.

- AASSSSSASSSSIINNOO!!!!

Então algo me agarra por trás com incrível violência, me ergue e me atira a um canto da sala. Não houve tempo de me reerguer, um fantasma translúcido se jogou sobre mim mais rápido que meus reflexos condicionados, então me agarrou de novo, me ergueu e me encarou. Deus! Aquele rosto! Como uma fagulha acedendo uma grande tocha na minha mente, os cabelos crepitando os olhos faiscando, os contornos incertos, a boca:

- ASSASSINO!!!

Fui atirado novamente, minhas costas se chocaram contra a parede fria de pedra. A dor foi lancinante mas cessou completamente quando a vislumbrei de novo. A luz das velas atrás dela desenhava uma sombra moldada pelo seu corpo, e como era belo, e a sombra parecia conter mais substância do que ela própria. Estava vestida com um pequeno vestido antigo, já corroído, gasto e sujo, a saia que outrora fora comprida, estava com grandes rasgões e tentava inutilmente esconder as lindas pernas. Não podia acreditar. Aquele corpo, aquele rosto, seios, olhos, cabelos, pernas, tudo, tudo mais, exatamente como foram descritos, tudo fiel, cada detalhe, nada foi esquecido. Nunca tanta beleza foi tão bem descrita, tão bem trabalhada pela linguagem humana.

- Humano idiota! Assassino! Não sabe, não sabe o que fez! - aquela voz denotava tanto ódio e angústia quanto nunca vi em um ser humano - não sabe, não é!? Humano ignorante! - tão rápida quanto suavemente ela se aproximou de mim e me encarou - Por que ainda me persegues? Por quê? - Os olhos verde-azulados pareciam que iam me afogar em suas íris, e o movimento dos lábios enquanto falavam era tão sedutor tão sensual.

- Há tanto tempo que estou aqui, há tanto que não saía para o seu mundo lá em cima - não senti medo, não mesmo, estava tão maravilhado, estupefato, mal conseguia prestar atenção ao que dizia, não conseguia separar o som de sua voz das palavras proferidas, elas se mesclavam formando uma música lenta e melancólica - Por que continuam a me procurar!? Por quê?

Num movimento felino, como uma nuvem que muda de direção com o vento, ela se virou e foi até o esquife. Não parecia tocar o solo, flutuava sobre ele.

Os movimentos eram suaves e sensuais, me hipnotizavam com um incrível magnetismo corporal. Exatamente como estavam descritos nos diários secretos. Uma incrível força exalada pelo seu corpo que nos aprisiona e nos torna escravos devotos de sua beleza. Mas eu notei algo que não estava nos diários: essa força sedutora era algo instintivo, próprio de sua natureza, algo que ela não podia controlar ou mesmo evitar, fazia parte dela como seus dedos, seus cabelos.

Tal qual a vida eterna, a beleza era algo da qual ela não podia se livrar.

Parou em frente do esquife e olhou para o seu interior:

- Ela era inocente - sua voz parecia carregar o peso imensurável da amargura - Uma pequena viciada, que como eu fugiu de seu mundo, procurando abrigo. Nos tornamos amigas e confidentes. Eu a protegia e em troca ela trazia pequenos animais para me alimentar. Conversávamos, conversávamos e conversávamos. Contava-lhe séculos da minha existência e ela apenas ouvia, ria ou chorava. A pessoa que sempre procurei e nunca havia encontrado até aqui. Nos amávamos.

Mas nunca toquei em seu corpo, nunca bebi uma gota de seu sangue. Ela era humana! - então ela se debruçou sobre o corpo imóvel e a beijou os lábios inundados de sangue. A boca cintilava escarlate na luz fraca das velas.

Então se virou para mim, encarou-me, noutro segundo já estava a centímetros de meu rosto.

- Preste atenção, humano, muita atenção! Pois o deixarei viver! - o movimento descontrolado dos lábios fazia com que o sangue em sua boca espirrasse em gotas vivas contra o meu rosto - O deixarei viver, mas por um único motivo: você voltará para o seu maldito mundo lá em cima e contará aos hipócritas ignorantes de seus círculos de conhecimento e magia o que ocorreu aqui: que eles não precisam mais se preocupar com vampiros, pois você matou a última vampira da terra. Que eles coloquem em seus diários, junto com todas as mentiras e bobagens que acumularam durante esses malditos anos em que a civilização humana - a expressão "civilização humana" veio com uma enorme carga de desprezo e ódio - empesteou o mundo. Para vocês eu já estou morta, morta e enterrada.

- Me esqueçam! Por favor, me esqueçam!

Aquelas palavras, a expressividade com que foram proferidas, todo o sentimento descarregado nelas, me mordiam ferozes; arrancaram pedaços de meu orgulho.

Mas não, em nenhum momento senti medo dela, ou temor. Segundo os escritos aquela criatura se escondeu nesta caverna profunda há pelo menos um século, aparentemente sem razão. Ela sentenciou a si própria àquele pequeno calabouço, uma prisão perpétua. Ela possuía a vida eterna e a abandonou, agora sequer pode esperar a morte.

- Agora vá, humano. Não se atreva a revelar que ainda existo, nem mesmo ao seu diário mais confidencial. Quero que em suas mentes, daqui para frente, não haja qualquer lembrança de minha passagem por sobre a terra. Tudo o que quero é ser totalmente esquecida. Vá em paz. - eu estava paralisado e aturdido, não pude sair do lugar, quis, minha mente quis sair de lá o mais rápido possível, mas meu corpo não obedecia - VÁÁÁ!!!

Disparei pelo túnel, correndo na escuridão, seguindo o caminho apenas com o instinto, apenas o instinto comandava minhas pernas, mesmo se quisesse não poderia parar até estar no elevador. Passei pelo monte de livros apodrecidos, pelos escombros de várias épocas antigas, dei de cara com a porta que dividia o inferno, atravessei por entre os mendigos moribundos e finalmente alcancei o elevador.

Nos livros históricos e nos diários secretos dos círculos cientificos será colocado o meu nome: o homem que matou a última vampira da terra, lá estará escrito como enfrentei o bando de zumbis canibais que guardavam a porta, como ainda tentei salvar inutilmente uma jovem aprisionada pela vampira e meu duelo final com ela. Isso será passado para as futuras gerações junto com todas as outras "verdades eternas" inabaláveis de nossa cultura histórica humana. E eu faço parte dela.

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