A Garganta da Serpente
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O Homem das Palavras de Ouro

(Everson Antunes)

Um depósito abandonado. É a primeira coisa que lhe vem a mente quando olha o interior da casa. O forte odor de mofo e suor informa que a casa não fica aberta há muito tempo. A cozinha está soterrada pôr coisas, roupas, sacolas, migalhas, restos de comida e lixo. Além da cozinha só há um quarto - também atulhado de coisas - e o banheiro de onde provém um forte cheiro de urina.

No quarto só há um lugar que não está coberto por coisas, uma mesinha com cadeira onde está uma máquina de escrever.

Ela junta um dos papéis do chão e começa a lê-lo.

Então ela tem a confirmação; o estilo era o mesmo: forte, pesado, desesperado, triste e apaixonado. As palavras gravadas naquele papel não diziam isso ... eram isso!

Cada papel jogado no chão daquele quarto era uma fotografia, um raio x do seu autor, seu admirador, seu amante.

Ela era uma atriz de sucesso, linda, conhecidíssima e assediadíssima. Recebia milhares de cartas de fãs apaixonados todos os meses; propostas de casamento, de sexo, de simples amizades, admiração e rasgação de seda. Ela conhecia muito bem esses fãs produzidos pela super exposição a mídia.

Todos a consumiam, deglutiam, mascavam e jogavam fora. Mas dentro dessas milhares de cartas, uma a tocou, e profundamente. Quando ela o leu foi como se uma faca atravessa-se seu osso externo e num golpe só abrisse uma enorme fenda no seu tórax, colocando todas as suas entranhas a franca exposição.

Ela lhe mandou resposta e então as cartas começaram a ser trocadas aos montes. Nelas ela sempre se dirigia a ele diretamente como um amigo, ou um confidente, mas ele nunca escreveu diretamente a ela, mandava-lhe poemas, contos e histórias onde ela era sempre a protagonista. O incrível era que a descrição dele sobre ela era incrivelmente verdadeira. Ela se assustava ao perceber que alguém que nunca viu pessoalmente pudesse conhecê-la tão bem, em sentimentos, formas de reação, atitudes, desejos, ódios, amor.

Ela o admirava e com o tempo se tornou sua obsessão. Se masturbava pensando nele, dava-lhe um rosto qualquer, imaginava-o do seu lado, abraçando, beijando- a.

Um mundo de pensamentos e imagens vivas para ela, uma alucinação constante naquela realidade superficial e falsa em que ela vivia. Não, ela não conseguia mais distinguir entre o real e o falso, a imagem tão forte que era quase tangível, mas não estava realmente ali e ela não podia tocar, conversar; e aqueles que estavam ali, mas eram apenas casca, bonecos ocos, preenchidos pelo vazio.

Então ele parou de escrever. Ela ia pessoalmente ao correio procurar suas cartas enquanto jogava as outras no lixo. Mandava lhe cartas desesperadas suplicando uma resposta que nunca veio. A tristeza se apossou de sua alma como um demônio, definhou; foi internada num hospital com profunda anemia, se distanciou de seus amigos e até de seus familiares mais próximos. Se tornou reclusa, apenas cumpria as formalidades que sua profissão de atriz super conhecida lhe obrigava , mas não suportava mais. Então ela decidiu sumir, abandonar tudo aquilo e ir atrás dele. Agora ela está aqui.

A maior parte do quarto estava imersa na escuridão. Ela acendeu a luz e levou um susto. Um gigantesco pôster seu cobrindo quase toda a extensão da parede bem de frente para a cama. Imagina-o ali deitado observando o pôster, criando seus contos e histórias.

Então ela ouve o forte rangido das dobradiças da porta vibrando nas suas vértebras. Na porta, estático, está um mendigo; calça jeans velha, surrada, um sobretudo também velho e gasto que o cobre quase em completo, o cabelo comprido e desgrenhado, a barba espessa. A primeira comparação que ela fez foi com Jesus Cristo. E a encara com olhos esbugalhados afundados nas olheiras. Ela fica paralisada sem saber o que dizer, fazer, sentir ou pensar.

Depois de longos momentos a encará-la, ele finalmente pisca os olhos e se desliga dela. Como se ela não estivesse ali ele entra na cozinha, joga as migalhas que estavam sobre a mesa no chão e de uma sacola retira um pão, do bolso interno do sobretudo retira uma garrafa de aguardente. Encharcava o pão na aguardente e comia. Não olhou mais pra ela, não falou nada, a ignorou por completo.

- Emerson?! - ela o chamou pelo nome - Emerson Nunes.. é você?

Nenhuma resposta. Então ela se aproximou com a mão estendida para tocá-lo.
Mas ele percebeu seu movimento e num pulo se levantou e de costas pra ela
berrou:

- Me deixe em paz!
- Mas... eu vim... para vê-lo - disse com a voz trêmula e afogada em confusão.

- Vá embora! Me deixe em paz!!!

- Mas...

- Porque me persegue? Eu não quero mais vê-la! Vá embora, pôr favor - berrava ele em quase desespero.

- Como assim? É a primeira vez que... - ela estava perdida, totalmente confusa.- Eu queria vê-lo. Precisava vê-lo.

- Porque insiste, porque me enlouquece??? - berrava ele - Eu não quero mais. Não vou voltar ao manicômio!

Nesse instante a confusão na alma dela se desfez. Uma onda de compaixão a tocou, correu para abraçá-lo enquanto ele chorava , mas ele se esquivou bradando:

- Vá embora, pôr favor! Me deixe em paz - se trancou no banheiro.

Ela se lembra das alucinações dela e de como muitas vezes lhes dava real
crédito. As suas alucinações em que ele realmente acreditava e que eram as
suas inspirações para escrever seus contos, poemas , histórias acabaram
o levando a loucura , pôr isso parou de escrever. Agora que estava realmente
ali, ele não acredita, pensa ser uma nova imagem. Uma triste ironia e uma amarga decepção. O ser que ela admirava tanto não passava de um louco. Idiotice dela não haver notado isso antes, somente um louco poderia ser tão sincero em escritos, somente loucos conseguem buscar sentimentos tão estranhos e profundos da sua alma, conseguem desnudá-los e demonstrá-los de maneira tão bela e perfeita.

De repente ele irrompe pela porta do banheiro, com olhos vermelhos, face esbranquiçada e profundamente alterado. Em meio ao resfolegar intenso ele diz:

- Oh , Meu Deus. Mas, sim é você sim ; Real! Real!!! - Ele estava drogado. - Deus, você, você existe, - corre junto a ela e a abraça - você realmente existe - a princípio ela se assustou, as mãos dele passavam pôr todo o seu corpo e a face reproduzia uma expressão de espanto como nunca ela havia visto igual.

De repente ele a ergueu, e com profundo carinho como se segurasse um bebê, ele a coloca sobre a sua cama. Puxa a mesa com a máquina de escrever e a cadeira e os coloca bem em frente da cama, então começa a bater as teclas.

Ele mantinha uma ginástica visual rápida, olhava pra ela na cama, olhava para a máquina, olhava para ela, piscava, olhava a máquina, e escrevia num ritmo acelerado, compassado. Começou a escrever páginas após páginas, enquanto ela apenas o observava admirada. Ela levantou-se e tentou dar a volta na mesinha para poder tocá-lo, mas num movimento rápido ele moveu a mesa da maneira que ficasse sempre de frente para ela , de novo ela tentou contornar e de novo ele arrumou a mesa de maneira que pudesse encará-la.

Então ela esticou o braço pôr sobre a mesa e começou a esfregar os seus cabelos desgrenhados; ele parou de escrever.

Ela o puxou, ele levantou, e os dois se beijaram e se abraçaram, a mesa foi virada pôr eles, e a máquina de escrever caiu no chão e espatifou-se em dezenas de pedaços.
***

Emerson Nunes sentiu a sua cabeça doer, como milhares das vezes enquanto acordava, as pálpebras se desgrudavam e liberavam os globos oculares a luz. Quando isso aconteceu sentiu um pavor terrível aflorar dentro de si. Ele vira um mar revolto feito de fios de cabelos castanhos bem ao seu lado como uma aranha pronta a dar o bote. Com a mão trêmula ele retirou os cabelos da frente do belo rosto e sobressaltou-se da cama.

- Não, de novo não!

- Emerson, o que... - despertou ela assustada.

- Não , não vou deixar você fazer isso comigo da novo, não!

- O que você está falando?

- Não, eu não vou deixar!

- NÃOOO!!!

E a barra de ferro começou um círculo no ar, círculo que foi interrompido pela têmpora esquerda dela. Um estouro de sangue espalha-se pelo quarto, ela cai no chão já sem vida.

Ele ficou parado fitando o corpo belo e esguio caído no chão, horas. A morte nunca pareceu tão real, a morte era mais real do que ela , do que ele.

Arrancou o pôster que tinha dela e pregou cada mão delicada como se a crucificasse na parede. Fixou o corpo pendurado onde antes era o pôster. Então deitou-se na sua cama e ficou apenas admirando-a.

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