A Garganta da Serpente
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A Alma andarilha de um corpo cansado

(Everson Antunes)

Saí do trabalho às 6:00, como todos os dias. Fui então pra casa, como fazia todos os dias. Segui por ruas, viadutos, vielas... como todos os dias. E não me importo. A monotonia? Não ligo! As pessoas não gostam de mim? Não ligo e não as culpo, não desgosto delas por isso. Pelo menos não por isso. As pessoas me veem como um cara insensível, indiferente... e elas tem razão! Mas não ligo. Falo com elas somente o necessário e dou atenção somente ao necessário do que falam. Ando pelo trajeto para a minha casa, sério, com o olhar para frente, sem encarar ninguém e indiferente ao que acontece ao meu redor. Assim faço todos os dias.

Mas aquela noite não foi como todos os dias.

A vi próxima a minha casa, de negro, com a cabeça baixa e andar cambaleante. Desviei o olhar, como é de meu costume, para a calçada. Vi então um rastro úmido, vermelho escuro, vinha da garota, gotejava das suas mãos. Não me diz respeito. Não a conheço, aliás, não conheço ninguém. Por isso a deixarei a sua própria sorte. Quem sabe encontre alguém com sentimentos nobres de solidariedade que a ajude, ou talvez só a encontrem quando estiver fora de alcance, morta. Mas eu continuarei o caminho até em casa e a esquecerei.

Mas quando cruzo por ela:

- Hey! - ela grita, e eu finjo não escutar, então ela praticamente se atira e minha frente, eu a encaro desconcertado; a face velada pela palidez, cabelos revoltosos, ergue os braços apresentando-os para mim, vi os talhos em cada punho; ela não me implorou ajuda, não pediu nada, seus olhos aprisionaram os meus, e ela recitou:

- Não me olhe assim... eu sou parte de você, você não é parte de mim.

Em seguida as pálpebras cerraram os olhos e ela desmaiou.

Chamaria a ambulância, a polícia, um táxi? Eles estão mais preparados para cuidar dela. Porque eu deveria me preocupar com qualquer um que desaba à minha frente? A responsabilidade não é minha! A única responsabilidade da vida de alguém que corta os próprios pulsos é dela própria. Eu já tenho a minha vida e é demasiada responsabilidade. Mas para minha própria surpresa eu a levei para casa, fechei as feridas, reanimei-a com odor de álcool nas narinas, dei de comer, beber... Não sabia quanto sangue havia perdido talvez precisasse de uma transfusão. Foi uma idiotice tê-la trazido. Algo totalmente inexplicável e irresponsável. Se ela morresse eu acharia uma pena, realmente, pensaria: " Bem, deveria ter chamado a ambulância. Mas agora é tarde pra isso".

Senti seu pulso, parecia normal. Deixei-a descansar. Sentei e fiquei observando-a curioso na cama. O que me aconteceu para eu recolher uma desconhecida à beira da morte? O que ela teria de especial? Acho que foi o que disse: "Não me olhe assim, eu sou parte de você, você não é parte de mim". O que ela quis dizer? Ou é apenas uma frase solta por uma mente desequilibrada?... Sem sentido? A frase em si tem sentido? Se eu não faço parte dela, e ela faz de mim, é porque eu sou o todo, e ela uma fração, ela me completa e não eu a ela. Mas... se ela é uma parte de mim, qual seria? Uma parte do corpo? Não, que eu saiba estou completo. Algo fora de mim? Algo dentro de mim? Algo que perdi e nem senti falta?

- Sua alma.

- O que?

- Sou sua alma, Everson - ela me respondeu se erguendo e recobrada de repente. - Por isso visto este vestido preto, sou sua alma negra. A alma que abandonaste.

- Do que estás falando? Como me conhece?

- Conheço-o, Everson, conheço-o mais do que você a si próprio. Conheço os desejos reprimidos, os prazeres medíocres, vícios adquiridos; conheço as dores fermentadas em garrafas de vinho e guardadas em adegas que cada vez vão ficando mais velhas e saborosas. - ela se levanta da cama e vem a mim - conheço as veias logo abaixo da sua pele clara, os contornos de seu corpo esguio, as mãos frias, os lábios quentes...

- Não entendo...

- Você me abandonou! Há anos lhe persigo... há anos no seu rastro sem encontrá-lo, há anos com os pulsos cortados, esperando um resto de humanidade de uma carcaça vazia!

- Ainda não entendo... como te abandonei? Como posso ter abandonado minha própria alma?

- Nunca ouviu falar de projeção astral? A alma deixando o corpo? Você fez o contrário; o corpo foi-se, deixando-me para trás.

Esfregando as costas dos dedos na boca, tento fugir de seu olhar aprisionador. Ela fez parte de meu passado? Alma, alma era o nome de uma garota? Acho que... uma parte de mim a muito, mas a muito tempo perdida; perdida e esquecida; seria ela?

- Me desculpe... desculpe ter feito isto com você! Eu..., eu não imaginava...

- Tudo bem, tudo bem. Estou feliz agora - ela senta em meu colo e me abraça, fico desconsertado com sua vivacidade para mim, inexplicável, para alguém que a pouco tinha o sangue espalhado pela rua.

- Desculpe, eu não me lembro direito, não lembro de tê-la, Alma, na verdade todo meu passado às vezes me parece tão falso que não consigo acreditar nele.

- Mas é real. Você uma vez já se deliciou com uma música, já riu de uma piada, já se encantou com uma imagem, já amou. Mas não o culpo por ter-me abandonado.

- Você... é real?

- Não, mas você também não é.

- Por que se veste de preto, por que os cortes nos pulsos... - olha-me rigidamente.

- Se realmente não sabe, nem deveria perguntar... - mas eu sabia.

- Então uma vez eu gostei de música?

- Sim.

- E amei uma garota?!

- Sim.

- Quem?

Ela aproxima o rosto e me beija. Nos amamos.

Minha Alma pediu para que eu nunca mais a deixasse. Disse que sem mim não viveria. Eu disse que sem ela apenas não seria feliz. Minha Alma me fez gostar de novo de música, e de poesia, de livros e imagens, das coisas belas e das feias esteticamente apenas que transmitiam algo de admirável. Até das pessoas comecei a suportar. O caminho de volta do trabalho para casa se transformou num caminho para redenção, pois ela me esperava, talvez eu ainda fosse indiferente, insensível e até cruel com o mundo ao redor, mas não para a Alma.

Até que uma noite tive uma projeção astral.

A Alma se levantou da cama; as costas nuas ela cobriu com o vestido preto; olhou para mim e disse como se desculpando:

- Não me olhe assim, eu sou parte de você... você não é parte de mim.

Foi-se.

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