A Garganta da Serpente
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Suelem no Motel

(Daniel Ricardo Barbosa)

O quarto estava mais claro do que o restante da casa. Quando abri a porta fui obrigado a cerrar os olhos. Fui até a janela por onde atravessava o brilho das luzes da rua e fechei as cortinas. Apaguei os abajures que esquecera acessos. Como o planejado, já despido, soltei o peso do corpo sobre o colchão.

Comecei a pensar em tudo o que ela me disse, sobre não estar cem por cento convencida do que somos nós. No mínimo foi uma conversa estranha. Suelem, minha noiva, ficou o tempo todo perguntando o porquê de estarmos ali. Logo que tocou no assunto, por nos encontrarmos num motel, respondi algo que ela não aceitou muito bem.

"Estou falando da gente como espécie. "Tá" entendendo? Qual é a verdadeira razão de ser da humanidade?"

Fiquei sem saber o que falar. Convenhamos: perder o meu tempo com coisas que só deveriam interessar aos filósofos e escritores ou a qualquer outro tipo de maluco, em pleno sábado? Realmente não era a minha intenção. Não seria um "passatempo" a que me dedicasse em nenhum momento, quanto mais no meu dia de folga.

"Eu quem vou saber?", respondi.

Depois tentei mudar de assunto, mas a Suelem estava disposta a continuar. Chegou a fazer algumas ironias, dizendo que ultimamente não conseguia ver sentido nem em se fazer amor, trabalhar e tudo o mais.

"Você quer ir a algum médico?", sugeri, pensando em um neurologista que diagnosticasse prontamente uma depressão e receitasse alguma droga eficaz.

De qualquer maneira, Suelem rejeitou a ideia com convicção. Disse que não estava doente, apenas não entendia por que esta vida não fora uma escolha sua. Ela fora "traçada" antes de seu nascimento, talvez até mesmo antes do nascimento de seus pais.

"Mas não foi você quem decidiu ser enfermeira? Sua mãe até brigou contigo, não se lembra?"

"Eu sei, mas estou falando em geral, sob todos os aspectos. Já que você citou, a enfermagem serve como exemplo. Eu tinha outras opções, mas daria no mesmo. Mudariam os cenários, sabe? O princípio, o meio e a forma de interagir seriam os mesmos."

Não podia acreditar no que estava acontecendo! A semana inteira dando o maior duro no trabalho a fim de ter uns trocados para gastar no sábado, e agora todo aquele doce. O pior é que eu não sabia o que fazer para sair daquela situação. Como criar "um clima" em meio a tantas perguntas?

"Esquece isto", tentei desconversar.

Depois expliquei à Suelem o que todo mundo sabe. Se a gente fica "marcando bobeira", a vida passa sem que tenhamos tirado nenhum proveito. No fim acabamos nos esquecendo do presente a troco de besteiras.

"Aposto que daqui a pouco você nem se lembrará dessas "coisas" que algum imbecil pôs na sua cabeça", concluí, tentando parecer o mais impessoal e calmo possível. Quis diminuir o tamanho do prejuízo e recuperar o tempo perdido.

"Não foi um "imbecil" que colocou na minha cabeça. Foi o livro de um recepcionista que trabalha comigo no hospital. Sempre que possível almoçamos juntos no refeitório. Mais ou menos uma semana atrás, eu lhe disse que estava muito cansada. Fazer tudo igual, todos os dias, sentindo que verdadeiramente não chego a lugar nenhum, estava me deixando tensa. Não imaginei que ele também se sentia assim, menos ainda que fosse se abrir comigo e até me emprestar algo que escrevera sobre o assunto."

Nesta hora o ciúmes não me deixou prestar a atenção no que a Suelem falava. Comecei a imaginar um recepcionista qualquer com a mão na cintura da minha noiva. Fiquei furioso e só consegui ouvir algumas frases sobre o que o "lixo" do livro abordava. Como nada do que a Suelem dizia indicava algo além de uma amizade, com o tempo fui ficando tranquilo e pude acompanhar a conclusão de seu raciocínio.

"Meu amigo disse que algumas pessoas leram o seu livro, mas ninguém se interessou em investir na obra. É engraçado! Depois de ler esta "droga", nada será como antes. É como se estivesse dormindo e agora não mais. Pena que tudo o que enxergo hoje em dia me faça sentir tamanha tristeza."

Depois disso a Suelem completou dizendo que não era possível conversar este tipo de assunto comigo. Deu a velha desculpa da dor de cabeça e pediu para irmos embora. Neste momento fiquei nervoso de verdade, mas tenho uma mania: detesto perder. Sei que se demonstrasse insatisfação, poderíamos brigar e talvez eu perdesse a noiva.

Preferi ficar quieto: era só uma fase pela qual ela estava passando. Logo teria a minha velha e boa Suelem de volta. Além disso, naquela mesma noite colocaria em prática uma pequena vingança. Deixei a minha noiva em casa. Durante o percurso, pensar no que faria logo mais me ajudou a controlar a raiva. Fiquei em silêncio.

Já deitado, no escuro, tateei a superfície do criado mudo e apanhei o controle remoto. Liguei a TV e o Dvd. Como o planejado rodei o filme, com certeza mais quente do que a minha noite de sábado. Já na primeira cena apareceram duas loiras um pouco bronzeadas "se acabando" num beijo cheio de malícia.

Praticar uma masturbação básica é sempre a melhor vingança. Tudo não passa da minha imaginação. A Suelem nem ao menos desconfiaria das imagens que se formam na minha cabeça. E hoje bem que ela tava ganhando o que merecia, com aquelas perguntas todas.

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