A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Pássaro pelado

(Daniel Oliveira)

As aves do céu pertencem ao céu. E se têm asas, é da natureza delas voarem entremeio aos ventos e nuvens desta atmosfera tosca.

Tive o prazer de voar com elas, as aves do céu. Criei plumagem sobre a pele de meu corpo torto, criei leveza nos ossos, uma imaginação que me fazia levitar na órbita da realidade, desprender-me dos subterrâneos do ar.

Assim foi que conheci as criaturinhas aladas que povoavam o enigmático abismo que cerceava a cúpula celeste do meu imaginário infante. Periquitos, papagaios e pardais... Eles que foram o alvo de meu olhar tão inocente, uma representação singela de meus gestos...

Agora as coisas tomam novo rumo. Já não mais os tenho, eles, os periquitos, os pardais e papagaios. Morreram todos de ataque cardíaco. Quisera eu engaiolá-los, mas meu senso de liberdade não me permitia que cometesse horrendo crime. Vê-los pairando contra as adversidades do vento era para mim algo de extrema grandeza. Lembro-me até quando ficava horas tagarelando com o papagaio que vovó criava no enorme quintal de sua casinha pequena.

Falávamos sobre as questões da extinção, o que seria deles, os alados, num futuro não muito distante. Aqui e ali, os comentários maldosos acerca daquela nossa relação animalesca. Eu mais parecendo um besourão de asas, uma carcaça já deteriorada pelo tempo anômalo, e eu sabia que os gafanhotos haviam invadido naquela manhã mesma as plantações do mundo todo...

Necessário criar armadura sobre o corpo-frágil, criar dentes afiados, que é para mostrá-los. Meus amigos eram daquele jeito, produtos de um mundo que vocifera maledicências, um mundo-torto, cambaio e ao avesso do que deveria ser. Sentir é difícil onde já não há mais sentimento. Fazer-se entender onde todos, súbito, ficaram lelés e surdos, não mais satisfaz a intenção de mudança do anjo que se expressa sobre um tamborete colocado nas quatro esquinas do tormento.

E aí me esparramo pelo asfalto pegando fogo, lágrimas evaporando-se e tomando o céu. Pássaro pelado que sou, engaiolado.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br