A Garganta da Serpente
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O muro

(Daniel Oliveira)

É caminhando sobre o muro que experimento a sensação da dúvida. E você, coisa miúda? Nada mais horrível que cair dele de pernas abertas e ainda dá risadas. Pobre de quem ao menos sobe nele, sob a alegação de querer sentir o perigo. Coitado. Mal sabe que, para subir, feiamente arreganhará as pernas, quem sabe se escorregará também. Já subi várias vezes esse muro. Sim, esse muro aí que separa a minha e a sua casa, esse monte de gelo. Várias vezes escorreguei; várias caí. Rotina me equilibrar sobre sua estreita vereda. Às vezes você também se lança à tentação de subi-lo, em tentativa de querer me derrubar. E olho para você e dou uma risadinha irônica, só para ver se você cai. Que duro é você! Que indomável! Outro dia mesmo o vi sobre o seu, e não meu, bestificado muro, aquele sobre o qual foram afixadas, como proteção doentia, pontiagudas tachinhas, nervosas tachinhas. Súbito, nesta hora, você se embate contra meu peito magro, exasperando palavras de repúdio à minha maneira de ser e de existir. Que eu era um doidivanas, um depravado; que eu era um sem... um sem estrutura! Daí que nossos embates eram imunes às armas de ferro. O corpo era a forma mais humana nossa de contrariar o outro, o espírito dentro do outro. Enfunando o papo, eriçando a crista, envermelhando os olhos, enchendo a boca de baba, mostrando a unha suja e encardida... Tapas e gritos de leão a minha força contra você, ó, meu vizinho incompreensível! Por que aquilo? Por que?! Por que você construiu aquele muro entre a minha casa e a sua? Depois de uma rixa nossa sem sentido, sem madureza. Talvez, também, se meu filho não tivesse pisado em suas flores, aí em seu jardim anêmico, o muro fosse só utopia, ilusão nossa apenas, um tapa ressentido de umas passadas desavenças, as de nossas filhas. Lembra-se? Uma tomando o namorado da outra, uma bagunça, e isso sendo elas tão jovens e você o pivô de tudo, um sufoco para a minha cabeça, para a ordem lógica de nossos lares, nossos quintais. E tem outra coisa também, ó, cínico dissimulado! Deixe de ficar nos espiando por entre as frestas deste muro maldito! Deixe-nos em paz a vida, se assim quer; deixe de malquerenças... Que exemplos estaremos dando a nossos filhos se persistirmos nessa rotatória de vinganças mútuas? Haverá um dia em que haveremos de prestar contas a eles sobre nossos atos. Sufoco isso também, meu hostil companheiro... Sufoco. Até quando? Até quando essa dor de cabeça nas noites frias em que nossos bebês ardem em febre e se sucumbem aos gritos da diarreia? Até quando? Quando não der mais? Quando não mais houver suspiros de nossos filhos em precoces alumbramentos nos cantos dos outros muros, aqueles que fedem urina? Vejo e não consigo acreditar que você, ontem mesmo, retirou o varal que minha amada fixou na extremidade de seu muro idiota! Tenha sensatez, vizinho. Não fique aí parado, deixando passar esse precioso tempo que nos convida a viver mais intensamente a vida. Vamos, derrube esse muro! Vamos, deixe cair por terra todas aquelas nossas intrigas, as hostilidades que esbravejam no interior dos cacos de vidro que se entulham no fundo do meu e seu quintal. Faça o seguinte: antes de pensar qualquer coisa, não pense absolutamente em pensar. Siga apenas o que é certo. Pergunte àquela sua mulher que recentemente conseguiu vencer o câncer. Ela tem força. Tem garra! Ainda não sei porque ela não o impediu de cometer tamanha loucura. Mas também, em fase de convalescença, naquela cadeira de rodas... Talvez por isso que as coisas por aí se desandaram. O equilíbrio de sua mulher supera o seu, meu caro. E em muito. Peça a ela uns conselhos, favor. Não ignore o desejo maior de seus filhos, eles que outrora se esbaldavam de alegria nas festivas noites dos encontros amistosos com meus filhos. Certamente não veem a hora de poderem transpor esta barreira que agressivamente lhes matara a vida tão jovial, a vontade de colocar para fora suas fúrias adolescentes, suas expectativas, suas angústias... Jogue fora o delírio da dor de seus anjos que em seus ouvidos choram e se lance agora mesmo ao puro ar atmosférico da família. Viva a família, meu caro ser bendito e às vezes muito cruel. Não mais quero lhe maldizer. Antes, pretendo apertar-lhe a mão com a firmeza de quem reata um coração partido pelo raio da torturante incompreensão. Quero, sim, dizer-lhe palavras que possam provocar em você dores necessárias ao entendimento. Eu sei, vizinho, que sua filha provoca periódicos vômitos atrás deste muro aí. E sei também que ela sofre, pois imagina que vocês não sabem, e que a verdade lhe custa sair. Custa-lhe dizer que, se pudesse, já teria mandado passar um trator sobre este muro vil, este vil empecilho à boa convivência. Então, deixe esta sua agonia para quando você estiver sozinho no banheiro, ou em dolorosos pensamentos sobre o vaso. Deixe sair, junto com a transpiração e os seus restos, aquela inveja, aquele sonho já há muito morto, sua ruindade que vocifera sob as axilas, seu jeito torto de vislumbrar as coisas, o espírito de Deus. Faça isso, que certo, neste esplendoroso dia, estarei, eu e minha família, com a mesa pronta, muitos frutos e muito vinho a esperar-lhes a perfeita e doce degustação da união e do amor fraternal. E aí não existirá mais muro nem murro. E a vida vai ser muito mais leve e muito mais agradável do que era outrora...

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