Doze de agosto. O dia amanhece comum, como se as misérias não
fizessem sentido e pudessem desequilibrar todo universo, ao menos alguns universos.
O sol nasceu indiferente e continua protagonizando sua herética aurora,
ignorando qualquer contrição, qualquer sacrifício.
Vinte um meses, exatos vinte e um. Todas as inconsequências, loucuras
e vícios; algum dia põe alguém à prova, ao menos
alguns. Será necessário acreditar em pecado para merecer perdão,
quem sabe?
Foi no inicio de abril, todos bebiam e celebravam a bolsa obtida para um mestrado
em Bruxelas. Havia no ar uma eletricidade de tirar o fôlego. Estávamos
em família e uns poucos amigos íntimos; bêbados e felizes
experimentando um frisson que gerava uma energia irreal.
Os assuntos eram todos da coragem e invencibilidade da pequena confraria de
eleitos, soberbos, belos e imersos numa felicidade que irradiava. As garrafas
esvaziavam tornando tudo mais solto e perigoso.
O sono e o cansaço daquelas emoções fortes ao mesmo tempo
tanto traziam uma sensação edificante, quanto prostrava pela tensão
que gerava, ainda havia a bebida e todo o desejo que as vitórias trazem
consigo.
Então ela se dirigiu ao discreto chalé no fundo do terreno, era
sua catedral, ali se sabia protegida, não seria incomodada. Foi ao banheiro,
soltou uma gargalhada ao se dar conta do quanto estava feliz apesar de se saber
entre estranhos, todos próximos, conhecidos, porém indecifráveis
para suas emoções e seus instintos.
Entrou no pequeno quarto tirou as roupas e vestiu a camiseta que usava para
dormir, durante algum tempo fixou os olhos no teto como se desafiasse a lucidez.
Buscou entender os ruídos que vinham de fora e lentamente adormeceu.
Sonhou seu sonho recorrente, mais sensual, de tal forma erótica que seu
início a atirava em um estado de semiconsciencia.
Seu amante era um homem forte, moreno, latino; suave no toque, porém
possessivo no ato, mordia e encarnava desejo e fúria, alternava febre
e volúpia. Os dias depois deste sonho eram sempre carregados de uma excitação
incomum, nenhum de seus amantes jamais soube o porquê de tamanha entrega
nestas ocasiões.
Ela se entregava inteira, sem reservas, arrancava dos seus homens sua satisfação
e os mantinha hipnotizados por uma fêmea que era até então
desconhecida.
Seu sonho seguia intenso, seu amante a dominava e submetia; ela experimentava
a sua boca, que vasculhava sem trégua cada ponto onde sua carícia
podia ser sentida, em determinados locais parava num misto de tributo e perversão
e só interrompia ao dar por colhido o desejo revelado.
Ela se abria e permitia qualquer contato, todo toque, ele a revirava na cama,
rasgou sua camiseta retalhou sua calcinha, lambia e mordia os seus seios, tomava
seu sexo com a língua com os dedos; de forma crua quase vulgar.
Quando ele a sentia dominada e absolutamente submetida as suas investidas, ele
a possuía, de uma maneira deliberadamente contida. Ele pressentia as
ondas crescentes do prazer que proporcionava e cuidava para que elas não
cessassem até que todo o rito estivesse consumado.
Assim a sua semiconsciencia absorvia tudo, a firmeza quase rude quando acelerava
seus movimentos e a leveza sutil quando desacelerava, ela se sentia transpassada
e intimamente preenchida por aquele homem até a alma.
Seu desejo não encontrava limites, ela era mantida num espaço
entre a paixão e a submissão e isto não significava nenhum
desapreço.
Ela era tragada pela intensidade de sua fome e apenas quando ele se dava por
inteiramente saciado, ele aquietava, embora não permitisse que ela saísse
da cama.
No dia seguinte, ela sempre acordava cheirando a sexo, com as roupas rasgadas,
satisfeita e extasiada com a visita do seu amante; seu sonho arrebatava de tal
forma que com o cair da tarde uma nova onda de desejo tomava forma dentro dela
e ela buscava agora acordada e consciente o amante ardente que a visitava. Poderia
ser qualquer um, em qualquer lugar, o eleito desfrutaria de uma noite inesquecível
até que ela desse por satisfeita a sua fome e houvesse preenchida a urgência
por seu amante.
O dia seguinte deu-se estranho, com uma sensação mais completa
que noutras noites, os suores e os cheiros resistiam aos banhos e se fechasse
os olhos ainda sentiria suas mãos e sua língua. A intensidade
daquele sonho perdurou por semanas e depurou de tal forma seus desejos que já
não queria homens, estava emotiva e absolutamente embevecida, sem saber
por quê.
As semanas se sucederam numa vertigem, e o seu alheamento só foi perturbado
por algum mal-estar, talvez do calor do final de abril.
A consulta médica resultou num terror surreal, grávida; de quem?
Como?
Recordava-se das suas relações e das precauções
a todo tempo e não conseguia nenhuma certeza concreta sobre o seu estado.
Aterrorizada saiu às ruas, tonta, absolutamente desorientada seguia em
busca de uma resposta. Nenhum homem se mostrava presente além de seu
anônimo amante, nenhuma memória se apresentava mais caprichosamente
detalhada. Então veio juntamente com a angústia um desespero de
não saber quem era seu parceiro naquele pulso estranho que sabia dentro
de si.
Procurava em vão as feições daquele rosto e a busca resultava
inútil. Sentia-se louca ao imaginar que estava grávida de um sonho.
Como era possível?
Reviveu as ultimas semanas detalhadamente, até poder imaginar quem? Parava
sempre na comemoração do mestrado como sua noite mais presente
em recordação e intensidade.
Logo uma pergunta aterradora brotou de dentro do seu ser.
"... e se não fosse um sonho?"
"... e se não fosse sonho nunca. Por todo este tempo?!"
A visão do teto era um refúgio perfeito à investigação
de qualquer olhar, mesmo na cumplicidade do obstetra, e em todas as razões
que ele conhecia. Quantos destinos se desgarraram naquele espaço e quantas
histórias ficaram suspensas nos procedimentos de curetagem, era preciso
seguir e o próximo passo era sair pela sala de espera e enfrentar o seu
dragão mais cruel e mais encantador.
A sala nua era de uma frieza medida e os olhos se voltavam para um crucifixo
que testemunhava as culpas. Não se ouvia um ruído sequer, era
uma liturgia de silencio que permanecia atiçando todos os seus tormentos.
Ela parou diante dele respirou fundo e quando seus joelhos falharam seus braços
firmes e discretos a tomaram pelos ombros, ele a levou para fora. Caminhou direção
ao carro, não falaram, pois o que vivia não caberia em palavras,
as afirmações possíveis seriam de culpa e pecado, então
calavam e se submetiam aos seus próprios juízos.
O carro segue o fluxo do tráfego, indiferentes a qualquer destino, por
um instante se olham e se vêm até o fundo de suas almas desesperadas.
"E agora?"
"Vou te levar para a sua casa, passo lá mais tarde. Acho que precisamos
respirar e ficar um pouco sós."
"É."
O carro retoma uma rota conhecida deixando para trás um rastro denso
de angústia, mas o que se apresenta de forma alguma se supõe melhor.
Chegam ao pequeno prédio e ela entra naquela construção
tímida como estivesse num abrigo inexpugnável, precisava demasiadamente
se sentir protegida.
"Vem entra um pouco."
"Não posso demorar, quero voltar mais tarde..."
Hoje ele não lhe negaria nada.
Ela se senta num sofá pequeno e ele se acerca dela, pega uma de suas
mãos, seu rosto é uma expressão frágil e cansada,
como se todo fardo dos últimos meses estivesse maior ou lhe faltasse
forças para suportar.
Ele não resiste e acaricia o seu rosto, uma lágrima escapa numa
emoção antecipada, ele enxuga e toma seu rosto com uma ternura
indecifrável e beija suas faces, logo estão se beijando com uma
paixão tranquila, seguros da descoberta de alguma coisa além
deles mesmos.
Ele lentamente afasta o rosto dela do seu, de olhos abertos beija sua boca mais
uma vez e se despede.
"Tchau."
A visão do céu é de uma aceleração da paisagem,
e as nuvens seguem veloz rumo a um tempo desconhecido, as horas são um
salto numa urgência de futuro.
Passaram meses de euforia e depressão, uma gangorra emocional insuportável.
Vivia a força daqueles encontros, a comunhão desesperada e sem
futuro; carregava em si a euforia de uma despedida que se prolongava para além
de suas próprias vidas.
Não falavam do filho que não tiveram, só tratou do assunto
uma única vez e concluíram que estavam perdidos. Viviam aquele
amor como um pacto de morte.
Não eram mais vistos em público ou em família, se falavam
por telefone e se amavam furtivamente no pequeno apartamento do Catete. Seguiam
suas vidas com seus amores de fachada; ele com seu casamento embolorado, ela
com seu jovem amante apaixonado, construíam álibis para suas ruínas.
Nunca falavam destas pessoas, desta outra vida, era como se o mundo cerrasse
ante aquela porta.
Vinte e um meses após aquela manhã de abril uma melancolia se
prendeu ao seu humor. Ela já nem se recorda que fora num dia doze, mas
alguma coisa se move sorrateiramente na paisagem ressuscitando o estranho daquela
emoção. Então escorre pelo rosto uma lágrima antiga
de uma dor que aniversariava sem canto de parabéns.