Sinto o sol queimando em minhas costas. Minha pele arde, minha carne está
em chamas. O suor verte de minha testa turvando minha já ofuscada visão.
Sinto meu corpo pesado, entorpecido. Não sei como vim parar aqui, nem
mesmo sei dizer onde exatamente é aqui. Tudo que me lembro é de
estar no imundo quarto cujo qual pelo governo a mim foi designado, sentado sozinho
em minha cama maltrapilha, aguardando o vil carcereiro vir me buscar para que
se execute a sentença à qual fui condenado pelos servos de satã.
Sou um homem de Deus, um instrumento de sua vontade. Todos que se levantam
contra mim, estarão se levantando contra nosso criador. Sei que minha
condenação injusta é Deus colocando meu amor à prova,
assim como já fizera antes com Jó, Abraão e muitos outros.
O pai submete seus mais amados e leais filhos às provas de fogo a fim
de testar até onde vai nossa fé e lhes garanto que a minha é
incomensurável.
É isso, só pode ser isso! Antes de me conceder a eternidade no
paraíso, terei que passar por mais esse martírio. Sinto como se
todos os meus ossos estivessem quebrados. Meus joelhos ensanguentados fincados
no solo, com as mãos apoiadas no chão eu sinto que toco em areia
escaldante. Vagarosamente eu tento abrir os olhos, deixando que minha visão
se acostume com esse intenso fulgor.
Surge em minha frente a imagem de um homem, um santo. Eu vejo um cristo crucificado.
Em seus lábios um estranho sorriso sarcástico. Seu olhar me fuzila,
penetra em minh'alma. Sinto-me nu, fraco, desprovido de qualquer defesa. Sinto-me
sendo acusado, julgado e sentenciado. Nos olhos de cristo, um tribunal castigadoramente
silente.
- Qual é meu crime? ...Meu pecado? ...Pelo o que estou sendo julgado?
Ele nada diz. Minhas perguntas não foram ouvidas. Cristo continua silenciosamente
me fitando nos olhos. Fui eleito rei. Coroado, uma coroa de espinhos em meu
crânio fora cravada. O sangue se mistura ao suor escorrendo por minha
face. Sinto que meu cérebro vai explodir. Milhões de sinos batem
às doze horas diurnas dentro de minha cabeça. Algo ensurdecedor,
aterrorizante.
Pensei em correr... Eu corri... Pensei em fugir, me esconder... Eu fugi.
Corri... Suei... Cansei... Sangrei...
Quanto mais eu corro, me distancio, mais percebo que estou no meio do mais
absoluto nada. Até onde meus olhos alcançam tudo que vejo é
areia e mais areia, por todos os lados apenas um branco e escaldante manto cobrindo
toda a terra. E o sol quase que tocando o solo num beijo tão belo quanto
torturante. Com as pernas cambaleando, eu caio, e de novo me vejo de joelhos,
aos pés de cristo crucificado. Como se tivesse percorrido centenas de
metros sem sair do lugar. Ele ainda sorri; macabro, perverso. Uma dor insuportável
começa a invadir meu corpo. Sinto como se minha carne estivesse sendo
rasgada, atravessada por um instrumento letal. Minhas costelas bruscamente perfuradas.
Sinto como se uma pontiaguda lança penetrasse o meu ser. Quase desfalecido.
Eu chorei... Eu clamei... Eu orei...
Dessa vez minhas preces foram ouvidas, respondidas. Como resposta todos meus
pecados foram-me demonstrados. Pecados que até então julguei não
possuir. Cadáveres surgiram por todos os lados, brotavam da terra ao
meu redor. Vi-me cercado por um nefasto jardim humano. Tantos sorrisos apagados,
tantos sonhos encerrados, tantas vidas que eu tirei.
Cristo ainda sorri... Malicioso... Sarcástico... Irônico...
Ri da própria dor, agora refletida em meu corpo...
- Matei por ti, senhor... Matei por amor à ti...
Ouço uma voz sofrida. Cristo fala em minha mente, enquanto à
minha frente seus lábios ainda se mantinham estáticos em debochado
sorriso.
-Matas-te por mim? Eu morri por você... E por amor á mim o
que fizeste? ...Matas-te?
Os cadáveres ao meu redor começam a ganhar vida. Seus corpos
ainda mantêm o horrendo estado de putrefação. Levantam,
cercam-me, envolvem-me em um circulo humano, tal qual fazíamos em nossas
reuniões. Tal qual fizemos ao redor de cada uma dessas pessoas agora
sem vida quando tentaram deixar nossa amada "igreja do cordeiro de Deus".
Foram submetidas à expiação de sangue como manda minha
doutrina. Só assim herdariam o reino de Deus na terra.
- Foi por ti, senhor...
Os mortos, zumbis, sacaram adagas. Pouco a pouco o circulo funesto foi se fechando
sobre mim. Senti meu corpo sendo perfurado dezenas de vezes por lâminas
frias. Uma dor mortal toma conta de mim, mas apesar de sentir a morte, eu não
morri. Eu pedi para morrer. Clamei ao pai que me tirasse a vida, implorei. Meu
pedido não fora ouvido.
Ouço uma voz ao longe dizendo um simples "Amém".
Levanto aos poucos minha cabeça. A voz que pareceu vir de longe veio
de um presbítero em pé ao meu lado, bem próximo de mim.
Olho ao meu redor, não vejo mais os cadáveres, nem mesmo cristo.
Vejo apenas dezenas de pessoas sentadas em poltronas à minha frente.
Seus olhares são de ódio e satisfação. Eu os reconheço,
cada um deles, são parentes dos irmãos que tiveram a vida tirada
por mim, os mesmo que me cercavam à poucos minutos. Aguardam ansiosos
o momento em que o meu algoz levantará a alavanca eletrificando a cadeira
donde estou sentado. Não estão com meus sentidos normais, mas
eu sinto o ódio que exala dessa perversa plateia.
O momento chegou. A alavanca foi suspensa. Em segundos meu corpo é eletrificado,
meu cérebro frita. Minha vida deixa meu corpo transformado-o apenas em
matéria. Um pedaço de carne torrada jogada à frente de
um povo impiedoso. Vejo-me novamente aos pés de cristo. Agarrado pelos
corpos pútridos. O filho do criador não mais sorri sarcasticamente.
Agora cristo gargalha, sua maquiavélica risada ecoa por todos os lados.
Um precipício se abre logo atrás de mim. Os cadáveres me
arrastam em direção ao imenso buraco no solo. Eu reluto, em vão.
Eles são muitos e quase não tenho forças. Sou levado. Afasto-me
sem desviar os olhos de cristo. A gargalhada cessa, mas ele ainda sorri; irônico
e sarcasticamente.
Todos os zumbis se jogam buraco negro adentro me levando junto deles arrastado
pelos braços. Meu corpo cai. Imergindo de encontro à plena e absoluta
treva. A caminho do fim. Séculos em queda para um destino ainda pior.
Onde pela eternidade queimarei nas labaredas do inferno. Mas sei que a minha
fé... Está apenas sendo testada.