Dizem que os contistas fazem-se herdeiros das lembranças alheias, é
até pode ser, no entanto tão mais poeta que contista, possuo minhas
próprias lembranças, e grande é verdade, que parte delas
se mesclam com algumas leituras e releituras que tenho feito em meu cotidiano.
O conto que transcrevo agora é parte destas lembranças que a pouco
passaram a me pertencer, espero, no entanto que elas possam fazer parte de vossas
lembranças também, boa leitura.
Era início de 1914, e eu já beirava meus dezoito anos e com
seus quarenta e sete brilhava a inesquecível Estrada de Ferro The São
Paulo Railway Co (S.P.R.) ou simplesmente "Inglesa" como era conhecida,
idealizada pelo genial Barão de Mauá; meu velho pai ingressou
como operário na ferrovia S.P.R. por volta de 1874 onde deu início
a manutenção das vias próximas a estação
"Raiz da Serra", aos vinte dois anos de idade, meu pai recebeu a grande
notícia de que fora escalado para habitar a recém inaugurada Vila
dos ingleses, a cidade modelo do Alto da Serra como viria a ser conhecida, "morar
lá era o sonho de todo ferroviário que trabalhava na serra",
dizia todo orgulhoso meu saudoso e velho pai.
Desde muito cedo aprendi a linguagem dos trilhos, respirei bem cedo a fuligem
dos vapores; bitola era a distância de um trilho a outro, a bitola normal
era conhecida como bitola internacional de 1, 435 metro, mas havia outras medidas
que vão de 75 cm a mais de 1,60 metros. Locomotivas são as máquinas
motrizes e sua finalidade é rebocar vagões de carga e de passageiros
(os chamados carros); a palavra locomotiva significa aquela que se move de lugar.
Sapatas são as bases de aço feitas para conter as locomotivas
enquanto paradas. Lastro era peso; pedra britada era o cascalho que revestia
os trilhos e protegia o terreno do desgaste provocado pela chuva; dormentes,
de madeiras e às vezes de ferro, serviam para apoiar sobre o leito de
pedras britadas a 40 ou 50 centímetros de distância um do outro
e destinam-se a manter fixos os trilhos e suportar a princípio uma parte
do peso das serrabreques, que em seguida seriam substituídas pelas modernas
locobreques. Muitas eram as palavras que estava acostumado a ouvir, aprendi
a amar os vapores, carros e vagões e acredito que ainda hoje eles são
parte de minha vida. Certo dia meu pai sentado na velha estação
do Alto da Serra, disse-me recordando o tempo vivido em Raiz da Serra: "de
noite era lindo, lá do alto daquela linda estação, como
um Sol avermelhado era possível ver furar a penumbra da escuridão
a encantadora serrabreque, chegando com sua carga de ouro verde que seguiria
até o Porto de Santos.
Recordo-me de uma manhã em 1908 em que meu pai afoito, começou
a ajuntar nossas coisas, dizendo à mamãe que iríamos nos
mudar para a Vila de São Bernardo, para uma nova casa da Companhia SPR,
nos arredores da ferrovia. Nesta época todas as estações
eram minúsculas nada comparável com o que o leitor tem em mente,
as vilas estavam em plena gestação, o progresso mobilizava todo
país. Naquela manhã onde a serração tomava conta
de tudo, meu querido pai com os olhos cobertos de neblina se despedia de nossa
verde e velha casa, era muita emoção, em seus braços sobre
os trilhos de suas veias era possível ver como difícil fora ajustar
cada bitola, alocar cada dormente, forjar cada trilho, fazer girar tão
rápido o viradouro e ver o progresso paulista avivar aquela encantadora
serra que há um ano todos acostumavam-se a chamar de Paranapiacaba, do
mesmo modo que os índios desta antiga vila, a designavam Paranapiacaba
o local de onde se avistava o mar. Os fiscais da Inglesa davam inúmeras
bonificações ao morador que mais bem cuidasse de suas casas; a
nossa rendera muitas benesses, pois, meu velho pai zeloso, se enchia de gosto
em decorá-la e deixá-la sempre bonita. Embora estreita e de madeira,
nestes doze anos, nossa casa era muito aconchegante e contrastava com a constante
serração que encobria o belo relógio da estação.
Às quatro e meia da manhã ouvia-se o sinal para que todos os ferroviários
iniciassem o turno, afinal os trens não podiam atrasar, já dizia
o engenheiro chefe. Recordo-me ainda que nas manhãs ensolaradas gostava
de ficar na estreita portinhola de minha casa a admirar por horas as belas locomotivas
resfolegarem, do alto das colinas era possível avistar o temido castelinho
do sisudo engenheiro chefe, sir James Brunlees, sempre a fiscalizar a movimentação
dos operários. A Vila de Paranapiacaba ficaria para sempre a sete chaves
guardada em minhas lembranças. Naquela mesma tarde, enquanto minha mãe
terminava de organizar as coisas para nossa mudança, pude ouvir a voz
do engenheiro lord Fox a interjecionar que meu pai deveria partir no despontar
da manhã, foi então que senti um forte aperto em meu coração,
deixar a Vila dos Ingleses representava nunca mais ver os belos e oblativos
olhos azuis de July a encantadora filha de sir James, o engenheiro chefe, gerente
responsável pelo tráfego de trens na subida e descida da serra
do mar, o pátio de manobras, as oficinas e os funcionários residentes
na vila, além de é claro o fascinante depósito de locomotivas
no pátio da ferrovia. Não pude conter-me, apesar de petiz, corri
cheio de medo e duma tristeza que me vencia, fui me esconder próximo
aos enormes aquedutos que eram responsáveis pela distribuição
de água a toda vila, o lugar era tranquilo longe dos operários
das linhas; fora ali que dias atrás encontrei July pela primeira vez,
com o olhar choroso ela me dizia que havia perdido sua boneca "Molly",
seus olhos me encantaram desde o primeiro momento que os vi, meio desajeitado
perguntei seu nome, o que me disse quase sem voz "July", quer que
te ajude a procurá-la? Passamos horas a refazer o caminho que ela tinha
percorrido e foi então que a encontramos próximo a Capela Bom
Jesus do Alto da Serra, Moly nos aguardava toda devota diante do brilho que
flamava de ambos os olhos. Passado alguns minutos era eu quem estava choroso,
não queria partir sem revê-la, ela era encantadoramente rosada,
de repente com o soçobrar da locomotiva que provavelmente se aquecia
na estação Alto da Serra, pude ver a bela July seguir em minha
direção, foi então que pude sentir que meus olhos sorriam
no compasso de meu pequenino coração, ela aproximou-se de mim
que naquele instante encontrava-se encolhido abraçando as pernas debaixo
do aqueduto, agachou-se ao meu lado, tão pequena, tão linda e
perguntou-me "estás triste, se quiseres faço-te companhia!".
Mas antes que qualquer um de nós pudesse atinar, ouvimos um estridente
apito que não vinha de nenhum locobreque que fosse conhecido, esse com
certeza era o apito severo do sisudo sir James a nos observar do alto de sua
colina em seu misterioso "castelinho". Assustado pedi a ela que fosse
ao encontro de seu pai que a esta altura de tão bravo, já devia
ter pedido que o velho Adriani Polasi viesse ao encontro de July, ele não
gostava de ver sua filha de tê, rê, rê com os operários
da vila. Adriani Polasi, imigrante italiano fora um dos que primeiro ingressaram
na Inglesa, entretanto anos antes da vila se formar ele sofrera um grave acidente
que esmigalhou suas mãos ao desatrelar os perigosos engates manuais de
uma antiga serrabreque, somente anos depois com o advento do engate automático
inventado pelo americano Eli Janney, que viria acabar de uma vez com as mutilações
ocasionadas aos funcionários encarregados desta função.
Dito e feito a alguns metros daqui pude ver o velho Polasi escoltar July até
o alto da colina, mesmo assim, restava em mim um ar de felicidade, pois pude
revê-la uma outra vez ao menos.
Refeito do susto, resolvi dar uma última volta pela vila, dei uma passada
no Empório de Secos e Molhados construído ali desde 1899 e administrado
pelo seu António Padilha, imigrante português que há anos
trabalha na vila; contei a ele que estávamos de mudança e ele
me disse com um ar melancólico que já estava sabendo: "Já
estou, a saber, miúdo!" disse que sentiria muita falta de todos,
mas principalmente de meu pai, camisa 10 do time da Companhia S.P.R., "
seu pai vai fazer muita falta, aqueles pés de ferro da Companhia de Gás
vão pensar que são rei agora"; em seguida pediu-me que escolhesse
um doce, pedido a qual não titubeei, escolhi logo os fios de ovos que
adorava, em seguida deu-me um afetuoso abraço e segui pela rua. Foi então
que cheguei até a rua da estação, fui ter o gostinho de
observar pela última vez, pelo menos deste ponto, as locomotivas. Na
plataforma havia uma locomotiva estacionada, mas o contramestre dizia que era
preciso rebocá-la. Seu Alcides trabalhava com cerca de 600 operários
e era responsável por 64 máquinas a vapor, que tinham por corriqueiro
quebrar quase sempre por excesso de carga. Os acidentes devido ao rompimento
dos cabos não eram raros, mas em quase todos os casos era fatal, os mecânicos
trabalhavam noite adentro para que os trens pudessem sempre partir no horário.
Seu Alcides tinha porte forte e diziam os outros operários que era nosso
estivador na ferrovia; estava sempre atento aos cilindros, pistões, bielas,
truques e tudo mais que apresentasse algum problema, conhecia as locomotivas
só pelos ruídos, estava sempre a questionar os rangidos e estrondos
de qualquer ferragem. Seu Alcides sempre me dizia, "garoto no futuro haverão
máquinas como estas que serão capazes de voar, ouça bem
o que estou dizendo, voar meu garoto, voar!" ele sabia o que dizia.
A locomotiva a vapor é composta do veículo motor, sobre o qual
se instala a caldeira, acoplado a um carro reserva, conhecido como tender que
transporta o combustível e água para sua alimentação.
Nessa locomotivas, o combustível é o carvão Cardiff que
é queimado na fornalha, onde aquece a água contida nos tubos de
uma caldeira, transformando-a em vapor. Para mim o trem era comparado a um rei
em sua magnitude, afinal eu não tinha ideia do que era um navio,
que todos diziam ser capaz de andar por cima do mar.
A estação Alto da Serra fora minha primeira grande paixão,
nem mesmo as lembranças de meu pai, sobre a estação Raiz
da Serra ou as fotografias da estação Cubatão eram capazes
de me despertar tanto encanto; sabia de cor os horários de cada trem,
inclusive os de carga, que eram sempre os mais numerosos, conhecia todos os
maquinistas e por muito tempo via meu pai como um herói, ele não
era maquinista, nem tão pouco o foguista, mas vez ou outra manobrava
os vapores ao depósito de locomotivas. Ele deixava que eu o acompanhasse,
dizia que era bom que eu fosse me acostumando, pois um dia eu seria um maquinista.
Subia o alto morro onde avistávamos o pau da missa ainda frondoso, passava
voando pelo pátio ferroviário e ia puxar os freios já na
reta que dava no depósito onde o engenheiro chefe o aguardava para novas
instruções. Observar a movimentação na estação
fazia-me viajar entre as lembranças e me enchia de tristeza e saudade.
Dia e noite era possível ouvir as turmas de operários nos trilhos,
que cavavam a terra e batiam em dormentes todos os dias. Era comum a presença
de técnicos ingleses que eram responsáveis pelas instruções
dos técnicos brasileiros já estava acostumando com o sotaque falado
na ferrovia. Por aqui se espalhavam muitos funcionários, os essenciais
eram os maquinistas, guardatrens, foguistas, ajustadores, eletricistas e o pessoal
da estação, ainda sim os mais importantes mesmo eram os maquinistas
e os foguistas que davam vida as locomotivas. A estação Alto da
Serra foi construída em 1867 ao estilo dos ingleses, todo material utilizado
veio da Inglaterra, as pontes, os arcos, os tijolos tudo tinha um forte ar de
riqueza, atualmente meu pai ajudou a construir a nova estação,
um pouco diferente e bem maior que a anterior, feita para ser o pátio
de operação do sistema operacional de cabos, nela foi mais tarde
erguida a vila dos Ingleses, recentemente rebatizada de Paranapiacaba. Especialmente
para abrigar os bravos guerreiros funcionários da São Paulo Railway
Company. A estação é o ponto de reunião para todos
habitantes da vila, cujo maior divertimento é esperar o trem, não
só por curiosidade de ver os viajantes, mas também para saber
as novidades. Sempre que eu revia o trem chegar ou partir tinha a sensação
de viajar junto a ele.
Sempre curti muito gosto em ficar escondido no pátio da ferrovia observando
as marias-fumaças, quase sempre tomava um baita susto com seu estrondoso
apito, o trem a vapor aparentava um bravo dragão soltando fagulhas e
deslizando suavemente pelos trilhos. As marias-fumaças eram máquinas
negras, imensas, com um brilho oleoso e repleto de chispas douradas que refletiam
de seus metáis. Majestosa e lenta, a maria fumaça se aproximava
da estação obedecendo ao ritual dos sinais feitos pelo encarregado
da estação, com suas bandeiras durante o dia e lanternas durante
a noite e às vezes por conta da serração. Resfolegando,
expelindo vapor, fagulhas e cinzas por sua arredondada chaminé estacionava
lentamente na plataforma, era sempre muito prazeroso observá-la imponente
e cheia de novidades vindas de todas as partes, havia ainda os carros especiais
que seguiam diretamente a Hospedaria do Imigrante e nessas composições
os sotaques eram para mim sempre um bom motivo de risos... (Bom giorno; guten
morgen, buenos dias, godmorgen, huomenta, bonjour, goedemorgen, jó napot,
good morning, dzie? dobry, dobre ráno etc...) recordo-me que tanto eu
quanto as outras crianças adorávamos observar as rodas enfileiradas,
a numeração e o ano de fabricação, sempre em metal
muito bem polido por seus maquinistas. Era comum encontrar em todas as estações
uma caixa d'água e um depósito de carvão para que as locomotivas
fossem abastecidas e preparadas para suas viagens. Sentia-me a criança
mais feliz de todo o mundo.
Deitava a tarde e já chegava a hora de dar as caras em casa, a esta
altura minha mãe atônita já estava as loucas a me procurar
com os olhos vila abaixo. Lembro-me que jantávamos entre às cinco
e meia ou seis horas, pois minha mãe jamais colocava a mesa sem que meu
pai estivesse presente, meu pai acordava muito cedo e às vezes o trabalho
na ferrovia estendia-se até mais tarde, o que fazia minha mãe
estar sempre atenta com a sua alimentação; vejo como se lá
ainda estivesse, seu arroz branquinho, aquecido na panela de cobre e o feijão
borbulhando na cumbuca de barro, era sempre muito saborosa a comida de minha
mãezinha. Ao chegar em casa minha mãe chamou-me a atenção
pela demora, "ora menino você não sabe que seu pai tem hora
para jantar", apenas abaixei os olhos e corri para lavar as mãos...
meu pai estava na sala, ele havia levado o seu Antônio da Light, ele chegou
aqui, no início de formação da vila e era responsável
por acender os lampiões a gás de toda a vila; seu Antônio
era uma pessoa divertida, mas estava sempre a almoçar na casa de alguém,
o salário da Light era baixo, mau dava para pagar o quarto que a Inglesa
o cedia. Depois do jantar era comum que meu pai voltasse ao trabalho na companhia,
mas como o comboio que nos levaria a Vila de São Bernardo partiria ao
nascer do Sol, lord Fox deu o resto da noite para seu descanso, ele então
se despediu de vez de seu compadre Antônio e minha mãe arrumou
toda a louça juntando-a ao resto da casa que a esta altura já
se encontrava toda embalada, em seguida tirou toda minha roupa e me levou lá
para varanda para banhar-me em água bem fria, só então
nos preparamos todos para dormir.
Aquela noite quase não dormi, um estado de ansiedade me acometia e
a madrugada custou a passar... quatro e meia da manhã já era possível
ouvir os passos de minha mãe na cozinha a passar o café, meu pai
a esta altura já devia estar a banhar-se, daqui a pouco o trem chegaria
e deveríamos estar todos lá no alto da estação.
Ao despedirmos pela última vez de nossa casa pude observar abaixo parte
da vila e o casario brilhando entre os inumeráveis bicos de gás,
nossa vila era realmente incrível, o Sol abria o dia muito alegre naquela
manhã. Atravessamos a vila até chegarmos à estação
do Alto da Serra e para minha surpresa estava a passar uma enorme locomotiva
a arrastar os carros das Indústrias Reunidas Francesco Matarazzo, carregados
com muitos cereais vindos do Porto de Santos, estes carros não costumavam
fazer parada por aqui, pois diziam que o senhor Francesco não podia esperar.
Estávamos levando algumas poucas bolsas e minha mãe carregava
uma pequena valise de mão com seus pertences, todo o resto seria enviado
em outra locomotiva que lord Fox havia providenciado. Não demorou muito
e já era possível escutar o apito e o resfolegar forte da encantadora
locomotiva que nos levaria a tão ansiada vila de São Bernardo.
Mas para minha surpresa Sir James viera despedir-se de minha família
e trouxera minha estimada July, meu coração encheu-se de alegria
ao revela tímida ao lado de seu carrancudo pai. Após a locomotiva
estacionar, pude perceber que quem seria responsável por nossa viagem
era o sempre atento senhor Olavo um senhor de meia idade que já começava
a desfiar os primeiros cabelos brancos, estava sempre preocupado com o bem estar
da composição, bem como dos passageiros, sempre atento para que
não houvesse solavancos. Era firme na subida, sabia reduzir a marcha
ou acelerá-la, trouxera a máquina lá do Porto de Santos,
cuidava como se fosse sua, podíamos perceber um grande número
de imigrantes que seguiriam a hospedaria. Seu Olavo tinha orgulho de seu uniforme,
quepe azul com as iniciais da Inglesa em dourado um terno também azul
com a camisa branca. A composição mantinha-se parada aguardando
seu horário de partida, o sinal, bandeira verde e o apito. Era possível
perceber alguns vendedores de bilhetes a nos prosseguir até o trem, véus
brancos, chapéus, muitas valises no chão e centenas de bolsa espalhadas,
a nossa pequena estação se espremia, as locomotivas possuíam
muitos vagões diferenciados de acordo com o preço, oferecendo
acomodações de primeira, segunda e até terceiras classes.
Nós seguiríamos na segunda classe, a viagem poderia chegar à
uma hora não se sabia ao certo podia haver qualquer ocorrido no trajeto
que alterasse nossa viagem. Há já ia me esquecendo, o foguista
seria o seu Adriano Justo, eu o achava muito engraçado estava sempre
sujo de carvão, mas era um bom sujeito muito amigo de meu pai, carregou
à inglesa nos braços. Ao ouvirmos o primeiro apito da locomotiva
a avisar que estávamos perto de seguir viagem, corremos todos a nos acomodar
em nossos lugares, neste momento entrou o picador de bilhetes, com boné
e apito no bolso, para ele apresentamos nossas passagens a garantia de nossa
viagem. Minha mãe havia trazido umas almofadas que fora muito útil
na acomodação dos bancos, diante das resfolegadas fortes da locomotiva,
corri a janela para vê pela última vez minha querida vila, mas
pude ver novamente July, agora sozinha a me observar do portão com os
olhos tristes os mesmos que eu abraçava da janela do escuro vapor. O
vapor começou a sair lentamente até que alcançou grande
velocidade a deixar pra trás boa parte de minha vida. Passamos diante
de lindas vilas cortando subúrbios das cidadezinhas que se estendiam
por muitas vias, meus pais correram para os vagões dormitórios
a fim de recuperar o sono perdido eu também os segui, mais preferi ficar
junto às persianas de madeira da cabinela, levantei-as e depois a janela
de vidro que continham as siglas da "SPR" e respirei o ar fresquinho
do comecinho da manhã, misturando-se com a fuligem a fumaça acinzentada,
pela janela do vapor lento e melancolicamente choroso pela serra. Também
era possível encontra pelo caminho muitos operários fazendo os
reparos da via permanente que eram acompanhados pela direção da
estrada, isso fazia com que a composição reduzisse a velocidade
e o maquinista pudesse até cumprimentá-los, nesse momento era
comum sentir o forte cheiro dos dormentes... passados alguns minutos chegamos
à estação "Rio Grande" neste instante pude observar
pela primeira vez um pequena estação feita de pau a pique e plataforma
não ladrilhada, o local era deserto, a estação intermediária
para alimentação de águas das locomotivas e cruzamento
de trens. Após abastecer a locomotiva, carregá-la com Cardiff,
seguimos em nossa viagem. A alguns metros vimos passar os altos de linhas utilizados
pelos engenheiros que seguia em sentido contrário para o Alto da Serra.
O vapor seguia cada vez mais depressa a fazer as coisas caminharem bem rapidinho
eu era todo encanto, meus pais nem se mexiam, não haviam percebido que
a composição já havia até parado... não demorou
mais que alguns minutos para chegarmos a Ribeirão Pires onde uma parte
dos Italianos desembarcaram, pois naquele vale, se achavam umas quarenta casas
da colônia italiana, a estação é muito ampla e bonita
com forte características de uma verdadeira inglesa, permanecemos parados
por mais alguns minutos, pois outra locomotiva passava levando carvão
para estação de "Raiz da Serra" podíamos ouvir
os italianos se despedirem, "boun viaggio, arriverderci, scrivame"era
muito bonito como eles eram solidários uns com os outros. Novo apito,
nova partida, as florestas a beira da linha transformam-se em manchas listras
verdes vermelhas ou brancas, tudo se transforma em listras... os campanários
e as árvores dançam e se misturam desvairadamente no horizonte
e tudo ficava com cara de poesia. Passamos rapidamente quase sem parar em uma
pequena estação chamada Guapituba onde se encontrava um posto
telegráfico recém inaugurado, era o início das comunicações
em São Paulo. Agora faltava muito pouco, devíamos ainda parar
na estação de Pilar construída toda em madeira e ficava
muito próxima a nosso destino a Vila de são Bernardo. Ao passarmos
pela estação de Pilar pude perceber que havia ali desengatado
dois vagões um de ambulância e outro um vagão negro onde
costumava-se fazer o velório normalmente dos operários que morriam
em acidentes pelas vias era o conhecido vão funerário, mas para
nosso alívio só estavam ali de repouso para ser recolhidos a algum
pátio de máquinas. Ao sairmos da estação, acordei
minha mãe para informá-la que já estávamos próximos
ela ainda pediu-me que deixasse meu pai dormir um pouco mais, levantou-se e
fora ao toalete se refazer da viagem... e eu continuei ali encolhido ao canto
da janela até chegarmos à estação São Bernardo.
Era pouco mais das sete da manhã quando o vapor encostou-se à
estação; somente em 1910 é que fora constituída
neste local a Vila de Santo André, começava ali uma nova vida
à nossa família, naquele dia desembarcamos numa vila quase deserta
a não ser pelos prédios da Rhodiaceta, nome das fábricas
de tecidos da Rhodia. Nossa nova casa era muito próxima a pequena estação
de São Bernardo, que possuía aquele mesmo formato das estações
pioneiras da SPR, com porteira de madeira para os carros e a passarela metálica
importada da Inglaterra. Desde primeiro momento aprendi a gostar de atravessar
a linha por aquela passarela! O piso era de cimento queimado, mas a estrutura
era toda metálica, com muitos elementos decorativos, pintadas de zarcão
escuro. No topo existia um arco com um lampião a gás como os existentes
lá na vila, que iluminava mais o menos o caminho, São Bernardo
garoava e nublava muito; a vida na vila de Santo André não foi
a mesma do Alto da Serra, neste local meus dias se desenrolaram até que
meu pai viesse a falecer a um ano atrás, cerca de cinco anos depois de
aportarmos na vila, minha mãe conseguiu junto a o engenheiro Sir James
uma pensão que nos ajudou durante muito tempo. Naquele momento em que
dava início o ano de 1914, foi que percebi que seria fundamental que
eu preservasse a memória de meu finado pai e devido ao imenso amor que
curti pelas locomotivas me tornei um maquinista, mas não levo mais as
encantadoras locomotivas e sim o novo trem com tração a diesel-elétrica,
o chamados Cometas, pouco a pouco são substituídas as encantadoras
locomotivas que aprendia a amar juntamente com meu pai, a July viajou para terra
de seus país e por lá se casou eu nunca mais tive noticias, mas
sir James ainda esteve por aqui até sua aposentadoria; por estas linhas
eu vi minha vida resfolegar numa vontade louca de vencer.
(30/11/2008 a 15/02/2009)