A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Sem vestígios

(Dorcila Garcia)

Clarice depositou as malas no chão e ficou parada, olhando o casarão à sua frente. A casa parecia pertencer ao século passado, como se tivesse saído de uma tela histórica. Seus olhos, contemplativos, começaram a percorrer lentamente a paisagem.

As janelas do casarão mostravam vitrais em arco, com frisos tintos de azul. Sugeriam silhuetas de donzelas pálidas, à espera de amores perdidos. Clarice quase chegou a entrever-lhes os longos cachos enfeitados de fita, tal a nitidez de seus pensamentos.

Voltando-se para a direita, enxergou um flamboyant de belo porte, copa cerrada, raízes fincadas no chão, feito garras de águia segurando a presa. Os galhos da árvore exibiam sua robustez como se fosse um concurso de músculos. Flores vermelhas espalhavam-se-lhe por toda a copa, dando-lhe matizes ora rubros, ora acobreados, qual pincel multicor brincando livre em aquarela. Caídas no chão, inúmeras flores formavam um tapete carmim, parecendo preparar-se para a chegada de algum membro da realeza.

Os olhos da moça, pousando de relance sobre a frente do casarão, deslizaram para a esquerda, onde divisava-se uma trilha estreita por entre nichos de plantas em flor. O misterioso caminho parecia levar a algum lugar secreto, mas assim, à distância, ficava difícil distinguir. Além disso, galhos encharcados de flores amarelas derramavam-se sobre a entrada do suposto esconderijo, cobrindo-o quase que por completo.

O olhar de Clarice, flanando, fixou-se novamente nas janelas da majestosa casa. Cortinas brancas, leves e transparentes balouçavam ao vento, prenunciando a chegada das chuvas de verão. Um leve tremor percorreu-lhe o corpo, parecendo despertá-la de seus devaneios. Respirou fundo, pensativa. Balançou de leve a cabeça, esforçando-se para voltar à realidade.

Afinal, ali estava. Nesse lugar, esperava encontrar a paz. Deixara toda uma vida para trás quando aceitara aquele trabalho de governanta, elegantemente designado como "preceptora" no contrato de trabalho. Mas não hesitara. Agora, sentia-se perdida na imensidão daquela fazenda, parada em frente de um casarão que recendia a mistério. Isso lhe causou um arrepio quase imperceptível, mas não estava arrependida. Precisava desse isolamento. Além disso, não dava mais para recuar, falou consigo mesma, esperando que esse pensamento não a deixasse retroceder.
Clarice segurou fortemente as malas e começou a caminhar, com passos firmes, em direção à casa. Ali, pensou convicta, iria conseguir libertar-se daquele amor impossível que deixara para trás e que tanto a fizera sofrer. Haveria de ir saindo lentamente do seu coração, como um vulto sinistro, que desaparece na bruma da noite sem deixar vestígios.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br