A Garganta da Serpente
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Esquina do medo

(Dorcila Garcia)

A casa ficava em uma das esquinas da praça principal. Nós, crianças, só passávamos pela calçada do outro lado da rua. Quando passávamos em frente da outrora luxuosa mansão, jamais nos esquecíamos de persignar-nos. Pelo sim, pelo não, estaríamos protegidos. Se, naquele tempo, em nossa ingenuidade, tivéssemos conhecimento das fantasiosas e obscuras criaturas do mal como os vampiros, com certeza carregaríamos réstias de alho, estacas e cruzes. Mas, no fundo, a casa era uma distração para a criançada.

Contava-se que o homem que vivera naquela antiga mansão vendera a alma ao diabo para ficar rico. E que o Coronel Zé Pedro, logo depois de haver enriquecido, pouco a pouco foi ficando taciturno, misterioso. A família do coronel era composta por sua mulher, D. Eulália, seus dois filhos, Ricardo e Rubens e sua filha, linda menina, Ana Rita.

D. Eulália, diziam, enlouquecera de repente. O Coronel Zé Pedro não a deixava sair de casa, para não dar margem a comentários e a mantinha prisioneira no quarto, que ficava no andar mais alto da casa. Contavam os mais velhos que, quem passasse em frente da mansão depois da meia-noite, via o vulto de D.Eulália na janela, penteando os longos cabelos castanhos e cantando uma canção triste, de partir o coração.

Um noite, seu canto cessou. Encontraram-na no dia seguinte caída no pátio dos fundos da casa, morta, ainda com a escova de cabelos na mão. O marido disse que ela se suicidara, atirando-se lá de cima. Mas a imaginação do povo preferia acreditar que fôra ele quem a jogara janela abaixo ou o próprio Anjo das Trevas, vindo buscar parte do lhe fôra prometido.

Depois da morte da mulher, Coronel Zé Pedro colocou os filhos e a filha no colégio interno e ficou sozinho na casa. Uma empregada vinha diariamente preparar-lhe as refeições e limpar a casa. Fazia o serviço bem rapidinho, enquanto Coronel Zé Pedro estava na fazenda. Deixa-lhe a comida pronta e, às três horas da tarde, ou até antes, Zenaide, que não era boba, nem nada, saía ventando da casa, só para não cruzar com o patrão, que chegava por volta desse horário.

Os anos se passaram e Zé Pedro entregava-se cada vez mais à solidão. Vivia atormentado. Comentava-se que não dormia à noite e uns gritos sub-humanos ecoavam pela cidade nas noites de sexta-feira, que pareciam vir da casa do coronel.

Os filhos, que Zé Pedro pouco visitara no colégio, ficaram moços e se formaram. Ricardo era advogado. Ficou na capital e um dia casou-se com a filha de um banqueiro. Nunca mais veio visitar o pai. Rubens, mais emotivo, tentou entender-se com o pai várias vezes, mas foi em vão. Zé Pedro havia-se encerrado em seu próprio mundo de sombras e mal notava a presença do filho.

Rubens formara-se em agronomia e pensava em cuidar da fazenda do pai, mas Zé Pedro não permitiu. Disse que tocaria a fazenda sozinho, do jeito dele, como sempre fizera; que não queria ninguém por perto dizendo-lhe o que devia fazer, só porque havia estudado.

Rubens, então, recebeu uma proposta para trabalhar em uma fazenda no Paraná e, assim, também foi embora. Um ano mais tarde, casou-se por lá com uma linda jovem fazendeira e constituiu família. Antes de casar-se, trouxe a noiva, Maria Inês, para o pai conhecer. Zé Pedro sequer levantou-se da cadeira para cumprimentar a moça. Parecia alienado.

E Ana Rita, o que acontecera com ela? Era a única que o pai, durante algum tempo, visitara duas vezes ao ano. Zé Pedro olhava para a filha e tentava esconder as lágrimas que lhe vinham aos olhos, porque ela estava se tornando o retrato vivo da mãe. Ana Rita sentia pena do pai, mas fingia que não notava nada, para não constrangê-lo. Um dia, o pai parou de visitá-la. A moça nunca visitou a mansão. Formou-se professora, tornou-se freira e continuou vivendo no colégio.

Em uma noite de agosto, numa sexta-feira, conta-se que a cidade toda ouvira gritos horríveis ecoando por todos os cantos. Ninguém ousou sair de casa. No dia seguinte, os primeiros que passaram em frente à mansão de Zé Pedro ficaram pasmos. A casa parecia haver-se queimado apenas por dentro, é o que dava para se ver da rua. Chamaram a polícia, que entrou na casa e encontrou Zé Pedro caído ao lado de sua poltrona, olhos abertos cheios de pavor. Estava morto. A causa mortis foi dada como infarto fulminante, mas o povo dizia que fôra o tinhoso que viera buscar a alma de Zé Pedro. Alguns lugares dentro da casa haviam sido tomados pelo fogo, mas a parte externa estava intacta, nem havia sinais de que iria desabar.

No funeral, os filhos tinham expressões indecifráveis no rosto. Só Ana Rita chorou baixinho e, com o rosário de freira na mão, fazia-lhe preces. Nenhum dos filhos se interessou em vender a casa, que ficou ali, tornando-se uma casa velha, em ruínas.

Depois da morte de Zé Pedro, nunca mais ninguém ouviu os gritos estranhos nas noites de sexta-feira. Mas a triste história continuou atravessando gerações, cada vez mais cheia de ingredientes macabros. Nunca se soube o que era, de fato, verdade e o que era lenda.

Por essas e mais aquelas, passávamos em frente da casa cheios de curiosidade e imaginação, mas ninguém chegava nem perto do portão. Para não dar na vista que estávamos com medo, primeiro apertávamos o passo e, de repente, disparávamos a correr mais céleres do que competidores de olimpíada.

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