Sabino, com um fiapo de manga entre os dentes, mal conseguia articular um fonema
ao telefone. Tímido, quem sabe?... Gago, talvez.
- Painho?... - voz em surdina, com gancho -.
- Ahã!...
Deselegante e desligado, Sabino - com as unhas por fazer - tentava a todo custo
pescar, com seus dedos, aquele fiapo de manga encravado entre os dentes, sem
ligar a mínima para a voz ao molho pardo vinda do outro lado.
O telefone - pensa com ar de filósofo de araque - é uma linha
direta com o diabo: mal, há séculos! Quando mais moço,
preferia gastar mais gasolina - antes mesmo da crise do petróleo - que
jogar fora conversa fiada, confidenciava até os detalhes mais inconfessáveis
da sua última relação aos amigos menos íntimos,
no cara a cara. Adorava piscar os olhos, sempre primeiro, e perder na brincadeira
do "sério". Amigos jamais deveriam se falar ao telefone! No
olho no olho há sempre colos paus-pra-toda-obra, ombros justos e tortos,
palavras curtas e exatas. Bons tempos aqueles que não existiam lenços
descartáveis. Foi a popularização da fala à distancia
que fez crescer a lágrima falsa. As lágrimas da Sarah Bernhardt
foram as mais marcantes. Atriz, só a Sarah!
- Painho?... - voz de ambrosia -
- Ahã!...
Desvira o paliteiro. Diabos! É trágico - para não dizer
ridículo - ver Sabino com o fone do telefone equilibrado entre seu ombro
e ouvido: pescoço torcido. Do paliteiro, caem palitos. Por que será
que os buraquinhos dos paliteiros ficaram tão atarracadinhos? Um fio
da linha se descirze da toalha de mesa. Bordado. Cortado num só puxão,
tenta com ele tirar o fiapo de manga no vão dos dentes. Em vão!
Concentradíssimo, não escuta ninguém mais do outro lado
da linha. Nem se Dra. Fátima - a sua dentista - baixasse mediunicamente
naquela sala, aquele fiapo de manga, chatíssimo, desencarrapataria do
vão dos seus dentes. Um dia, a própria Dra Fátima disse
- a corrijam se ela errou - que os fios dentais foram inventados uma década
após o uso dos lenços descartáveis.
- Sou eu, a Sara. A sua Sarinha! - Silvinha também tem voz de ambrosia
-
- Ahã!...
Surdez maldita! O telefone é um completo idiota, idiotíssimo.
Notícias más vêm sempre à galope: a do velório
daquela pessoa mais querida, a lembrança das contas a pagar ainda pendentes,
o batizado do anão do circo, o fora bem dado por aquela namoradinha que
tanto tempo relutou a ir apulso - sozinha - até Vitória da Conquista.
Amigos jamais deveriam se falar ao telefone! Se fosse inventado no Brasil, com
certeza absoluta, diriam que é coisa de baiano. No entanto, mal sabe
o Brasil, que lendas e histórias se misturam, assim como a Fonte da Água
Brusca convive com a Ladeira da Preguiça.
- Sua Sarinha de Pernambuco. Lembras, painho? - voz de sorvete de graviola
-
- Ahã!....
Intimidade demais. Ousadia mesmo! Beleza de creuza! A Silvinha também
tem a voz de sorvete de graviola e de doce de ambrosia. Sara ou Silvinha? Aos
poucos, aquele fiapo de manga afrouxa dos dentes. Sabino desensurdece. Atenta:
"Menina danada, com qual rosto vês a minha cara?". Por essas
e outras mais facilidades é que um pouco menos da metade dos baianos
continuam solteiros - solteiríssimos. Este fiapo de manga deve ser de
manga Itamaracá.
- Olinda, painho! Não te lembras mais? - voz de flor de maracujá
-
- Ahã!...
Silvinha não tem hálito de maracujá. Sara, talvez, sim.
O fiapo, enfim enfim, gangorra entre os dentes. Silvia ou Sara? Parto de fiapo!
Como se lembrar quem é quem, se aquele fiapo, travado, o impede de ouvir
e pensar. Silvinha, com certeza absoluta, tem hálito de ambrosia.
- Engravidei de ti num Carnaval. - voz de tamarindo -
- O quê?!!
Sara. Bingo! Silvia sabe que Sabino detesta carnaval. E, a cada um que se aproxima,
se refugia em Caixa-Prego, município de Vera Cruz, Ilha de Itaparica:
terra do João Ubaldo Ribeiro. Vivas aos mitomaníacos e a todo
o resto deste povo bem brasileiro!
- Chamar-se-á Ubaldo. Homenagem ao avô. Que achas? - tamarindo
pêco -
- O quê?!!
Afobado, Sabino cala o telefone. Fim do fiapo entre os dentes. Nem a Sara nem
a Silvia. Agora sim, ouve maravilhosamente. As relações diplomáticas
entre Olinda e Salvador serão necessárias. Continua a achar que
o telefone é a linha mais direta para se chegar ao diabo, assim como
agora soube que o egoísmo é um fiapo de manga entre os dentes.
(11 de novembro/2006)