A Garganta da Serpente
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Cão que morde

(Djalma Filho)

- Se passares desta porta, suicido! - ameaça Gêgê.

Vindo do gabinete, Gêgê põe uma arma - bem azeitada - sobre a têmpora direita, onde lhe vive uma enxaqueca incurável. Será que este revólver tão fora de moda ainda funciona?

- Cão que ladra, não morde. - faço pouco caso.

Deveria ser proibido, por decreto-lei, casar-se com qualquer homem que se chame Getúlio de registro. Apelidei-o, carinhosamente, de Gêgê. Mesmo assim, continua fidelíssimo ao churrasco, ao chimarrão e ao Internacional. Ai de quem deles falar mal! No entanto, posso confessar-me bem à-vontade: juntar-me à ele - certeza absoluta - fôra o meu maior pecado.

- Se passares desta porta, suicido! - repete a ameaça.

Nenhum depravado deveria poder atentar contra a própria vida. Pagar-se-ia ali - no dia a dia do dia a dia - os pecados herdados por suas próprias taras. Cão que late muito não é brabo. Suicídio? Para quê, Gêgê? Cão tarado!

- Calma genrinho! Calma Auxiliadora!

Com ares de uma empregada de luxo, Filó - minha mãe - aparece com as malas estufadas bem no meio do conflito: cheias, lotadas, prontas pra viagem.

- Cão que ladra, não morde. - repito o pouco caso.

Eu, minha mãe e meu marido, apesar de há muito no mesmo apartamento, - caríssimo - mal nos conhecíamos de fato. Ela pensava que eu fosse aquela santa, vestida do corredor à sala; eu pensava que ela fosse a mesma aposentada, aquela do quarto com banheiro privê e uma tevê de vinte e nove polegadas; Gêgê pensava que seu dinheiro tinha nos comprado: à mamãe, com muito conforto e à mim, com muita libertinagem. Capitalista mal-humorado! Aquela mesma grana que lhe enche os bolsos é a mesma que lhe esvazia as mãos de afago. Todos os quartos deveriam ser menos amplos - minúsculos até - para que, no mesmo apartamento ou casa, todos se conheçam bem mais à-vontade.

- Calma, Auxiliadora! Getúlio é boníssimo!

Boníssimo? Trata-me qual um bibelô barato! Põe e dispõe de mim qual uma boneca Safo. Se quiser fugir da cena, que fuja! Todos me conhecem do quarto de casal pra dentro: este mesmo quarto que me deixou marcas. Cedi sim - ele bem sabe - aos mais superficiais e aos mais imorais caprichos do Getúlio. Fui a mulher dos seus cabides, fui mulher de animais, fui mulher até de amigas - mulher até não poder mais -; fui mulher de tantas curras, fui mulher sem mais princípios, fui mulher seviciada - fui mulher de artifício. Não, não e não! O Leonel, não! É hora de tirar o pé da lama. A pretexto de tudo ficar em família, o Gêgê me propõe traí-lo com o próprio irmão! Leonel, meu cunhado, é respeitoso, bem casado, pai de um monte de filhos. Não, não e não. Isso não! É hora do basta ao basta!

- Se passares desta porta, suicido! - terceira ameaça.
- Cão que ladra, não morde. - meu terceiro pouco caso.

Emanuel, o porteiro, bate à porta.

- As malas!..
- Um momento. - constrangidíssima, atende mamãe.

Prontíssimas para voar! Filó, sufocada, tem a fala abafada. A manhã, quase que inteirinha, Gêgê passou trancado em seu próprio gabinete fazendo uma carta para que fosse publicada no primeiro jornal do dia seguinte; logo, bem logo após a sua morte. Nela, uma incontável e inesgotável relação de amantes. Culpar-lhe-á, fatalmente. Belíssimo gesto para entrar na morte.

- Cão que ladra não morde. - nada mais me intimida.

Triste, o meu olhar se entrecruza ao do Emanuel. Ah, esse porteiro! Fora o único homem terno que tive enquanto casada. Paixão? Disfarço. Gêgê pressente. Uma morte pode vir a qualquer momento, basta um só disparo: "Imoralismos!" Deve agora estar pensando o meu marido, ao perceber a nossa atração irrefutável de duplos olhares. Fui uma desgraçada. Desgraçadíssima! Uma esposa obrigada a manter o olhar sempre frio, sem pieguices. Amores não são penduricalhos!

- Não passes desta porta! - ameaça definitiva.

Um só pé além da porta. Capacho! Emanuel ergue as malas. Alívio. Abraço! Choro de paz e desespero. E o elevador que não chega! A cara da mãe - inútil - sem atitude, estampada na porta do apartamento ainda entreaberto pelo capacho em dobras. Preocupo-me. Beijo o porteiro até gastar-lhe os lábios: beijo profundo e farto.
Um tiro. Revólveres fora de moda ainda funcionam. Cão que ladra, vez em quando, morde. Suicídio do século, só mesmo o do Getúlio Vargas.

(09 de dezembro/2006)

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