A Garganta da Serpente
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Verdades imperfeitas

(Daiane de Gasperi)

Há os não veem seu próprio reflexo. Porém, há aqueles que se olham no espelho e cobrem-se de uma verdade moral para pisar na rua. Serem, assim, alguém diferente diante dos olhos dos outros. Pensam que não se vê a verdade atrás desta pintura falsa?

Da janela pude ver.

Bocas da esquina falam da tua verdade. Saíste de cabeça erguida sob o sol da manhã. Ontem voltaste cabisbaixo e a passos lentos, sob a escuridão da noite. A pintura já lhe escorria por entre os dedos e ficaste tão escuro quanto tua sombra.

Por detrás de cada porta, dentro de cada casa desta rua, moram verdades desconhecidas. Aprisionadas, sujas. Todo dia vagarão pelas ruas pessoas que transparecem outros sentimentos, exibem outras faces sob a luz do sol. Todo dia será assim, até que os dias se esgotem ou a pintura acabe.

Basta lhes jogar água na face para saber a verdade. Antes, é da vida somente este serviço. O cumprirá como última sentença. O tempo será o juiz. Colocará sobre a mesa, em banquete a céu aberto, o jantar da verdade. Todos sentarão à mesa nus. Será o dia da verdade, da tua verdade exposta. Serás repudiado por todos, serás uma mentira ambulante, porque não lhe esconde mais a face a tal pintura.

De senhor feudal passará a ser servo. Escutarão o estrondo da tua chegada pelo barulho das correntes em teus pés e punhos. Nas costas o fardo. Atrás de ti muitos seres nas mesmas condições. Ínfimo no meio da multidão. Cearão a verdade nua e crua, escorrerá sangue por entre os dentes. Degustarão vagarosamente cada pedaço. Isso lhe fará chorar como criança longe da mãe. As lembranças lhe remoerão a alma, gritando pedirá socorro e perdão. Todas as palavras lançadas serão certeiras em teu peito. O silêncio te emprestará imagens do passado. Pedras que jogaste em outros telhados, caem na tua cabeça como se acertassem vidraças.

A passos tétricos anjos negros fecharão um círculo à tua volta. Trôpego, cairá de joelhos. Sucumbindo diante da verdade, da tua verdade imperfeita.

Os teus olhos teimaram a deixar a lágrima de sangue escorrer. Cálida indo de encontro ao chão acompanhou o fechar das tuas pálpebras. Tua vida se foi naquele instante. O tempo se esgotou. A ceia acabou e a tua vida também. Apático, desistiu. Desenhou-se o fim trágico da tua partida.

Fechei a janela. Só o amanhã conhece os próximos.

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