Agora eu sei desse lugar, que sabe toda nossa história. Saí de
madrugada a vagar pela cidade. O sono não vinha. Uma madrugada quase
eterna. Passeio pelas mesmas ruas que passeava contigo há um tempo atrás.
Aquelas ruas tortuosas pareciam querer me engolir. Eu a via machucada e as casas
chorando tua partida.
Similares histórias poderiam ter passeado numa tarde de outono ali, mas
nenhuma igual.
Alguns prédios deixavam escapar um feixe de luz que me cegava. Dos terraços
voavam papéis, alguma historia desconhecida. Roupas caiam ainda cálidas
do calor humano. Alguém acabara um amor. Os berros faziam eco naquela
rua vazia e algumas casas acordaram com a estrondosa discussão. Eu esperava.
Alguém saíra ferido. Ferido na alma. Chorava pesadas lágrimas,
daquelas que sufocam a garganta e ficam presas, teimosas a caírem. Mas
o choro desaguou soluçado, como de uma criança que não
quer ficar longe da mãe. Chorava perdão.
Alguém descia a escada do prédio. Algumas malas caíam vertiginosamente,
peças de roupa acompanhadas de insultos. Era a abertura de uma chaga,
eu bem sabia. Parecia reviver o que passei, mas encarnada em outro ser. As lágrimas
caíam e pude ouvi-las dissipando-se ao chão. Sentada no meio fio
do lado oposto da rua, o vi sair correndo para ver se ela aparecia ainda na
sacada. Desesperado olhou para cima, colocou as mãos sobre a cabeça.
O peito dele estava secando, a sua alma quase em partida. Ela ainda gritava.
Juntou tímido toda a bagunça da rua. Olhou para a janela, pode
ver a penumbra que desenhava o corpo dela. Ela chorava, porque o amava. Ele
virou-se e saiu sem rumo, numa noite pálida, de ruas em prantos. Mais
um amor se acabou.
Ela via ele sumir sob o céu pesado, a madrugada fria. Até a sombra
engolir o seu corpo e ela não pôde mais vê-lo.
Ele ouviu um tiro.
Ela esmaeceu aliviada. Uma rosa acompanhava o cair de seu corpo, que beijou
o leito da rua que chorava a morte do amor.
Cheguei junto ao seu corpo. Fechei os olhos ainda úmidos. A vida partiu
do corpo dela.
As minhas asas se abriram em leque. Angelical, pus sua alma em meus braços
e deixei seu corpo esfriando sob a luz da Lua. Ele chorava sobre ela. Eu sentia
a dor humana. Ele chorou o erro, lamentou e suplicou ser sonho. Uma rasura abstrata
da vida.
Ele nunca entenderia os anjos. Eu entendi. Eu morri por amor quando vi que aquele
homem que chorava sobre aquele corpo foi o mesmo homem que eu amei.