Estava no chão sobre o lençol, não queria que fizessem
na cama, era o último resquício de dignidade que manteria a qualquer
preço. Fechou as pernas e se levantou, encostando-se ao leito, com o
braço esquerdo, com o outro escondia o sexo, estava de camisa branca
e com um sutiã em que se podiam ver as rendas, por causa da transparência
da blusa, cabelos presos em um coque, eram pretos e com brilho suave. Cabeça
estava baixa, ombros igualmente baixos. Parecia esperar por alguma coisa, um
acontecimento que terminaria com aquilo.
O quarto era amplo, mas simples, as paredes eram pintas de mostarda bem clara
com algum toque de amarelo limão, uma lareira branca como mármore
em que se viam alguns detalhes trabalhados em alto relevo, em cima dela um relógio
de madeira antigo e bem pesado, daqueles em que se podia ver nitidamente o pedestal
de madeira de lei, os que a vovó dava para as netas que se comportavam
bem, os ponteiros marcavam as horas de sempre. De um lado e do outro se via
pequenos jarros com flores, rosas vermelhas, ainda demonstrando o frescor da
vida. Alguns livros, bem poucos, uns três ou quatro bem grossos e com
as lombas ainda mostrando a falta de uso se encontrava no lado esquerdo. Deste
mesmo lado uma cômoda de guardar roupas, daquelas grandes, com varias
gavetas impecavelmente bem envernizada e sem as manchas de poeira jazia incólume
como se estivesse a observar o desenrolar dos acontecimentos.
A cama era grande, bem grande, daquelas que dão não só
o casal, mais os filhos que vierem, aqueles leitos em que se espera que a mulher
de a luz aos filhos dos filhos dos filhos das famílias que regem as ordens
dos astros celestes. Na cabeceira como no pé se encontrava entalhadas
flores de Lins, uma coberta vermelha com algumas manchas em branco e preto,
lençol branco, em cima dela para facilitar na hora de ir dormir. A janela,
de madeira, espaçosa e que se encontrava fechada, entretanto as frestas
revelavam que o sol ainda se encontrava alto. Cadeiras, poucas, como se estivem
sido colocadas aleatoriamente em cantos diversos, outros móveis como
que se não existisse pela forma como o lugar era grande mais com requinte
de singeleza. Um homem observava tudo isto no limiar da porta do banheiro, limpando
o seu falo com a mesma naturalidade que se enxuga o rosto depois de escovar
os dentes.
Era alto corpulento, com cabelos em demasia nos peitos e costas, cabelos pretos
e em desalinhos, barba por fazer, usava uma calça jeans azul desbotado
e já demonstrando bastante uso, diferente dos livros em cima da lareira,
colocou o membro dentro dela e fechou o zíper. Jogou a toalha em um canto
qualquer do banheiro. Saiu do limiar, adentrou no quarto. Olhou para a mulher
com um ar de desprezo. Foi em direção da janela, olhou por uma
das fretas, o sol batendo nos seus olhos pretos fizeram um jogo de cor que lembrou
o teatro de sombras, onde se via os contornos nunca o conteúdo. O reflexo
de imagens difusas que fazem o que os dedos ordenam à marionete. Fitou
novamente para a mulher, continuava no mesmo jeito.
- E aí, vai ficar com essa cara de Madalena arrependida o tempo todo?
Indagou o homem se afastando da janela.
A mulher levantou a cabeça, revelando imensos olhos verdes, e olhou
para o homem que continuava com a pose de indagação.
- O que você quer mais? - Falou. - Já não teve o que queria,
o que quer mais?
O homem coçou o saco e foi novamente para perto da janela observar por
entre as fretas como se vigiasse alguma coisa. - Você está ficando
chata mulher, já fizemos isto varias vezes! Qual o problema agora? -
Ela nada falou. - Fale qual é o problema? - Ela manteve o silêncio.
- Tchp! - Ele fez um barulho com os lábios. Manteve-se o silêncio.
- Me lembro quando você fazia uma festa sozinha, ninguém conseguia
te parar, todos ficavam olhando para você tentando saber de onde via toda
aquela energia. Era a noite toda! Carnaval se lembra? Aquele carnaval onde saímos
pela noite em blocos que nem sabíamos os nomes, ficávamos olhando
os gringos, parece que na terra deles não tem branca com bunda grande,
ficavam todos olhando para você. Que bunda você tem! Ah! Como me
lembro daquelas noites em que a gente não dormia ninguém dormia
na sua presença era foda a noite toda, a noite toda! Metíamos
sem parar, era um sonho, oh coisa boa!- A mulher era só mudez. - Fala
alguma coisa porra! Gritou o homem.
- Cala a boca merda, quer que todo mundo ouse?- Finalmente o silencio foi quebrado.
- Vai embora, já não comeu, não gozou, não fez o
que queria vai embora já falei! Estou cansada dessa conversa do passado,
já passou não quero saber mais disso. Chega! Tenho uma outra vida,
um outro homem, uma outra família.
O homem riu em triunfo.
- Quem te viu quem te vê como você era a mais fogosa das cabrochas.
Agora, nem quer saber do passado dos amigos que tanto te ajudaram. Se a sua
família,como você fala, soubesse o que você fez no passado
não te aceitaria nem um minuto. Mas, você que não é
boba veio para esta cidade do interior afastada de tudo e de todos e fisgou
um cara com dinheiro. Quando te via na cidade, fiquei imaginando o que aconteceu
para você vir parar aqui neste fim de mundo, não tive dúvida
tinha que ir atrás para saber. Descobri que tinha casado com um fazendeiro
cheio do dinheiro, pensei: vou ganhar alguma coisa com isto! Empreguei-me nesta
merda de fazenda, e comecei a te observar, tinha que ver a sua cara quando me
viu trabalhando aqui, me segurei para não ri, toda donzela, com jeito
refinado, com bons modos, toda madame, tinha que mostrar para todo mundo quem
era a dona da casa. Foi quando você me falou que as pessoas daqui não
sabem do seu passado, olha veja só, quem poderia dizer que ninguém
sabe quem foi você no passado glorioso das casas de recreação
das ruas do Rio de Janeiro! Veja só!
- Já falei, o que você quer?
- Dinheiro! Quero dinheiro o meu acabou, vai me da mais!
- Aquele que eu te dei há dois dias, já acabou!
- Você, mas do que ninguém, sabe que eu não demoro muito
com dinheiro na mão. Vai anda logo, cadê o dinheiro?
- Não tenho mais, acabou!
- Como é que é, acabou! Ele se aproximou para ver melhor o rosto
da mulher que ainda se encontrava no chão.
- Acabou! Disse com firmeza.
- Acabou merda nenhuma, quero meu dinheiro e quero agora. Aproximou-se mais.
- Não tem já disse acabou, não posso ficar te dando dinheiro
a torto e a direito, não tenho tanto quanto você pensa. Fique sabendo.
- Quero o meu dinheiro sua piranha, vagabunda, safada, quero o meu dinheiro
se não sabe o que vai acontecer. Vou falar para todo mundo quem era você,
vou falar e vou provar o que ninguém sabe por estas redondezas, o que
você fazia para viver. Vou gritar para os quatro cantos o que você
fazia e como fazia.
O homem se afastou para perto da lareira e com gestos cada vez mais amplos ia
dizendo o que ela tinha feito no passado com ele e com todos os outros que a
vida tinha colocado em seu caminho.
A mulher se levantou e foi em direção o homem que alucinadamente
continuava a falar cada vez mais alto.
- Cala a boca seu maluco, quer que todo mundo ouse? Já falei não
tem dinheiro, olhe ao seu redor, o que vê? O café e o cacau não
têm dado dinheiro há muito tempo, quando vi para cá já
não estava dando ainda mais agora com está depressão em
todo o mundo.
- Dane-se quero o meu dinheiro, ouviu quero o meu dinheiro, se não...?
O homem deu as costas para a mulher soltou um riso falou em tom de deboche o
que ela fazia com os clientes que pagavam um tanto a mais pelos trabalhos dela.
- Vou falar para todos como era o seu nome de guerra lá na zona, se lembra?
Vânia Boqueteira, Vânia boqueteira, vou falar para todo mundo. VÂNIA
BOQUETEIRA! Estava descontrolado, o homem estava totalmente descontrolado, fala
alto, gesticulava, apontava para a mulher com ameaças cada vez mais fortes
e perigosas. Os olhos dela saltaram da órbita quando notou que ele acabaria
com tudo que ela construiu casamento, família, amigos, respeito, casa,
vida.
O quarto se transformou em um carrossel, virando, rodando, movendo, transformando-se,
agitando-se, deslocando-se, uma inquietação foi se formando de
tal forma que ela tentou se manter em pé, mas a visão de sua queda
para a existência de antes, humilhações, baixezas, desprezos,
vexames, ultrajes, uma história que ela conhecia e não queria
de volta. Foi tendo um gosto estranho na boca, um vazio no coração,
falta de forças nos pés. Sua biografia passou em frente aos seus
olhos, com uma grande velocidade, como se tudo acontecesse em minutos, uma vida
em minutos!
Ravel! Maurice Ravel! Se tiver uma cena em que uma musica de fundo cairia perfeitamente
era o Bolero, mais conhecido como O Bolero de Ravel, uma mesma
melodia repetida obstinadamente variando em alguns momentos a orquestração.
Ela olhou por todo aposento, primeiro a cama foi se movendo depois as cadeiras,
a lareira, os jarros, a cômoda, a janela, as paredes, o teto, as luzes,
o relógio, o homem. Como se fossem peças independentes, mas harmoniosos
entre si eles foram se elevando do chão e ganhando as alturas. Não
era a coreografia de Nijinsky e nem mesmo a de Maurice Béjart, era a
de um homem que estava pronto a destruir tudo que ela construiu com muito cuidado,
todas as peças encaixadas, os nós feitos sobre medida para que
parecesse os mais perfeitos, uma trama feita com os dedos de uma mestra em fiar
os fios dos destinos para o seu próprio proveito. Perderia tudo, tudo,
tudo, tudo! Não! Tinha que fazer alguma coisa teve um firme propósito
em seu coração, tinha que fazer alguma coisa!
Os móveis foram descendo do estranho baile, indo cada um para o seu
lugar, como no enceramento da peça, os bailarinos foram se colocando
em cada canto do palco para o derradeiro movimento. Não era Jorge Donn
e nem Ida Rubinstein que faria o último ato, mas ela. O homem continuava
a falar, na sua cabeça parecia que tinha passado minutos, mas na verdade
foram segundos, segundos para decidir toda a sua vida para fazer alguma coisa
para ser alguma coisa além do que sempre foi. Clak!!
Bomm!! Silêncio, em todo o quarto. Sossego no banheiro. Mansidão
na cama. Paz na cadeira. Mudez na lareira. Tranquilidade na cômoda.
Silêncio sepulcral, mortal. Frio! A maçaneta é mexida quebrando
a tranquilidade do lugar, varais vezes ela se mexe para tentar dar passagem
para quem está do outro lado, mas não cede. Som de uma chave sendo
usada. Porta se abre. Um homem de meia idade, mais magro que gordo, mais baixo
do que alto, mais branco do que pardo. Entra. Olha ao seu redor. Vê a
esposa com o relógio antigo ainda na mão e um homem no chão
com uma pequena poça de sangue se formando. A mulher seminua, o homem
sem camisa, morto! Olha para ela atônico em busca de uma explicação
plausível.
Ela desaba, deixar cair o relógio, corre em direção ao
marido, agarrá-o com todas as forças, fitá-o nos olhos,
grita, fala, em desabalada corrida diz que o homem queria violentá-la,
que ameaçou contar mentiras a respeito dela, colocou a família
em risco, não teve outra saída a não ser defender a hora
e a dos familiares. Legitima defesa, foi o que o homem falou, para que se acalmasse
que não passou de legitima defesa. Mas, ela continuava a gritar e a chora
em uma representação que coraria de vergonha Marilia Pêra,
Fernanda Monte Negro e Paulo Autran.
O esposo ficou ali com a mulher entre os braços olhando para o cenário,
percebendo no chão o relógio antigo, pesado, feito de madeira
de lei, que caído como um despojo de guerra tinha nos ponteiros a marca
da verdade. Marcava o horário de sempre. De sempre!