Não conhecia bem aquele lado da cidade e, definitivamente, nunca havia
passado por aquela rua. Parecia interessante, com fachadas muito antigas e bem
próximas umas das outras. Eram lojas que pareciam retratar outro tempo,
outra época: sebos, antiquários, lojas de especiarias e artigos
religiosos, tudo ali parecia velho. No meio de tantos estabelecimentos, Marcos
avistou uma pequena porta com uma placa indicando que ali se faziam tatuagens.
Resolveu bisbilhotar, há tempo que desejava fazer uma tatuagem, mas por
um motivo ou outro acabava adiando o projeto. A loja era estreita e o corredor
exibia figuras diversas para atender os mais diferentes gostos. Um homem magro
e calvo acabava de guardar alguns instrumentos para tatuar e não percebeu
a aproximação de Marcos. O rapaz observou as inúmeras tatuagens
que recobriam o corpo do homem, como uma colcha estampada, mas não era
a quantidade de tatuagens que lhe chamara atenção; a qualidade
das tatuagens era, de longe, superior às que Marcos já havia visto;
as cores eram mais vivas, havia brilho e nitidez perfeita, era como se as figuras
tivessem vida própria, tamanha a perfeição dos detalhes.
Fascinado, Marcos dirigiu-se ao homem que parecia ser o proprietário
do estabelecimento; intimamente já havia decidido: se fosse fazer uma
tatuagem queria aquela qualidade, aquela perfeição. O local era
antigo, e não parecia muito limpo. Marcos observou que o homem tinha
um olho de vidro, o olho direito, o qual era mais brilhante que o outro e não
se movimentava. "Deve ser apenas um balconista", pensou.
- Boa tarde, o senhor é o tatuador? Perguntou Marcos.
- Sim, respondeu o homem sem mais palavras.
- Eu gostaria de fazer uma tatuagem no peito...
O homem entregou a Marcos alguns álbuns, contendo mais figuras. Marcos
tentou obter mais algumas informações, estava maravilhado com
as tatuagens que o homem exibia pelos braços.
- Foi você mesmo quem fez estas tatuagens?
- A maioria delas....
- Você usa algum tipo especial de tinta ou é a técnica que
difere tanto das tatuagens que eu tenho visto por ai?
- As duas coisas....
Marcos percebeu que seria inútil tentar um diálogo. Escolheu a
figura de um morcego e perguntou o preço, esperando um valor bem superior
ao cobrado pelos outros tatuadores, mas pagaria qualquer preço para conseguir
uma tatuagem tão perfeita. Ficou surpreso quando o homem fez um preço
que correspondia a, mais ou menos a metade dos valores usualmente cobrados.
Sem pestanejar, deitou-se na mesa, mostrou exatamente a área onde desejava
a tatuagem e deixou que o tatuador desse início ao trabalho. O homem
mostrou ser muito habilidoso e rápido, mas doeu um pouco. O tatuador
pareceu esboçar um sorriso no momento em que Marcos imaginou a cara dos
amigos quando mostrasse a tatuagem e pensou: jamais darei o endereço
desse achado. Devia ser impressão de Marcos, mas o olho de vidro do homem
pareceu brilhar nesse momento.
Finalmente, o homem terminou a tatuagem e Marcos pagou pelo serviço.
Antes de ir, perguntou se deveria ter algum cuidado especial com a tatuagem
até que a pele cicatrizasse bem.
- Se doer um pouco, coloque um bife cru sobre o local.
- Bife...?
- Sim, um bife bem sangrento.
Marcos achou estranho, mas não questionaria; o homem havia feito um ótimo
trabalho, cobrara pouco..... Lembrou que, quando criança, a mãe
colocara um bife sobre seu olho roxo, depois de uma briga na escola. Enfim,
se fosse necessário, colocaria o bife. Despediu-se, mas o homem não
esboçou qualquer reação.
Marcos sentiu uma ligeira ardência no local da tatuagem. Lembrou que em
casa tinha presunto na geladeira, mas o tatuador havia dito "bife"
e não "presunto". Entrou rapidamente num mercado para comprar
um pacote de carne, "melhor não arriscar", pensou, "pode
doer à noite". Já em casa, tomou um bom banho e pôs-se
a admirar a tatuagem diante do espelho: "que brilho, que perfeição"
pensou, "espere a turma ver isso".
Dormiu mal acomodado no sofá da sala enquanto assistia TV; acordou com
um braço dormente e uma ardência incrível no peito; lembrou
da tatuagem "ainda bem que comprei a carne", pensou. Foi até
a geladeira, cortou um pedaço de bife que fosse suficiente para cobrir
toda a tatuagem; deitou-se de costas sobre a cama, acomodou bem a carne sobre
o local e dormiu sem se mexer a fim de não sujar a cama e os lençóis.
O estranho remédio era nojento mas aliviou bem a ardência do local
e Marcos dormiu tranquilo. Pela manhã estranhou o fato de não
encontrar vestígios do bife sobre o peito; procurou pela cama, no chão,
mas não havia nada. No banheiro colocou-se diante do espelho; a tatuagem
parecia ainda mais bonita e brilhante que no dia anterior, mas parecia maior.
Era domingo e Marcos ficaria em casa assistindo TV. Depois do almoço
o local da tatuagem voltou a arder; Marcos cortou mais um pedaço de bife
e colocou sobre o local enquanto assistia a um jogo e comia pipoca. Tentou relaxar
e não pensar naquela nojeira sangrenta sobre o peito. Ao terminar o jogo
lembrou-se de retirar o bife do corpo, mas só havia um pedacinho de carne,
praticamente sem sangue. "Que estranho" pensou Marcos enquanto
dirigia-se até o espelho mais próximo para ver a tatuagem. Assustado,
constatou que a tatuagem tinha o dobro do tamanho. Pensou em ligar para o tatuador,
mas não havia apanhado nenhum cartão da loja. O nome do estabelecimento
era "O Portal", mas não constava na lista telefônica.
Resolveu ir até lá, a caminhada lhe faria bem. Encontrou a rua
estreita; lembrou-se que a loja de tatuagens ficava do lado esquerdo, entre
um sebo e uma loja de roupas usadas, bem ao final da quadra. Andou mais rapidamente
observando as lojas, não havia ninguém na rua e já começava
a escurecer. Sentiu que a ardência no local da tatuagem voltara com força
total; precisava falar com o tatuador, perguntar se era alguma reação
alérgica; perguntar que tipo de tinta ele havia usado e por quê
a tatuagem dobrara de tamanho.
Avistou o sebo e a loja de roupas usadas, mas não avistou "O portal".
Entre as duas lojas só havia um pequeno espaço com uma porta fechada.
Uma tábua estava pregada sobre a porta, indicando que ali não
havia mais comércio ou moradores há um bom tempo. Marcos sentiu
um cheiro adocicado de ervas queimadas e um ligeiro mal-estar, "talvez
estivesse com febre", pensou. Procurou novamente, mas não havia
sinal de movimento no local onde deveria estar a loja de tatuagens. Devo
ter me enganado, as ruas são muito parecidas por aqui. Pensou em
perguntar a alguém mas a rua estava vazia e as lojas fechadas, era domingo.
No meio fio viu um rato entrando por uma fenda sob a porta lacrada, era escuro,
magro e, por um momento, parecia olhar para Marcos; um de seus olhos brilhava
estranhamente. "devo estar ficando louco", pensou Marcos, enquanto
levantava a gola da camisa para ver a tatuagem que ardia insuportavelmente.
Só podia ser um pesadelo, seu peito estava todo tomado por aquela cor
escura e brilhante, como se estivesse crescendo a cada segundo e pedindo por
mais um pedaço de carne.
"- Carne", disse Marcos para si mesmo; "é isso",
essa coisa começou a crescer depois que eu lhe "alimentei"
com carne. Não colocaria mais nem um pedaço de bife, cuidaria
da ardência com uma pomada cicatrizante ou para queimaduras. Um pouco
tonto, correu até a farmácia mais próxima. Sua aparência
devia estar horrível porque o atendente chegou a perguntar se ele estava
bem e se precisava de ajuda. Marcos pediu apenas uma pomada cicatrizante e um
remédio para dor de cabeça.
O rapaz sentia-se estranho, sons que antes não eram nem percebidos começavam
a incomodá-lo, como se tivesse sido aumentado o volume de tudo; as luzes
pareciam mais intensas, provocando-lhe dores de cabeça. Em casa, tirou
a camisa e tocou levemente a tatuagem; além do tamanho descomunal da
figura, a pele reagia estranhamente no local; ficara saliente e uma penugem
escura e uniforme recobria toda a superfície. Ardia terrivelmente e Marcos
ficou tentado a colocar um bife sobre o local, pois a sensação
de bem-estar fora imediata das outras vezes. Resistiu e espremeu a bisnaga de
pomada sobre o peito, espalhando o creme por todo o tórax. A reação
foi terrível, um ardor insuportável lhe tirou completamente a
razão; era como se brasas lhe cobrissem o abdômen e o peito. Marcos
correu até a geladeira e sem pensar pegou o pacote de carne e espalhou
vários pedaços sobre a enorme mancha; o ardor ia cedendo à
medida que os pedaços de carne iam sumindo sobre o peito do rapaz, que
agora estava em pânico. Marcos queria tirar aquela coisa de si, mas era
como uma doença que avançava sobre seu corpo e ia tomando conta.
Procurou acalmar-se, a noite passaria rápido, ligaria cedo para o trabalho
dizendo que não estava bem de saúde e iria imediatamente ao médico.
As luzes dos carros lá fora pareciam entrar pela janela de seu apartamento
querendo cegar-lhe; fechou bem as cortinas. A mancha escura começava
a avançar pelos ombros, descendo pelas coxas do rapaz e parecia que logo
tomariam os braços e pernas. Sua cabeça parecia girar e os sons
cada vez ficavam mais altos, insuportáveis. Percebeu que precisava de
ajuda imediatamente, não suportaria mais uma noite com aquela coisa avançando
pelo seu corpo e pedindo carne fresca. Lembrou-se de Kátia, uma amiga
da faculdade, mas vacilou um pouco porque a amiga provavelmente pensaria que
ele estava bêbado para ligar aquela hora da noite dizendo que não
estava bem de saúde. Entretanto, precisava desesperadamente de ajuda.
Kátia atendeu ao telefone; Marcos disse que não passava bem, explicou
onde era seu apartamento, desligou e ficou aguardando a presença amiga
que poderia lhe trazer um pouco de conforto.
O calor do apartamento parecia que o sufocava; Marcos abriu uma janela, cobrindo
os olhos para não ser ofuscado pelas luzes da cidade. A enorme tatuagem
começava a arder novamente, como se estivesse pedindo "comida".
A superfície tomada pela mancha era enorme, e já avançava
pelas costas do rapaz. Não era o momento de ser teimoso, precisava colocar
os bifes sobre a mancha porque não suportaria o corpo todo ardendo como
se fossem chamas a queima-lo vivo. Evitava olhar no espelho mas pelo reflexo
do vidro da janela percebeu que a mancha já subia pelo seu pescoço.
Começou a sufocar e correu até a geladeira, só havia mais
um pequeno pedaço de carne crua mas havia bastante sangue no fundo do
pacote. Derramou o sangue pelo corpo sentindo ligeiro bem estar. Exausto e vencido
pelo medo deixou o corpo recostar-se sobre a poltrona da sala; "Era
só um pesadelo" pensou o rapaz; quando acordasse Kátia
estaria ali, serviria a ele um chá para aliviar a febre e tudo ficaria
bem. O mundo parecia girar, tudo era barulhento e insuportável, luzes
intensas entravam pela janela, a respiração estava pesada e ofegante.
Lá fora, Kátia desceu do carro apressada. O amigo era um rapaz
independente, não costumava pedir ajuda aos amigos, "devia realmente
estar com problemas", pensou. Estava no lugar certo: um prédio
pequeno com quatro andares e uma pequena loja de animais no térreo. Pressionou
o botão do apartamento 21 mas ninguém atendeu. Preocupada, percebeu
que uma moça vinha em direção ao prédio, "devia
ser uma moradora". Explicou a ela a situação e teve permissão
para entrar. A porta do apartamento 21 estava apenas encostada. Kátia
entrou; tudo estava escuro; chamou por Marcos enquanto procurava o interruptor
de luz. Nada de excepcional na cozinha, exceto por um filete de sangue aguado
derramado pelo chão. Mais algumas gotas de sangue levavam até
o quarto do rapaz. Kátia chamou mais uma vez pelo amigo mas não
teve resposta. Enquanto pegava o telefone para ligar para a polícia pôde
ver no canto do quarto um grande morcego que parecia tonto e cambaleante, mas
desajeitadamente alçou voo pela janela e sumiu na escuridão
da noite.
(3º lugar no 37º Concurso Literário de Contos de Paranavaí)