A Garganta da Serpente
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Um lugar à mesa

(Cloe de Vries)

Hoje já não me assusto mais, aprendi a conviver com meus fantasmas. Foram chegando de lugares, épocas distintas, tornando-se, lentamente, como eu, donos de minha propriedade.

Sentamos à mesa para o café, tratamo-nos com cortesia, oferecem-me chá, insisto em café - deveriam estar acostumados à minha rotina. Ofereço ao mais velho o jornal, já não tem mais vontade de saber - ele me diz, e, por fim escolhe o obituário; espreguiça-se na cadeira abatido. Adivinho que seja pela falta de notícias quando morrera, não pergunto para não quebrar a tranquilidade da nossa convivência - temos que nos habituar a certas coisas para que haja harmonia, e, também, quebrar o gelo de vez em quando, por isso pergunto à mulher ao meu lado se gosta do meu vestido; ela sorve lentamente sua champagne, enrosca suas plumas no pescoço, estampa um sorriso quase orgíaco e conta-me detalhes das festas que usava frequentar. O revolucionário somente pára de apreciar seu charuto para vociferar: - Blasfêmia! Blasfêmia! Festas e banquetes enquanto o povo humilhava-se faminto! De que te serviu tudo isso?

Ela dá de ombros, segura sua taça como a se contemplar no brilho do cristal e languidamente sussurra em seu ouvido: - Estou agora sentada à mesa contigo, pois não? - seus olhos negros faíscam incrustados em sua pele tão branca que me lembra, por um instante, a neve caindo e mudando a paisagem, algo estéril, imaculado. Ele abranda-se seduzido.

Estamos todos melancólicos hoje. Chove e ouvimos a chuva lá fora do nosso pequeno castelo de vidro. Gostamos de tomar nosso desjejum aqui, no jardim, vendo a hera que cresce invadindo todos os recantos a não ser a visão da pequena janela e também a porta que deixamos sempre entreaberta.

Há a moça que tece. Conta-me a senhora idosa que a conheceu quando moravam em uma longínqua aldeia, que a jovem começara a tecer seu enxoval, como faziam as noivas de sua época, mas ninguém soube, ao certo, o que levara o noivo a fazer uma súbita viagem da qual jamais retornou. Após alguns anos, rumores surgiram de que ele fora visto com uma grande família em um piquenique, perto de um lago, em outra cidade distante dali e que seu semblante era de extrema felicidade; mas a moça não deu ouvidos e continuou a tecer até que os baús ficassem abarrotados de lençóis, toalhas, panos impecavelmente passados, engomados... até que a morte veio lhe buscar, talvez porque a chamara em silêncio... ou porque tenha chegado a sua hora... ninguém pode saber... talvez, a moça pudesse nos dar a resposta, mas agora pouco se lembra da vida que vivera... só não esquece o bordado... e o tear.

- Teci este lençol para você - ela estende o lençol, aconchega-o em minhas mãos e aponta com os dedos tão delicados o também delicado bordado e sorri, um sorriso tímido, mas que me comove. Medito - talvez, o tempo seja realmente o melhor remédio para a dor de amor.

A senhora idosa balança a cabeça veemente e diz com voz amargurada:

- Para que lençol tão bonito? De que servirá isto a ela? Não há romance que dure aqui. Pois não lembram o belo rapaz que a visitava quase sempre? Ah, e as flores! Como era gentil, era o meu preferido, mas quanto tempo durou? Uma semana? Um mês, talvez, não mais.

O poeta, que escrevia seu livro em silêncio, arqueia os olhos e, suspirando, recita:

- Amor tão vil a serpente nutre mas pela sua natureza não devemos chamá-lo, sendo assim, de amor?

- Amor acaba-se antes do borbulhar da champagne... pois fico com a champagne! - a aristocrata aninha-se mais em suas plumas e ergue a taça... fazendo um brinde ao amor, à champagne ou à melancolia... não estou certa.

A senhora, agora, parece contemplar o vazio, a amplitude, e todos se transformam, pouco a pouco, nesse silêncio - o revolucionário traga seu charuto e solta rodelas de fumaça no ar; o senhor mais velho assente mais um óbito com a cabeça; a aristocrata retoca a maquiagem; a moça começa a tecer um pequeno tapete enquanto eu derramo mais café em minha xícara e começo a recordar, ainda que, vagamente, o rapaz das flores.

Ouço uma música ao longe, a nona sinfonia de Beethoven que se mistura com o aroma da geleia de amoras aberta, o bolo de laranja, os pães ainda mornos... uma paisagem suave. Aprovamos a música olhando uns para os outros com um singelo sorriso.

- Ah, o amor... - a moça que tece corta o silêncio e nos surpreende... há nos rostos... espanto.

- Senhorita, lembra-se, então, de algo de sua vida ou apenas divaga? - o revolucionário a mira atordoado.

- Deixem-na, deixem de bisbilhotar. Ah, não passam de fuxiqueiros! - o mais velho e ranzinza exclama largando de lado o jornal. - tolices! Só tolices nada mais!

A aristocrata inquieta-se inclinado seu corpo em direção à moça:

- Vamos! Lembre-se de algo e nos tire desse tédio medonho... - oferece uma taça a ela que a aceita debilmente.

- É a música... ela me fez lembrar do piano... o piano que eu tinha... lembro-me de que era tão jovem...

- Ah, mas não vamos mencionar idades, pois não? - a aristocrata revira os olhos.

- Lembro-me de que estava noiva... - ela suspira - e então foi que minha mãe me ensinou a tecer e bordar para preparar meu enxoval... - Disto também me lembro - disse a senhora - que história infeliz a sua...

- Lembranças, blargh! - o ranzinza mostra a língua - o que nos importa isso agora?

- O que mais temos se não lembranças? - diz a senhora com ar triste.

- Acordai-me, Acordai-me, hoje eu quero morrer! - debocha o poeta.

- Passaram-se anos sem notícias... eu estava à espera... uma vigília sem fim...até que... - a moça detém-se num profundo suspiro.

- Melhor é nos embriagarmos e esquecer. Um brinde às histórias malfadadas!

- Estou de acordo com a madame - e enche sua taça o revolucionário.

- Ah, finalmente ele concorda! - retruca a aristocrata.

A calma transforma-se no som de taças tilintando e me junto a eles nesta pequena celebração... o senhor birrento finalmente esboça humor e ergue também sua taça... a senhora termina seu desjejum e ajeita o cavalete para rematar o quadro que começara a pintar há tempos onde nos retrata com personalidade singular... o revolucionário cochicha algo com a aristocrata e ela solta uma de suas gargalhadas estrondosas... o poeta atira as páginas que havia escrito na lareira e despeja champagne em sua boca e, a moça saudosa, delicada como um pássaro, bebe pequenos goles.

Estranhos pensamentos me ocorrem - e se ele houvesse sofrido um acidente ou tivesse sido assaltado por uma grave enfermidade e também abatido pela morte? Quem sabe agora estaria ele procurando por ela numa busca incansável? Não há respostas... mas olho a cadeira vazia ao lado da moça... ela jamais a ocupara, preferindo colocar seus utensílios no chão e ninguém, igualmente, usava a cadeira... ela estava simplesmente lá... vazia... à espera?

Talvez, ele termine a sua longa jornada e um dia venha ter conosco... os baús poderão finalmente ser abertos... as toalhas tão esmeradamente bordadas serão estendidas, quiçá, para um piquenique em nosso jardim... a cadeira finalmente será ocupada... e a senhora começará outro quadro, pois, então, seremos oito personagens a contar esta história de amor.

Lentamente volto à mesa deixando minhas divagações de lado ao escutar o senhor mal-humorado exclamar:

- Há alguém vindo! Olhem todos! Olhem! - e pronuncia entre os dentes cerrados - mais um espectro para me enfastiar com essas histórias de tempos já findos... diabos!

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