A Garganta da Serpente
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De eloquência vulgar

(Carlos Vilarinho)

Não venho aqui cair redundantemente no discurso pedagógico que assola a pobre história da educação no Brasil. Provavelmente como diria Rui Barbosa aos moços "vulgar é ler, raro é refletir..."... Então procurando refletir e pensar sobre as coisas da vida e o mundo por inteiro, procuro manter distância daqueles certinhos, titubeantes que jogam todo o peso do fardo educacional nas costas do proletário professor. Sabemos que em todos os lugares profissionais o bode expiatório é sempre bem-vindo, seja para ser assado ou cozido. Porém a indigestão ronda a mesa , e a gula é inimiga da parcimônia.

Um amigo meu, professor da área linguística, profundo conhecedor das letras, revoltou-se com a amarga profissão que exercia e explodiu. Bradou alto:

- Se soubesse que seria tão humilhante constar presença na sala de aula, desistiria do curso de Letras...Desistiria...Faria Pedagogia e ficaria como essas coordenadoras cortando, colando papel e falando da vida dos outros...E outro dia ela falou que o professor de História fedia. Mas que mulher mais asquerosa... Eu realmente estou revoltado, Paulão.

Evidente que a ira do meu amigo não era generalizada, pois ele namorava uma pedagoga. Era uma bela garota, e segundo pude observar eles se amavam muito. Sem dúvida, era uma persona muito inteligente, sensível e linda. Aliás, não devo relevar somente a namorada do meu amigo. Pois, como exemplo, devo unicamente salientar o maior dos pedagogos brasileiros, o mestre Paulo Freire. Que, aliás, pregava já em alta ditadura militar "O compromisso do profissional com a sociedade". Há um momento em que o mestre Paulo Freire abre o debate justamente com a palavra compromisso. O compromisso de estudar, pescar como Pedro o conhecimento que está no ar e passar adiante para todos. Evidente que assim como ele temos dezenas, centenas e até milhares de pedagogos e/ou coordenadores que são deveras competentes e estudiosos. Mas, meu amigo passou uma situação vexatória, indignante, inacreditável com uma dessas tais profissionais da educação que ao que me parece quando foi pescar, morreu afogou-se.

Certa vez, contou-me que ao chegar a sala dos professores encontrou a coordenadora debruçada sobre a mesa, com cara de interrogação. Desconfiado, pescou o que estava escrito e percebeu o entrave. Esforçou-se mais e conseguiu enxergar a interrogação estampada no rosto da atônita criatura. Era a palavra INCREMENTAR. Astuto, como todos que trabalham com palavras, sentiu que seria interpelado pela ilustre que ocupava um posto hierárquico acima dele. E a questão veio retumbante:

- Professor, encrementar significa colocar? E se escreve com ene ou com eme ?

Meu amigo explicou, primeiramente, que não era encrementar e sim incrementar, em seguida disse-lhe que se escrevia com eme e ene, por sinal com dois enes, porém cabia a quem estivesse escrevendo decidir onde por os enes e emes incrementados.

- Mas como, professor? Não tem til?

Meu amigo, sarcasticamente com um riso no canto da boca, explicou que ele, o tio, tivera um acidente e por infortúnio, coisa do destino, veio a falecer, mas que sua tia estava bem, tinha uma boa pensão, bom emprego e um amante rico. Continuou a falar-lhe do tio, boa pessoa, boa alma, espírito de luz, falou até da grana que lhe arranjava de quando em quando. Colocava até os primos no discurso, mas foi interrompido pela chorosa professora, que com tantos incidentes incrementados pelo meu amigo, deu-lhe os pêsames, entretanto não esqueceu do jocoso problema, e outra vez fantasticamente, indagou:

- Ó professor, que pena do seu tio não é? Mas é isso mesmo a vida continua... Mas não entendi porque o senhor vem me falar dessa "catastrófe' só agora... Quando nós conversávamos a respeito de encrementar...

- Incrementar, professora, incrementar...

Meu amigo voltou a explicar que a palavra sofre três nasalidades, tem um encontro consonantal e é um verbo regular. Ao terminar, não teve dúvidas de que a interrogação acentuava-se no rosto ignóbil. Rosto ignóbil e expressão calhorda, desprezível, frente a frente, os dois. O meu amigo lembrou-se de Pateta, Peninha, Hortelino e Frajola olhando a triste fronte apedeuta. Sentiu o ego massageado, sentiu-se no podium letrado, no trono a olhar seus irrelevantes súditos suplicando-o por um copo de conhecimento e degustava a vingança gelada como sorvete, incrivelmente fumegante ao olhar aquela criatura insipiente.

- Professora, a palavra incrementar vem do latim INCREMENTARE, significa: Desenvolver, aumentar, excitar, provocar animação... Tem um ene no começo, um eme no meio próximo ao outro ene, aproveito a situação e recomendo-lhe uma reciclagem... Sempre é bom, pois a Língua é um mecanismo vivo e como tal sempre está variando, passar um olho na gramática não faz mal a ninguém, não é?

A criatura, coitada, pasma e boquiaberta olhava para ele com um nada na expressão, não sabia se sumia ou se virava ao avesso, calou-se e retornou a recortar e colar papéis...

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