Seu processo, o processo que o arrastara para fora esta noite, nada mais era
que sua vida. Ela vinha se prolongando desde 3 de julho de 1883. Este era um
processo sem juízes ou tribunais, em que o réu condenara a si
próprio.
E caminhava solitário pelas ruas e becos praticamente desertos de Praga.
Enquanto isso, a noite se aprofundava engolfando todas as coisas e ele sentia
todo o peso dos anos e contos sobre seus ombros judaico-heréticos. E
tinha a consciência, mesmo que não a desejasse, de que chegara
ao fundo de tudo: aquilo que as pessoas chamam tão resumidamente de "fim".
Ali estava, sobre uma úmida calçada, um homem pálido como
a luz da lua que se reflete numa poça d'água, febril como a criança
a lamentar na janela, e magro e desgastado como nenhum outro ser; uma réstia
de vida. De suas narinas brota o vapor frio, e seus cabelos desgrenhados e olhos
avermelhados o perfazem, metamorfoseando-o num de seus próprios personagens
perante os tortuosos e findos caminhos.
Para Franz Kafka, todas as janelas estavam cerradas, inclusive a sua. Fugindo
de seu castelo inexistente e sem permissão para viver na aldeia, a figura
semimorta distancia-se dos motivos tornando-se um andarilho. Assim, caminhava.
Vagava como um errante envolto nos erros do mundo. Não tinha culpa. (realmente.
Aqueles que o conheciam sabiam que não tinha culpa alguma), mas a sentia
com toda a intensidade da alma, pois por mais que evitasse este sentimento,
ele o seguiria onde quer que fosse: Alguém certamente caluniara Josef
K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum. E essa
era a verdade sobre Franz Kafka: o mundo o caluniara sem que ele carregasse
culpa, mas em oposição a Josef K., ele sentia tal culpa. Mas,
acima de tudo, sentia vergonha. Temia que a vergonha o sobrepujasse. Devido
a isso, culpava-se pelos erros não cometidos.
Medíocre, inútil e solitário: assim se via, como o caos
e a escória do mundo contemporâneo, enquanto os românticos
viam a vida com melancolia.
* * *
A gélida brisa noturna congela seus ossos e músculos, fazendo-o
coxear em alguns passos, e a bebida antes ingerida sobe-lhe à cabeça
entorpecendo a mente, revirando o estômago, e criando ilusões reais
perante seu olhar. Nessa altura, já afrouxara sua gravata borboleta,
tirara o paletó preto e, num beco imundo, deixara de lado sua bengala
e seu chapéu. Enquanto caminha, vê as ruas estreitas, que assim
como as calçadas de concreto permaneciam úmidas devido à
chuva da tarde. Uma leve neblina o cerca, e, através desta, pode ver
o céu negro e estrelado, e as luzes amareladas dos postes de metal preto.
Há um ou outro ser por estes lados (vez por outra, uma suntuosa carruagem
puxada por garanhões brancos de olhos avermelhados corta o silêncio).
Os únicos sons são os dos sapatos de Kafka e tênues barulhos
vindouros das almas engaioladas em suas casas.
A cabeça lhe pesa, pois ele não se sente capaz de caminhar e rememorar
tantas coisas ao mesmo tempo. Sua mente não passa de uma compilação
de seus inteiros e inacabados manuscritos, que agora não passam do reflexo
de sua vida, mas que na verdade são a sua vida. Vida esta que
é como um senhor cruel que açoita seus animais forçando-os
a retirar energia de onde nada mais resta. Após quatro quarteirões
cruzados sem viv'alma, sente-se exausto, e com o ar frio a castigar-lhe os pulmões,
recorre a um dos postes para apoiar-se. Sua mão ossuda toca o metal congelante,
mas o cansaço o impede de qualquer reação. Resfolegando,
permite que a luz do bojo vítreo acima banhe-lhe o corpo, adquirindo
naquele instante um aspecto fantasmal: alguém que há muito já
morreu e esqueceram de enterrar.
Notando que o poste é pouco para todo o peso que leva consigo resolve,
contra os costumes, sentar-se ao meio-fio. Sente que molha as calças
na umidade do concreto, mas este é o menor dos incômodos naquele
momento; ele tenta em vão evadir-se de pensamentos só para obter
um segundo de tranquilidade. Durante sua luta, uma frase que escrevera
transpõe a barreira do esquecimento e o penetra de dentro para fora,
inflamando-o. Lembra da sentença de sua criatura, Georges Benderman:
No fundo, foste uma criança inocente. Mais no fundo ainda, foste um
ser diabólico. Por isso condeno-te agora à morte por afogamento.
A memória do passado o faz levantar, e de pé, assim como Benderman,
pretende cumprir tal sentença. Algo que necessitava cumprir, e depositava
em si um mínimo de esperança contrapondo-se a um máximo
de decisão. Iniciava-se então, naquela noite das ruas praguenses,
a jornada fatídica de Franz Kafka.
Despido de amor e proteção, isolado do mundo, e tendo consigo
a impotência e a derrota, ele reinicia seus passos seguindo a mesma direção.
A névoa se adensara e a lua já subira no céu, mas mesmo
a visão parcialmente bloqueada já não era um empecilho.
Sua existência era um pesadelo irracional e as razões, incompreensíveis,
mas assim como os personagens que criara, havia Kafka atingido o inatingível,
ou seja, não tinha por quê voltar atrás. E além de
suas decisões, o que o impulsionava para sua demanda eram os pensamentos
niilistas e as ameaças que sentia das forças que o cercavam, provenientes
dos mais profundos pesadelos de suas noites solitárias nos sanatórios
pelos quais passou.
Após aproximados vinte minutos de caminhada vazia, com a cabeça
mergulhada na culpa, quase a se afogar, sua mente desperta de sobressalto, e
ao piscar os olhos e esfregá-los, dá-se conta das duas figuras
de pé na calçada oposta. São dois homens trajando fardas
cinza (ao menos parecem cinzentas à luz da lua). Entre eles, um amontoado
de tijolos e cimento, e as mais variadas ferramentas de pedreiro. Estão
diante de um casarão. Curiosamente, os dois trabalham separadamente construindo
um novo muro; cada um numa extremidade, enquanto da sacada do primeiro andar
um senhor em roupas de dormir - ao que parece o patrão - observa-os sentado
numa cadeira de palha e beberica alguma coisa quente.
Os dois operários demonstram fadiga e empenho, enquanto seu patrão
faz-lhes inveja do conforto de sua xícara. Os dois não trocam
uma palavra sequer, e de forma simétrica e consecutiva sobrepõem
os tijolos retangulares e vermelhos.
Kafka, mesmo envolto em perturbações, fica intrigado ao ver aquela
cena, e tece para si um comentário:
- É óbvio que há desânimo! Não há um
conjunto de trabalho. E por isso, resta aquele enorme espaço ao centro.
O único empenho que possuem é decorrente desse imperialismo. Não
há razões... - finaliza, deixando que as palavras se percam na
brisa.
Depois de muito observar e ponderar, decide aproximar-se. Sua mente pode ter
despertado e se fixado num ponto, mas ao caminhar, Franz Kafka sente que seu
corpo não corresponde pois suas pernas fraquejam. Mesmo assim, cruza
a rua deserta e vai ter com os operários:
- Senhores, boa noite!
Assustados, eles se voltam para Kafka ainda com as pás nas mãos.
De súbito as soltam e cumprimentam-no de forma regrada, como se o fizessem
a um patrão. Pois mesmo no estado atual, Kafka ainda se mostra apresentável,
principalmente se comparado aos trabalhadores.
- Boa noite, senhor! - dizem em uníssono.
- Quem são? Posso saber? - indaga.
- Claro, meu senhor! - diz um deles afobado. E aproximando-se de Kafka, mas
sem tocá-lo: - Sou John Cromwell, e este é meu companheiro Archibald.
Em que podemos servi-lo?
Como são humildes! - pensa Kafka, Ao invés de tomarem
a casa de assalto e levarem tudo, vêm nos apresentar documentos.
- Desejo saber: porque labutam em plena madrugada?
- Ordens do patrão. Deseja ter este muro terminado o mais rápido
possível. - explica John.
- Bem... então não desejo indispô-los com o seu patrão.
Continuem este muro e boa noite para os senhores!
- Boa noite, senhor! - repetem os dois.
* * *
Milena... Dora... Julie... Felice... Ah! Felice Bauer! Quisera não
ser solitário, mas sou. - reflete Kafka em seu íntimo. Depois
retomou sua divagação e continuou a vagar pelas ruas que o cercam;
cercam-no também suas inúmeras memórias, e todos os seus
escritos sobrenadam em derredor. E lhe bastam mais alguns poucos passos para
que, no limite da exaustão tanto mental quanto física, ele passe
a ter visões aterrorizantes. Em certos pontos de seu percurso, Franz
Kafka se depara com a figura de seu pai, surgindo aqui, desaparecendo, e vindo
reaparecer em outro ponto. Seu pai, sempre a castigar-lhe, a impor sua voz e
sua força, a repetir seus infinitos sermões de todas as manhãs
e de todos os jantares:
- um verdadeiro Kafka, quando se forma, deve mostrar que é capaz de
ganhar seu pão com as próprias mãos. - dizia aquele
homem, cerrando o punho em frente ao peito. Aquele homem alto, robusto, de pele
morena e cabelos castanhos postos de lado, uma barba quadrática e olhos
negros. Trajava roupas simples e rudes num surgimento, e noutro, paletó
e gravata. Ele era Hermann Kafka.
- Por favor! - implora Kafka ante as palavras de seu pai. _ Deixe-me só!
Eu imploro...
- Onde foste terminar? Devias ter sido advogado. Sabias que tua vocação
estava ali. - dizia o pai.
- Tudo o que não é literatura me aborrece. - retrucava
Kafka.
- Parece um Löwy a falar, quando deveria ser um Kafka. Não exótico
e excêntrico, mas sim forte e determinado. Não este inseto em que
te metamorfoseastes...
- Deixe-me pai. - pedia Kafka, enquanto bambeava pelas calçadas, - Deixe-me
em paz!
- Tu não és meu filho! Nem sequer chegas a ser Franz Kafka, aquele
que vi nascer. Em verdade teu nome é Gregor Samsa! - diz Hermann em sua
última aparição, abandonando Kafka ao desespero numa sarjeta.
Sentado à calçada, com o suor frio banhando-lhe a fronte e o abatimento
refletido nos olhos, ele levanta o punho cerrado, e dirigindo-o ao meio da neblina,
grita a plenos pulmões:
- Tu me fizeste perder toda a confiança que poderia ter em mim, e
a transformaste num sentimento de culpa. - e depois cai deitado lateralmente
sobre o concreto, ainda vislumbrando o vazio que o cerca.
Passado um tempo não contado, sente uma réstia de força
que se mostra bastante para levantar e dar os últimos passos - acima
de tudo, Kafka anseia por atingir seu objetivo. São a estes últimos
passos que ele se encaminha. E, prontamente, estaca mais uma vez. Diante de
uma viela mal iluminada ele repousa o olhar e entre as sombras e as distorções
da noite consegue discernir uma força demoníaca. Desta força
sente o pecado e a negação da graça. Por entre as brumas,
encontra-se estática uma figura encapuzada, envolta em mantos negros,
alta e majestática, tenebrosa e firme. Por baixo do capuz, dois olhos
vermelhos a observá-lo.
Do ser esquisito brota uma voz fria e hipnótica, pela qual Kafka quase
se deixa dominar:
- O homem é incapaz de aprender a lei divina e é perfeitamente
possível que essa lei pareça imoral a seus olhos...
- Todavia, o dever do homem é ajustar sua vida à lei cujo mecanismo
não pode compreender. - completa Kafka, e continua: - Não
há nada de divino em você. Tu não passas de um pouco mais
do que esta viela apresenta! Não és digno de minha alma, pois
só Deus pode tirá-la!
Ofegante, e resistindo ao olhar rubro:
- Vá, pois não me seguirá aonde eu vou!
Por fim, a figura se desfaz em neblina e desaparece de vista. A calmaria e o
sufocamento das ruas estreitas retornam ao seu estado natural.
* * *
A lua desce novamente no céu, definindo quase todo seu percurso semicircular.
Se revela brilhante e pequena se comparada ao seu início. As estrelas
reluzem disformes e os tons escuros do manto que recobre a cidade começam
a tomar as cores de um azul profundo. A aurora se aproxima, e para Franz Kafka
resta pouco tempo para a execução de sua sentença. Sem
demonstrar anseio, mas cheio de expectativa, caminha a passos largos pelas ruas
de Praga. Para ele, a noite já foi exaustiva e profunda demais, além
de lhe ter tomado tempo demasiado .
Nesta altura, o efeito dos intermitentes copos de absinto e uísque, além
de outras bebidas, já havia passado, deixando-lhe uma incômoda
dor de cabeça que pressionava seu crânio por todos os lados, impedindo-o
de pensar, mas sem deixar de fora a razão.
Num dado momento, ele estagna. Leva as mãos ao peito pressionando-o,
como se compelido por uma pungente dor. Sofre. E, apressado, busca em seus bolsos
alguma coisa que custa a encontrar. Do lado esquerdo da calça, puxa um
lenço branco, que logo desfaz-se de suas dobras ficando dependurado na
mão de Kafka, que o leva prontamente à boca, e tosse. A tosse
vem acompanhada de uma dor ainda maior, que provoca náuseas e por pouco
não o faz desmaiar.
Afastando o lenço dos lábios, nota que sua superfície alva
agora se perfaz numa mancha vermelha e disforme. Sangue. Ante tal visão
e após rápidas conclusões, define para si:
- Devo me apressar!
Liberta o pedaço de pano de seus dedos, e o vento o arrebata. Apressa-se
mais do que em qualquer outro momento da noite.
As brumas se desfazem no seu caminho, e em alguns segundos Kafka finalmente
alcança o lugar de seu desejo: a ponte.
Uma ponte comprida e arqueada, que se suspende por um rio fundo de águas
turvas e caudalosas, salpicado de pedras, principalmente nas margens. Tal ponte
é assentada sobre pilastras de grossos e grandes tijolos encaixados,
e entre si estes pilares formam arcos, seguindo a forma da estrutura que sustêm.
Parapeitos, pequenas muretas, dispõem-se em suas laterais, acompanhadas
por fileiras de postes. Alguns bancos de praça distribuem-se pelas calçadas.
O asfalto segue os moldes das ruas que a contornam. Ali, o som das águas
correntes é intenso.
Já trôpego, Kafka dirige-se até aquilo que julga ser o centro
da ponte. Faz frio, pois a manhã se aproxima, e o vento e a ameaça
do dia dissipam pouco a pouco a neblina, mas as estrelas ainda brilham no céu,
e a lua ainda se faz senhora.
No meio da ponte, ergue os cabelos curtos que sentem o soprar da brisa que acompanha
o curso do rio. Decidido, mas extremamente fatigado, encaminha-se a uma das
amuradas que contornam as laterais da ponte. Pondo os braços sobre o
parapeito, relaxa o corpo e fecha os olhos. Sente-se no fim das forças,
é verdade. Mas, ao mesmo tempo, sente um fio de energia percorrer-lhe
para que possa findar sua demanda. Como se estivesse destinado àquilo.
Nenhum pensamento. Nada lhe apetece.
Por fim, abre os olhos, e num suspiro abaixa-se, e com as mãos retira
os sapatos que tanto desagradam seus pés. Coloca-os sobre o parapeito,
e enfim, no último de seus esforços, apoia as mãos no mesmo
forçando os braços e subindo na amurada, onde fica de pé.
Os sons das águas em torvelinho ali embaixo são cada vez mais
próximos.
Ali está um homem desesperado ante sua própria existência,
assim como foram muitos dos seus personagens.
Todos estão à morte condenados - pensa em seu íntimo.
Sua sensibilidade aflora, e todos os seus sentidos se aguçam em contato
com o mundo que o cerca: a ponte, o rio, a madrugada e a aurora próxima,
sua respiração, o céu e as estrelas. E lembra-se do dia
8 de março de 1912, quando completamente angustiado pensava no salto
pela janela. Lembra do período que transcorreu no campo, em Zurau,
junto com sua irmã mais nova.
Encerrando seu memorial, pensa mais uma vez na condenação dada
a sua cria, Georges Benderman: ...condeno-te agora à morte por afogamento,
e fecha-se para o mundo.
Voltando os olhos para o céu, contempla o último resquício
da noite, e fala:
- Himmel in Engen Cassen. - enquanto sua voz se perde, Franz Kafka se despede
do mundo em seu mergulho. Em questão de segundos, se vê envolto
pelas águas. É arrastado para todos os lados sem desespero. Sente
uma forte pancada na cabeça e o líquido turvo torna-se avermelhado.
E desfalece, perdendo os sentidos...
* * *
Naquela madrugada, Kafka despertou em seu leito no Sanatório Kierling,
em Klosterneuber, perto de Viena, Áustria. Estava suado e com as fortes
dores de cabeça, e seus pulmões não lhe perdoavam nem as
últimas horas. Fora cercado por médicos, mas logo os dispensou,
pois odiava se ver no meio de grupos tão grandes e dispendiosos.
Assim, passou a noite em seu quarto particular sem conseguir pregar os olhos
e a escuridão dos cantos trazia-lhe à mente coisas que queria
esquecer. Foi então que conseguiu dispensar grande parte dos pensamentos,
pois muniu-se de papel e tinteiro, e na madrugada escreveu para o amigo Max
Brod. Possuía uma leve impressão, mas de fato não sabia
que aquelas seriam suas últimas palavras.
Caro amigo,
escrevo-te como suposição do que está por vir. Prefiro
prevenir-me a ter de sofrer com aquilo que não posso mudar. Acredito
ter chegado ao fundo de tudo. Dessa forma, peço-te encarecidamente que,
assim que a chance estiver ao seu alcance, queime todas as minhas páginas.
Não permita que uma linha sequer daquilo que criei permaneça viva
quando eu tiver partido.
Este é o último desejo de um homem moribundo.
(...)
Não tenho nenhuma das qualidades necessárias para triunfar na
vida; a única coisa que tenho é a minha parte correspondente de
fraqueza humana. Absorvi tudo o que existe de negativo na minha época.
A mim não coube participação alguma nos valores positivos
destes tempos. Não me guiei pela vida como Kierkegaard, através
da mão do cristianismo que agora enfraquece rapidamente, nem me alienei,
como os sionistas, ao último eco das orações dos judeus.
Sou um final ou um princípio...
Sobre seus relacionamentos escreveu:
A ideia de uma lua-de-mel me enche de temor, onde seu amor foi mergulhado
num mar de temor e de condenações a si mesmo.
A seu pai, Hermann Kafka:
Querido pai: perguntaste-me certa vez por que motivo eu afirmava que te temia.
Como de hábito, não soube o que te responder, em parte exatamente
pelo temor que me infundes...
Tu me fizeste perder toda a confiança que poderia ter em mim, e a transformaste
num sentimento de culpa.
Eu tinha perdido diante de ti a minha confiança e, em troca, recebido
um imenso sentimento de culpabilidade. Como lembrança desse enorme abatimento
escrevi um dia, a respeito de uma de minhas personagens, com justa razão:
ele tema que a vergonha lhe sobreviva.
Sobre sua doença:
O mal dos pulmões é apenas um extravasamento do mal moral.
E por fim, completando a carta ao amigo, Max Brod:
Sinto-me imensamente grato por este favor em relação aos meus
escritos. Não poderia ter tido amizade melhor.
Enfim, retiro do mundo a minha existência, esperando não deixar
para trás nenhum resquício dela. Esta é a 'insignificância
do ser diante do nada'.
No sanatório Kierling, no dia 3 de junho de 1924, um mês antes
de completar quarenta e um anos, Franz Kafka morreu, deixando para trás
um legado de obras fantásticas e, em maior parte, inacabadas, que mexem
com os sentimentos mais profundos de cada um.
Certa vez, Muir disse: não há outro escritor em sua época
cuja obra mostre, de modo tão contínuo, a marca da grandeza. E Waldo
afirmou: Quando se escrever a história do romance dos cem anos passados,
Kafka será considerado igual a Dostoiévski.