A Garganta da Serpente
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O aposentado

(Carlos Vilarinho)

Professor Rogério era um homem sério. Estudara muito, lera os grandes clássicos literários e em suas aulas dava interpretações e incorporava personagens numa verdadeira performance teatral. Para toda e qualquer situação, o professor dava um exemplo de um escritor e do fato em questão dentro da obra. Eu não o conhecia, até o feito ocorrido que nos aproximou. Eu sempre fui um homem ignorante nessas coisas de literatura, achava até que fosse coisa de afeminado, de viado mesmo. Entretanto aprendi durante o decorrer do tempo que a vida dá voltas. É um eterno retorno. Na verdade sempre fui rude, não me lembro de qualquer oportunidade que fizesse melhorar meu intelecto, pelo contrário, sempre estive às voltas com o inadequado, com o indecente e até com a marginália. Durante alguns anos da minha vida, principalmente na adolescência, fumei e vendi maconha, ficava sentado em cima de uma árvore, na rua perto onde morava com minha mãe, esperando os viciados filhinhos de papai. Calma, não se assuste é só para ter uma ideia por onde eu andei. Não sou tão mal assim hoje em dia. Professor Rogério passou a morar na nossa rua a cerca de quatro ou cinco anos. Como já disse, era muito sério e de poucas palavras. No entanto era uma serenidade sem ser sisuda, tinha uma expressão plácida no rosto. Acho que o professor não parava de pensar. Não sei porque me chamou a atenção aquele homem, um dia flagrei-me observando tudo o que ele fazia. Estava aposentado e sentia um vazio imenso na alma, parecia que a vida havia me atropelado, faltava algo que não sei explicar, contudo aquele homem iria saciar minha sede desconhecida e eu morreria feliz. Finalmente eu participaria de algo significativo, mesmo que fosse para dar prazer a outro.

Nossa rua ficava num bairro central de Salvador, nas imediações de Brotas. Era uma encruzilhada muito perigosa tanto para motoristas como para pedestres. Havia numa das esquinas da encruzilhada uma padaria que era também um bar. A cerveja saía estupidamente gelada e ali se sentavam alguns ilustres do bairro. A maioria velhos iguais a mim, outros poucos jovens e alguns profissionais que trabalhavam naquele pedaço. O guarda de transito, o vendedor de gás, varredores de rua e camelôs ambulantes. Quando passei a observá-lo, já havia duas ou três semanas que o professor Rogério alojava-se na mesa do lado de fora do estabelecimento sempre com as vistas voltadas para uma das ruas da encruzilhada. Sentava-se e sorvia tranquilamente sua cerveja, sempre sério e pensativo. A minha aposentadoria não dava para muita coisa, recebia pouco mais que um salário. Entretanto minha mãe havia deixado duas casas de aluguel e era como eu salvava minha pele do mundo cruel e globalizado que nada entendo. Portanto de posse dessa ninharia, fazia sempre a mesma coisa. Jogava na loteria esportiva que de vez em quando tirava uma pontinha. Bebia café e fumava cigarro. E o resto do dia sentava em uma das mesas vazias da padaria e jogava conversa fora. Tive muitas mulheres, morei com seis delas e tive um filho com cada uma com que morei. Tive também muitas amantes, fui um homem que chamou a atenção das mulheres, nunca precisei fazer muito esforço para tê-las. Na verdade eu conversava mentindo e elas gostavam. Falava de amor sem acreditar nele, as mulheres gostam disso, são muito românticas e gostam dessa baboseira de poesia, palavras bonitas. Engraçado sempre tive essa nuance linguística naturalmente e nunca dei valor. Não gostava dessa tal de literatura. Mas de mulher definitivamente eu entendo. Pena que elas são todas problemáticas. Todos os dias o assunto era o mesmo com seu Antonio: futebol, novela e nossas conquistas amorosas. Voltando ao professor, de vez em quando notava que gesticulava e falava consigo próprio. De repente parava e desandava a falar sozinho. Foi assim que soube que ele era professor de literatura e escritor. Seu Antonio o conhecia e confessou-me, cevando por instantes minha curiosidade a respeito daquele homem. Às vezes quando chegava em casa à noite para assistir a novela, intrigava comigo mesmo. Que diabos aquele homem tinha haver comigo para olhá-lo e observá-lo durante todas as tardes? Entretanto a resposta estava a caminho.

Angustiado com tamanho imã energético, acordei numa manhã disposto a encontrar o professor Rogério e conhece-lo. No fim de tarde, como todos os dias, lá estava a cerveja na mesa e ele refestelado na cadeira com os olhos fechados. Parecia dormir, mas...

- "Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que eu penso do mundo?

Sei lá o que penso do mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso".

- (???)

- (risos) Fernando Pessoa, ou melhor, Alberto Caeiro em "O Guardador de Rebanhos...".

Balancei a cabeça cordialmente. Um pouco assustado, descrente e sem nada entender. Contudo ele prosseguiu.

- Por que as coisas da vida tendem a ser difíceis, caro amigo?

Ainda assustado respondi.

- Sinceramente não sei, se há uma pessoa no mundo que não entende nada da vida sou eu...

De repente percebi os olhos do professor Rogério crescerem e brilharem.

- Pois eu entendo tudo da vida e vou lhe explicar...

Tive vontade de sair correndo, mas uma força me segurou ali. Também não ficaria bem um velho como eu levantar de uma cadeira em um bar e sair correndo pela rua gritando que o cara era maluco. O maluco passaria a ser eu. Resolvi ficar e ouvir um pouco mais, provavelmente eu era o primeiro a ouvir a voz do professor Rogério.

- Escute, o senhor aparenta ser mais velho do que eu, mas não tem problema, independente da idade, todos não sabem o que vieram fazer no mundo... O senhor, por exemplo, sabe?

Ainda meio confuso e agora um pouco amedrontado respondi balançando a cabeça negativamente.

- Pois é, esse é o segredo da vida.

Falou isso secamente e depois parou, cruzou os braços e retomou sua elucubração egoísta. Entretanto não me dei por satisfeito, quem ele pensava que era? Começa a dizer umas palavras que tirou de um tal Fernando Caeiro e ainda me faz de idiota, falando que não sei quem sou.

- E por acaso o "mestre" sabe o que veio fazer no mundo?

- Sei.

- Então me diga.

- Não vejo motivo para dizer ao senhor qual a minha missão no mundo...

- Claro que há motivo (pausa indignada)... O senhor começa falando umas palavras aí de um tal Alberto Pessoa e depois me diz que ninguém sabe quem é quem ou quem é o que...

- Fernando Pessoa é Alberto Caeiro, meu caro senhor, o maior escritor da Língua portuguesa...

Senti um despeito tomando minha alma por dentro. Ele estava ali todo altivo, todo prosa, só porque sabia quem era o tal do Fernando... Alberto... Fernando... Pessoa. Contive-me pois já estava com raiva dele e de mim mesmo, mas a minha curiosidade em torno dele continuava.

- ...claro que sei quem sou e o que estou fazendo aqui... Tenho a missão de levar conhecimento aos asininos...

- Aos burros, o senhor quer dizer...

- Muito bem! Vejo que conhece a semântica... Pois o que eu disse é que a dúvida que corrói todo o ser humano é mais comum do que se pensa...

- Como assim?

- Já lhe disse... Ninguém sabe realmente qual o real sentido da vida e o que faz aqui...

- Eu acho que o sentido da vida é vivê-la de acordo a sua condição, pelo menos é o que Deus quer...

- Deus? Quem é Deus?

- É o manda-chuva daqui... Sabe muito mais do que o senhor.

Fiquei surpreso com a minha resposta, não era, nem nunca fui religioso. Mas naquele momento senti uma força estranha rondando nosso espaço e participando da nossa conversa.

- Ora, meu caro senhor, toma-me como uma gente simples que inventa entidades para justificar as coisas... Não, não senhor... Pergunto-lhe novamente, quem é Deus? O que ele faz? Onde ele mora?...(Risos) Certa vez, um cidadão chamado Cebes disse algo que impressionou muito a Sócrates e que Platão escreveu, ele disse: "... o que não me parece certo é que os deuses cuidem dos homens e que os homens sejam posse dos deuses...", então? O que achas, senhor?

Como estava surpreso com aquela multidão de palavras que se aglomerava entre nós, fiquei um pouco perdido e não consegui responder de imediato ao professor. Ele riu e apresentou-se. Disse que tinha gostado de mim e que conversaríamos em outra oportunidade. Virou o copo goela abaixo, arrotou e antes de ir embora, mandou que eu fosse à biblioteca ver Fernando Pessoa. Naquele dia uma agonia renitente tomou conta de mim. Nunca havia sentido aquela ebulição que me assaltava borbulhante. Nunca pensei em conversar essas coisas com ninguém. O sentido da vida? O que eu estou fazendo aqui? Agora já velho essas coisas aparecem. De qualquer forma, gostei. O professor despertou isso em mim. E o tal do Fernando Pessoa?

No dia seguinte acordei com as cargas faiscando. Levantei mais cedo do que de costume. Tomei um cafezinho, acendi o cigarro e rumei para a biblioteca. Procurei e achei uma antologia poética do tal Fernando Pessoa. Era a primeira vez em que eu abria um livro literário. Para mim literatura continuava sendo coisa de viado. Mas ao fazer a leitura, senti uma coisa diferente. Entendi e percebi o despeito que havia sentido do professor em dado momento da nossa conversa. Gostei do tal Fernando Pessoa. Entreti-me a ler. Fiquei sabendo que o tal do Fernando se dividia em quatro, pelo menos. Achei esquisito, mas me lembrei de uma mulher que tive. Ela costumava dizer que se virava em quatro, cinco para me agradar. A Rita Reiwolf. Isso mesmo, uma homenagem a uma das divas do cinema, entretanto me parece que a mãe dela exagerou no nome. Passei todo o dia na biblioteca, apesar de enferrujado com a idade, não havia perdido o prazer em conhecer coisas diferente. Por instantes entristeci, quanto tempo joguei fora da minha vida. Naquele mesmo dia li toda a antologia e fiquei tinindo para o professor. Até decorei alguns versos. Contudo quando cheguei na padaria ele não apareceu. Fiz o mesmo no outro dia e nada do professor Rogério. No entanto, lá estava ele sentado em sua mesa do canto no terceiro dia. Eis que me aproximei.

- Aprendi que Fernando Pessoa são quatro...

- É verdade, quatro diferentes em um só...

- Às vezes a gente se sente assim...

- Dá uma sensação de multiplicidade...São os sentimentos que afloram...

- Como assim?

- Ora, às vezes o senhor sente raiva ou ódio daquela pessoa, deseja-lhe que um caminhão passe por cima dela, entretanto mais tarde ao se lembrar do seu desejo de outrora o senhor se desconhece "Meu Deus! Que coisa feia desejar aquilo para aquele homem"... Eu acho que é assim...

- Sem dúvida... É assim mesmo... Tive uma mulher que desejei dar cabo dela, era muito encrenqueira, também era muito jovem e não conhecia as mulheres... Hoje eu sei que todas são assim...

- Encrenqueiras?

- Sim.

O professor me olhou com um olhar perdido no espaço. Depois como se voltasse de um pensamento longínquo, olhou-me envergonhado de soslaio que não entendi direito. Isso deveria ter me chamado à atenção de imediato, talvez se fosse outra pessoa. Algum outro aposentado que ficava comigo jogando conversa fora, eu teria notado. Seu Antonio, por exemplo. Uma vez seo Antonio ficou muito bravo com um taxista que fazia ponto em frente à padaria. O velho ficou mudo e enfumaçado, eu logo percebi e perguntei o que havia de errado. Ele me contou que deu vontade de dar um murro no tal taxista. Eu insisti. Resultado; o tal disse para ele e para quem estava na padaria ouvir que ele, seu Antonio, estava saindo mais cedo porque ia lavar as calçolas da mulher. Isso não é coisa que se diga a um velho daquele. Portanto logo percebi o desconforto no velho Antonio. Mas no professor não. Ele ficou meio pensativo, mas nada que eu pudesse supor. Eu também estava entusiasmado com a literatura e Fernando Pessoa que deitei falação sobre o português poeta. Nada como a própria vida para nos dar uma lição. Nunca imaginei que eu fosse sentar num bar para discutir literatura. Boiolagem que nada. A literatura é um refresco para a alma. E ali estava o professor a me passar informações. Só que num dado momento, propositalmente e com muita astúcia do professor, a conversa pegou novo atalho.

- Há um outro poeta que também me fascina...

- Quem é?

- Vinícius de Moraes.

- Aaah, esse eu conheço! É muito bom, o cara era romântico, teve muita mulher, parece comigo...

- Pois é, os poemas de amor são fantásticos...Mas às vezes dá dor de cotovelo...

- Dor de cotovelo? Não, nada disso, aquelas músicas do Vinícius são para ser ouvidas com uma mulher ao lado só isso...

- Então...

- Então, o que?

- E quem não tem mulher... Ou tem e não tem ao mesmo tempo...Ou que tem a mulher que passa do outro lado da rua e deseja-a, esperando-a passar todos os dias...

- Tem razão, eu já fui assim, mas hoje as mulheres são tão fáceis... Até eu nessa idade,aposentado se quiser consigo um mulherão...

- Pagando.

- Não... Tem um monte de mulher carente aí, professor, da mesma forma que o número de cafajeste e de boiola aumentaram...

- Mesmo? O senhor está esquecendo de uma classe que não é nem cafajeste nem... Nem boiola, como o senhor diz.

- Ah é? E qual é?

- Os tímidos e sensíveis.

- Sensíveis?

Conversamos sobre mulher até a padaria fechar. Naquele dia senti o professor mais poético e pensativo do que de costume. Achei que estava apaixonado, entretanto nada me disse, nem me falou sobre a suposta criatura apaixonante. Fui para casa e voltei a ler Alberto Caeiro e seu "Guardador de Rebanhos". Ao longo da minha vida lia somente as páginas policial, de esportes e falecimentos do jornal. De repente lembrei-me de Vinícius de Moraes e "Um grande amor". Lembrei-me do rosto lívido e do olhar perdido do professor Rogério, algo de estranho havia acontecido que não tinha me dado conta. E resolvi observar. Contudo soube no outro dia que o professor postava-se às seis e meia da manhã em ponto, todos os dias na mesma mesa do canto com o olhar duro e fixo para o fim da rua. Ficava inquieto, muxoxando e olhando o relógio.

Como sou o autor, tenho direito de meter o bedelho na história. Não presunçosamente, mas para clarear e o fato tornar-se límpido a você, caro leitor. Também não estou menosprezando a capacidade do senhor leitor em interpretar, entretanto gostaria somente de dar uma dica. A relação faustiana do professor e do aposentado foi tornando-se uma válvula de escape aos dois. Não que o professor tivesse feito pacto demoníaco, ou que o aposentado fosse o diabo a quatro. Contudo Mefistófeles na pele do aposentado agia intuitivamente exarcebando o raciocínio lógico e sincrônico ao mesmo tempo em que saboreava o prazer de emocionar-se com o rebanho de Caeiro. Já o Fausto contido no professor Rogério, enfastiado e enfadado da algaravia acadêmica, ressurgiria da sua razão pensativa e experimentaria a sensação emotiva do prazer mundano. Uma verdadeira enantiodromia. Um pouco arrevesado, entretanto são opostos que se identificaram completando-se um ao outro.

O rio corre para o mar como o homem corre para os braços da mulher amada. O amor é um sentimento nobre, porém igual a todos os outros. Confuso e claudicante.

Dois ou três meses se passaram e continuamos nossa conversa intelectual eu e o professor Rogério. Tentei várias vezes acordar cedo e ir espioná-lo as seis e meia da manhã. Mas na minha idade o corpo reclama cama e o mais cedo que consegui levantar foi às sete e quinze. Corri desesperadamente, mas quando cheguei lá os rapazes que trabalham na padaria me disseram que ele já havia ido. Um deles, o menino que corta o queijo, que também tira dúvidas escolares com o professor, foi quem me alertou para esse pormenor. Combinamos de nós dois ficarmos de olho, contudo eu não conseguia acordar e ele, atarantado pelo movimento da manhã na padaria, não poderia ficar somente espreitando a vida do professor. Mas eu gostaria de que ficasse registrado nesse meu fim de vida que esse meu encontro com o professor estava resgatando meu intelecto perdido. Sentia-me como seu velho pupilo, ou pupilo velho, como queiram. Era inacreditável que com uma simples leitura de um escritor tão profundo, fizesse com que a porta da minha percepção se abrisse e aquele frisson que me consumia fosse tão prazeroso como uma gozada em uma vagina desejada. Em poucos dias o professor me enlevou a uma catarse que certamente mesmo depois de morto eu não esqueceria.

Percebi que estava trilhando o mesmo caminho do professor numa manhã despretensiosa como todas da minha vida. Estava com seu Antonio e outros aposentados a conversar sobre as jogadas de Didi, o folha seca, de Zizinho que não foi melhor do que Pelé, como dizem, e do próprio rei, quando de repente surgiu a dona Sônia. Como já disse sempre tive excelentes relacionamentos com a mulherada. Mentindo, conversando, fazendo-as rir, galante e brejeiro. Dona Sônia era uma estupidez de mulher, torneada, morena, cabelos castanhos, tipo channel e um olhar arrebatador. Tinha as carnes duras, seios redondos e duros, com o bico grosso e arrebitado. Por instantes lembrei-me de quando era viril, agora não sou mais. No entanto, enquanto ela se aproximava meu coração acelerava, minha saliva secou e comecei a engolir em seco. Como iria satisfazer aquela mulher de mil talheres? Se eu montasse era capaz de morrer em cima dela, mas a minha presunção arrefeceu quando ela dirigiu-se a mim e me chamou com aquela voz de travesseiro.

- O senhor estará com o professor hoje?

Digo-lhes com a pureza da alma, minha perna tremia e meu coração disparou, pensei que teria um AVC. A mulher era espetacularmente linda, nunca havia reparado tão de perto como naquela manhã despretensiosa. Não sei o que respondi, lembro-me que ela riu, um pouco assustada e foi embora. Demorei uns cinco minutos para aterrisar. Sim, porque ela não falava com ninguém, todos a olhavam, soltavam piadas, mas ela seguia seu caminho e não dava trela. Subitamente ela dirigi-se a mim e solta aquela voz sussurrante, hipnotizadora, melíflua e untuosa. Sorri e vai embora. Fiquei realmente extasiado e minha virilidade deu sinais de restabelecimento.

Com uma ansiedade e uma angústia terrível, esperei toda à tarde pelo professor Rogério. Agora sabia o motivo daqueles olhos marejados há alguns dias quando conversávamos sobre mulheres. Mas ele não me disse nada, perguntou diversas vezes como eu fazia para se aproximar de uma mulher que eu não conhecia, que eu via passar na rua. Então era isso, ou melhor, era a dona Sônia. O danado sabe escolher. Entretanto uma vez ele me falou de Shakespeare, esse eu conheço, ou melhor, ouço sempre falarem dele. Falou de Romeu e Julieta, do amor proibido dos dois jovens, mas isso não tem nada haver com o professor Rogério e a dona Sônia. Pelo que eu saiba Romeu e Julieta não chegaram às vias de fato sexual por causa das famílias inimigas. Professor Rogério e dona Sônia, pelo que eu sei, malmente se conhecem, aliás, ela deixou perceber uma queda pelo docente. Bem, coloquei na cabeça que iria aproximar os dois. Quando já estava quase desistindo de esperar o professor, eis que ele chega meio esbaforido.

- Onde andaste, homem? Estou aqui desde cedo te esperando...

- O senhor não tem o que fazer não?

- Não, não tenho nada o que fazer, sou aposentado e fico aqui todos os dias, o dia todo a espionar a vida alheia... Mas que azedume para um cidadão que lhe traz boas novas...

- Boas novas? Que boas novas?

- A dona Sônia, seu sonho de consumo sexual...

Não esperava a reação do professor. O homem ficou vermelho, arregalou os olhos e começou uma suadeira dos diabos.

- Quem?

- Ora quem! A dona Sônia...Ela perguntou por você...

Ele me olhou descrente e soltou.

- É mentira!

- Como mentira? Todos viram quando ela deliciosamente dirigiu-se ao nosso grupo e perguntou por você... Eu pensei que ia ter um troço, aquela mulher é demais, pensei que ela estava me dando trela, gostoso como sempre fui... Achei que era comigo que ela... Sei lá...

- E o que você disse a ela sobre mim?

- Nem sei... Quase tive um troço, é verdade, ela de perto parece ser mais bonita ainda, uma deusa...

Novamente percebi os olhos marejados do professor Rogério, dessa vez não deixei passar e perguntei-lhe de açoite.

- O que há professor? Toda vez que falamos de mulheres, ou melhor, de dona Sônia precisamente, o senhor muda de uma forma para outra diversas vezes... Primeiro os seus olhos brilham, como se estivesse enxergando um baú de tesouro, a felicidade dos deuses... E depois, logo em seguida seu rosto adquiri uma forma triste, magoada, não dá para entender...

- Nada, nada, nada de importante... É que eu tenho muitas lembranças, muitas cenas veem à minha cabeça, às vezes estou escrevendo um texto novo, uma crônica e as cenas aparecem do nada e eu mesmo me emociono...

- É assim que os escritores são? Não parece...

- Por que não parece? Todo escritor tem que se emocionar e guardar aquele momento, fotografar aquilo pelo qual ele viu ou passou para depois escrever...

- Não parece, professor... Outro dia assisti na televisão a entrevista de um cabra desse aí...

- Então...?

- O cara era muito metido, parecia que só ele sabia das coisas... Eu sei, aliás, estou aprendendo com o senhor que os escritores tem infinitos pontos de vista, sobre um mesmo assunto, mas eu acho que não é necessário aquele ar pedante que vi na televisão...

- O senhor tem razão, alguns tem essa necessidade de tornar-se mito, não sei pra que...

- Mas então me diga, o que houve com o seu pensamento quando falei que dona Sônia perguntou pelo senhor?

Sinceramente amigo às vezes eu mesmo me desconheço falando assim. Acho que a intelectualidade do professor é contagiosa. Nunca soube que tivesse esse vocabulário todo. Contudo ele não se abriu definitivamente, senti, entretanto que isso seria questão de tempo. Pois ele mesmo estava sufocado, algo o angustiava seriamente, além do fato de ter aquele monumento feminino às suas barbas.

- Nada que o senhor possa resolver, a vida ao mesmo tempo em que é generosa e sedutora, é também misteriosa, complicada e cruel...

- O que isso tem haver com a mulherada, professor?

- Nada, nada em especial, as mulheres são seres humanos também e dessa forma pensam diferentes como cada um de nós...

- O senhor me perdoe, mas lhe direi uma coisa que vi e aprendi durante sete décadas de existência...(Pausa reflexiva e riso irônico) Toda mulher é igual professor, algumas mais, outras menos, mas todas, todas elas são problemáticas, nervosas ao extremo e algumas são altamente escandalosas...(Pausa e um balanço de cabeça negativo)... Portanto não sei se vale a pena lhe dizer isso, mas, não fique devorando dona Sônia apenas no olhar ou no pensamento, chegue junto com pegada, ela vai gostar, toda mulher gosta...

O professor me olhou pensativo, em instantes seus olhos começaram a brilhar novamente, esboçou um leve sorriso e me abraçou. Pediu uma cerveja para ele e um refrigerante para mim e fez questão de brindar comigo. Desculpou-se do azedume que lhe acompanhava, encheu-se de coragem e me contou uma história escabrosa.

- Meu velho, meu velho... Nos conhecemos há uns poucos meses e me parece que toda a sua experiência passou para mim... Sou muito grato com as palavras que o senhor dispensa...

- Mas o professor aqui é o senhor, e sou eu que tenho aprendido... Para mim, antes de conhecê-lo, literatura era coisa de mulher e de viado...

O professor riu e continuou.

- Pois se não fosse a literatura na minha vida eu estava perdido...(Pausa reflexiva e suspiro magoado, seguido de um muxoxo) Vou lhe contar uma breve história... Hoje eu tenho quarenta e seis anos, sou um homem bem sucedido na minha profissão, sou requisitado pelos grandes faculdades de Letras do estado, ensino nas quatro maiores, sou só um pouco frustrado porque não consegui ainda lançar um livro, gostaria de tornar-me escritor... Mas é muito difícil e demorado... Para ser escritor o indivíduo tem que se ocupar somente de ler e escrever, além de observar é claro, então entre uma coisa e outra, optei pelo retorno financeiro imediato... Mas há vinte e sete anos eu não era assim, claro que não... Era um adolescente em meu segundo ano de faculdade, estudando Letras... Comecei então a dar aulas com turmas de quinta série a oitava num colégio religioso que apesar de ser dirigido por padres, só estudavam meninas, achei estranho aquilo... Minha mãe conseguiu esse emprego para mim, ela era beata devota, falou com o padre da paróquia e lá estava eu dando aulas num convento feminino... Então tive as mesmas alunas durante sete anos seguidos, os quatro anos de quinta a oitava e mais três do segundo grau... Quando essa turma chegou ao primeiro ano do segundo grau, resolvi fazer leituras mais clássicas, já que fora eu mesmo quem preparara as meninas e sabia do potencial literário de cada uma delas... Comecei então com Shakespeare, lemos a comédia "Muito barulho por nada" e três tragédias "Otelo", "Hamlet" e "Romeu e Julieta..." Fiz isso para despertar propositalmente o pensamento crítico e para desnudar o olhar cerimonioso que os religiosos da escola submetiam as meninas em relação à vida no geral... As leituras de Shakespeare foram aprovadas pelos padres e isso me entusiasmou muito... Contudo não me dei conta de que estava indo muito além, as respostas não poderiam ser melhores do que as que estava obtendo e, note o senhor a minha falta de maturidade e o paradoxo ao qual eu mesmo criei, sem perceber o verdadeiro olhar de cada uma delas, continuei fazendo leituras que os padres consideravam abomináveis para os bons costumes e a falsa moral... Em seguida li com as meninas "O nome da Rosa", um romance que aborda que nem sempre o demônio é descrente de Deus, aí começaram os problemas, quando estávamos quase no fim do livro dois padres souberam dessa leitura e me repreenderam, mas consegui terminar a leitura com a cumplicidade das meninas, lemos toda a obra de Machado de Assis e deveria ter parado por aí...Mas junto com as duas últimas leituras, toda a emoção das meninas começou a emergir e me deparei com um fato que não consegui administrar nem resolver pela minha pouca idade e imaturidade... Comecei a ter um relacionamento com uma das alunas, me apaixonei de verdade, ela era muito, mas muito linda e delicada... Não contava que poderia haver outras paixões encubadas, na época não me passava pela cabeça que aluna se apaixona fácil por professor e não diz, não revela... Resultado mais da metade da sala estava apaixonada por mim. Duas meninas chegaram ao extremo quando souberam do meu relacionamento com a qual eu estava apaixonado e começaram a fazer chantagem, foi uma fase terrível, me vi totalmente encurralado... Mas aconteceu uma coisa absurda e inusitada, somente em filmes, romances ou em contos ocorrem coisas desse tipo.

- Mas o que houve homem de Deus?

- Nós, eu e a garota que namorava, estávamos tendo uma derradeira conversa num espécie de porão da escola, poucas pessoas ou quase nenhuma ia até ali, só algum criado quando cumpria ordens de algum padre...Eu tentava me afastar, os boatos estavam cada vez mais próximos aos padres diretores, algumas meninas estavam revoltadas comigo por se sentirem rejeitadas e com ela, a garota, por se sentirem traídas... Tentava dissuadi-la, pelo menos naquele momento, para garantir meu emprego e até minha carreira... Queria que ela entendesse, mas o senhor sabe como é cabeça de adolescente, é uma teimosia renitente e ela não aceitava... De repente num dado momento flagramos e fomos flagrados...

- Mas o que houve, homem? O que houve?

- Lá estavam, dois padres e uma menina amordaçada... Eles estavam bolinando a menina que já estava nua da cintura para baixo... Eu e minha garota ficamos estarrecidos e os padres quando nos viram, transformaram-se em verdadeiros demônios, começaram a recitar um dialeto estranho e em seguida me colocaram para fora junto com a minha namorada, aquilo me deixou angustiado e fiquei pensando na garota que estava sendo abusada, em seguida aconteceu o que nunca pude imaginar...(reflexão e lágrimas nos olhos).

- O que foi homem? O que foi homem?

- Cerca de dois ou três dias depois fui demitido e tive que prestar depoimento com um delegado que apareceu no convento... Fui acusado de estupro pelas duas meninas, a minha namorada e a garota que estava com os padres pedófilos...

- Isso é um absurdo, isso é uma estupidez... Ta vendo? Ta vendo? Sempre disse que padre não vale nada, sempre disse que padre não vale nada...

- Me acusaram de corromper toda a turma com o romance "O crime do padre Amaro"... Até hoje não entendi...Aliás, entendi, soube que as famílias, tanto a da minha namorada e a da outra garota tinham "rabo preso" com os padres, problemas com a justiça, a minha namorada estudava de bolsa naquele colégio, os pais trabalhavam para os padres dentro do colégio e a outra garota, pela minha suspeita já havia sido vendida àqueles dois padres, ouvi uma conversa que os pais dessa garota haviam sumido, vítimas da ditadura, e ela, coitada, estava sozinha no mundo...

- Mais ninguém soube disso? Os jornais, a televisão...

- Que nada, estávamos na década de setenta, alta ditadura, havia alguns padres que colaboravam com os militares e tudo era abafado... O senhor deve saber disso muito bem, até melhor do que eu...

- É verdade... Mas, mas e o que tudo isso tem haver com dona Sônia?

- Porque era ela a minha namorada... Eu não sabia que ela era filha da moça da recepção e do rapaz que fazia serviços gerais, acho que foi obrigada a testemunhar contra mim...

- Naturalmente, professor, naturalmente... Mas que história horripilante! E agora? Ela está de novo no seu caminho...

- Eu não gostaria de tê-la reencontrado, levei esses anos todos trabalhando isso na minha cabeça, fui perseguido durante todo aquele tempo covarde, pensava muito nela, fiquei revoltado e furioso até descobri o que houvera realmente, isso só aconteceu depois de quinze anos, até pouco tempo chorava todas as noites e só me conformei aos poucos... Só vim ter outra mulher depois que descobri tudo e mesmo assim com problemas de ereção...

Toda aquela mixórdia me provocou ânsia de vomito. Se já não via com bons olhos todo esse povo que prega a religiosidade, julgando e dando penitências encobertos na palavra de Deus, agora eu estava realmente muito revoltado. Lembrei-me de que certa vez conversávamos sobre qualquer coisa de hipocrisia, não sei ao certo qual era o tema. Mas o professor disse-me algo de um tal Dante Alighieri. Esse italiano entendia de inferno como ninguém e segundo ele os hipócritas são condenados a vestir umas túnicas de chumbo dourado, carregarão esse fardo pelas suas palavras doces que tentam esconder a vilania da mentira. Todos eles deveriam ser penalizados pelo rei Minos, lá no segundo ciclo do inferno, os condenados da carne.

No dia seguinte esperava agora por dona Sônia, teria que saber algo dela. O que ela queria com o professor, na verdade não acreditava que quisesse voltar a magoá-lo. Tinha a impressão de que os dois ainda se gostavam e precisavam de um empurrãozinho. Era o mínimo que deveria fazer por um amigo que em tão pouco tempo fez meu pensamento, até então adormecido, emergir e me conscientizar, me situar na vida através da literatura. Quando me lembro do tempo que perdi envergonho-me. E ela despontava no fim da rua, linda, maravilhosa e perfumada. Deixei que se aproximasse mais para abordar. Ela me olhava de um jeito estranho, desconfiado. Esbocei um sorriso e percebi que a tensão quebrara-se...

- A senhora me perguntou pelo professor ontem...

Ainda meio sem jeito e desconfiada, respondeu.

- Perguntei...Vejo ele sempre com o senhor... Mesmo ele se escondendo, eu sei que ele vem me ver todos os dias... Decidi falar com ele.

- Só falar, dona Sônia?

- Sim, só falar, deveria fazer algo mais?

- Essa é uma pergunta que a senhora deve fazer para a senhora mesma...

- Talvez devesse sentar e conversar...

- Só isso?

- Só...

- Dona Sônia o tempo não se guarda, uma vez ele me contou uma história de um retrato... Um homem que guardava seu envelhecimento num retrato, não aceitava o tempo e suas cicatrizes... Contudo teve um fim trágico... Felizmente isso é só uma história de um escritor, uma história que ensina a nos aceitar de forma mais fácil... Pode parecer estranho, mas só estou falando nisso porque não gostaria que toda a sua graça se esvaísse quando viesse a ter o professor novamente...

Já disse que certas frases que falo desde que conheço e converso com o professor me espantam, não sei de onde tiro um vocabulário tão rico. Mas depois que eu falei isso ela entregou os pontos...

- Mas que atrevido o senhor é...

- Não senhora...

- Andou conversando com ele... Ele contou tudo (muito aborrecida e envergonhada)... Contou, não contou?

- Só contou depois de muita insistência minha...

- Pois saiba o senhor e ele que eu, que eu (chorando amiúde, lamuriando-se) que eu... Que eu ainda amo ele muito, sabia, amo muito sabia?

Pronto tudo resolvido, nada sobrevive no caminho do verdadeiro amor. Digo isso, apesar de ter amado várias mulheres, mas nunca senti aquele frisson bombeando o coração como sentem os verdadeiros amantes. Combinei com dona Sônia que promoveria o reencontro dos dois. Não sei como eu persuadiria o professor, mas sentia que naquele momento eu fui designado pelos deuses e orixás para ser Hermes, ou Exu, e trazer até aquele casal o Deus Eros. Quando mais novo aprendi a convencer os outros garotos da minha idade a fazer o que era interessante para mim, possuía uma retórica poderosa e só fiz uso para futilidades. Tinha agora a chance de provar a mim mesmo que continuava bom de prosa e o que é mais interessante, estava munido de boas informações que o próprio professor me dera. Pedi dois dias a dona Sônia, prometi a ela que levaria o professor para uma pizzaria que havia ali perto. Era bem discreta e não ficariam expostos como na padaria em que o professor e eu costumávamos a ficar. Comecei a pensar como levar o professor até lá. De súbito lembrei-me de uma coisa que o professor havia me falado há tempos. Na época eu não fazia ideia de que a pessoa que ele tanto falava era dona Sônia e fui à pizzaria combinar com o dono o que fazer. E, como combinado, dois dias depois eu convenci o professor de ir até a pizzaria comigo.

- Mas o que o senhor quer que eu vá fazer na pizzaria? Nem de pizza eu gosto...

- Vamos lá... Eu estava conversando com o dono e ele me disse uma coisa que o senhor vai gostar de ouvir...

- O que eu vou gostar de ouvir? Não, não vou... Quero tomar minha cerveja em paz... O senhor não é mole viu... Em alguns meses fez me emocionar como há muito não sentia...

- Ora deixe de rabugice, homem, até parece que quem tem setenta anos aqui é você... Deixe de conversa e me acompanhe...

- Só vou se me disser o que é...

- Está bem... O dono daquela pizzaria também é fã de Vinícius de Moraes, tem todos os cd's. É isso, só queria fazer uma surpresa...

- Odeio surpresas!

- Vamos, você mata a saudade daquela pessoa, ouvindo "Para viver um grande amor", não era essa música que vocês ouviam e o senhor recitava para ela?

- Era sim, era essa música e outra chamada "Eu sei que vou te amar".

De alguma forma, produzindo esse reencontro eu senti que essa era a minha missão na vida. Não sei dizer ao certo, ou ser prático, mas tinha certeza que fui ao mundo só para unir duas pessoas que sempre se amaram e foram separadas pela estupidez do ser humano. Foi a cena mais emocionante que presenciei em toda a minha existência. A dona Sônia estava mais do que linda, estava deslumbrante e só apareceu na sala principal da pizzaria quando Vinícius de Moraes recitava apaixonadamente "Eu sei que vou te amar". O professor Rogério não segurou as lágrimas e correu desesperado para os braços da amada. Hoje, daqui do céu, eu pude lhes contar essa história. Sou muito feliz, trabalho no departamento das curas de amor, é uma sala no mesmo corredor do escritório de Santo Antonio...

(Julho 2005)
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