Meados de novembro em Rio Branco, e eu na Universidade... Trabalhando (ou fingindo
estar) em plena greve geral... Lugar que me faz ter muitos lugares e muitas
trajetórias próximas e distantes, no decorrer de cada trajetória...
Momento pós-seca, céu azul e um pouquinho a mais de vida nas árvores
que começam a florir... Junto com as borboletas...
Saindo do tucumã, uma chuva de homens e mulheres vendendo sapatos roupas
e muitas verduras que se fazem por fazer-se no fazer diário... E quantos
se fazem e refazem no dia a dia de cada dia vendendo cada coisinha daquela feirinha...
Que chuva de vidas, cada pingo importante em cada fonte...
Foi quando ocorreu outra chuva: milhares de borboletas por toda a cidade, dando
abraços de cor e de uma realidade na qual nunca tinha visto... Essa chuva
incomodou muita gente e assassinou muitas borboletas antes de sua morte... Porém
era um momento em que as mudanças climáticas ocorridas por conta
de várias variáveis, acarretaram na migração desses
pequenos grandes seres...
Migraram para não morrerem, e para fazerem-se novamente, voando a caminho
de um lugar onde se viva melhor... Perfazendo-se em cada forma de revolução
e de pingos de chuva... Tipos de borboletas...
***
Meados de Dezembro... Mais específico 30 de Dezembro. Antes faltavam
doze meses. Chove em Sena Madureira, e chove tanto que pensar é bobagem...
Ou como diria uma pessoa chamada Pessoa: Viver é não pensar...
Chove e a chuva me faz lembrar que da troca da solidão e do sonho para
a realidade, acabamos por viver a realidade do objeto brusco e frio, como aqueles
brinquedos dados por uma ausência, no qual tomamos (muitas vezes) por
singelo prazer de uma pobre criança...
No entanto, viro à minha direita e vejo um garoto e uma garota, fazendo
acrobacias num pequeno elástico. Lembro a brincadeira que não
precisa de nenhum duro brinquedo em especial... Mas um simples elástico
roubado da mãe, que perde este pedaço em detrimento de uma roupa
a ser costurada...
Em geral, é necessário três a quatro pessoas. Amarra um
aponta na extremidade de outra ponta.
A brincadeira consiste em, primeiramente, "vestir" o elástico
e conquanto maior número de acrobacias corretas, mais o elástico
sobe no corpo da pessoa. Se errar, as duas pessoas que estão "segurando"
o elástico começam a brincar e assim sucessivamente. Nesse jogo,
nessa chuva, só se encontravam uma menina e um menino. Enquanto um brincava,
outro segurava o brinquedo e o poste era o outro "suporte".
A chuva estava cada vez mais forte. E os saltos do garoto eram tão competentes
e tão diferentes, que quando seus pés chegavam ao chão
perdiam-se quaisquer sentidos da palavra fragilidade...
No meu tempo, essa brincadeira era um tanto incomum para meninos. Não
sei o porquê, mas acabava por se tornar parte das ideologias psicológico-sociais
que fazem parte deste mundo desigual... Mas era incrível como esse menino,
mais novo que sua companheira na brincadeira, fazia com tanta maestria seus
pulos... Porém a menina não se deixava abalar, tentando com seu
sorriso entender essa fragilidade...
E eles não estavam interessados em saber se era brincadeira de menina
ou d e menino... Nem quem ganha ou perde. Queriam pular, usando diversas formas
de conhecer: conhecer o corpo e sua capacidade corporal de não ser só
um corpo...
Uma chuva de fantasia, numa realidade esquecida por nós. Essa chuva ensina...
No dia seguinte. Quem diria, final de ano e mais outro com muitos desencontros...
Afinal, para quê torna-lo encontro? Vamos saciar nossa fonte de curiosidade
e desejo, na negação, que poderia ser a dúvida... Penso
eu neste ultimo dia...
Meia-noite e uma chuva. Uma chuva de fogos de artifício que indicam,
para somente os que moram perto da praça 25 de Setembro (?) que puderam
assistir, mais um ano. Ah! E os que também saíram de suas casas
para festejar o ano novo assistindo a Missa Campal do Padre Paulino...
Fogos que alegraram e deram muito medo aos que nunca haviam visto algo de tão
bestificante. Uma cascata enorme iluminou parte da cidade e me fez pensar...
Mais um ano se passa... O que fazer... Por que pensar em fazer?
Essa chuva fina e rasteira é uma chuva que me entristece, e me alegra...
Essa chuva é a chuva da incongruência da vida feita por ela mesma...
Essa chuva se chama existir...
E, a cada tempo ritualístico que se passa, penso que incompetência
é pensar na existência...
Chover pensar, pensar chover... Chuva de pensamentos que interagem a cada dia
em que pensamos que arbitrariamente vivemos...
***
Meados de mil novecentos e oitenta nove a noventa. Duas crianças brincam
na sua casa, porém o sono é maior e a cama mais macia... Ao acordar,
duas crianças, uma de três, outra de quatro anos, vão, pela
primeira vez, tomar a iniciativa de sair da casa para o quintal. Motivo? Está
chovendo...
A mãe e o pai, depois de um dia de descanso nos milhares de outros dias
em labor, estão dormindo. As duas crianças, duas meninas mais
especificadamente, molham pela primeira vez, seus cabelos virgens da água
vinda do céu... Criam mais um passo para a liberdade sustentada desde
sua formação. As duas meninas começam então a rir...
No céu a constante obra de um acaso desconhecido para elas. A vida e
o temor da palavra vinda do céu... Por quê? A chuva perdendo seu
encanto pelo enigmático poder da culpa. Mas isso passou logo, e as duas
meninas continuaram a brincar... Não obstante, a vinda de um ser maior
que elas está chegando, e alertando o perigo que pode causar uma chuva,
vai em direção à casa, para conversar com os pais das meninas.
Chuva de coragem. Acabando por demasiadamente tentar, choveu ações...
Assim, germinou, mais uma vez, a vão terrestre espera na vida dessas
duas meninas com o passar do tempo e de várias outras chuvas... Elas,
num dia chuvoso, muito tempo depois, olham para o céu, que conta com
carregadas nuvens e pingos de água pelo olho de cada uma, e procuram
aquela coragem tão desafiadora existente no mais profundo da existência.
Mas a existência não é que elas querem, elas querem entender
o porquê...
Tentando mais uma vez tentar buscar o que não se busca, a chuva já
não é mais a mesma. A dor de ter de encontrar um ser estranho
ao mundo destas duas meninas já foi enraizado em seu desenraizamento
constante. A busca por uma chuva grossa e só encontrar a rala chuva que
nos tortura de frio e umidade, nos deixando extremamente desconfortáveis...
Mas essa chuva faz uma coisa talvez fosse impossível em qualquer outra
ocasião: a lembrança. Não como forma de prisão ou
de medo da mesma, mas como doce e tirana, pois não se faz mais chuvas
como antigamente.
Quando crescem, as duas meninas viram uma só, e a partir daí toda
sua vida será em separar-se uma da outra, sem comprometer a importância
de serem duas...
Fernando Sabino, escritor brasileiro, na sua infância buscou esse grito
de liberdade e encontrou em um momento que transformou por todo a sua vida:
num dia de chuva. Mas uma chuva viva, móvel, que não é
necessariamente de água, mas de transformação de uma inocência
coragem e profundo arrependimento:
Como se brotassem do céu, bandos e bandos de passarinhos de vários tamanhos e mil cores diferentes, vindos de todos os lados, se agrupavam no ar, em alegre revoada, até formar um verdadeiro enxame de asas em formação cerrada.e vieram todos para o nosso lado, voando em círculos cada vez menores e mais baixos, em meio a uma sinfonia de cantos, chilreios e trinados, centralizando-se em cima de nossas cabeças (...) Rodavam várias vezes e depois o círculo se desfez, e seguiram todos em linha reta, afastando-se como uma nuvem multicolor até desaparecer em direção ao infinito.
Em direção ao infinito também, as duas meninas olharam
para a chuva. E logo após sua mãe e seu pai pediram para voltar
para casa, pois já era tarde e precisavam tomar banho...
E nunca mais viram aquele céu chuvoso juntas, separadas...