A Garganta da Serpente
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Tempo Esgotado (Cartão de Natal)

(Cármen Rocha)

Foi naquele ambiente alegre de preparação de festa que eles receberam aquele cartão de Natal. E devido a isso que ele, o cartão, tomou o mesmo rumo que os outros - aninhados em uma linda cesta enfeitada com grãos de trigo e lindos laçarotes de fitas vermelha e verde, cores predominantes em toda a sala - cores do Natal.

A cestinha com os cartões estava em lugar de destaque na linda sala ornamentada: presépio, árvore, presentes e fitas e flores; bicos de papagaio espalhados pelas salas todas.

E foi por essa consideração que o cartão não foi lido de imediato.

No meio da festa, após a ceia e após os presentes serem abertos,Tarsila, a anfitriã, rodeada de pais e filhos, tios, netos e avós, quis ela mesma ir lendo um a um todos os cartões recebidos: "Um Feliz Natal e próspero Ano Novo...", "Que esse Natal..."

Ia colocando-os novamente na cestinha. Mas àquele cartão teve que dar maior importância e leu-o baixo, disfarçando, logo que percebeu seu conteúdo: "Feliz Natal para você, querida, seu marido e filhos. Com saudades, tia Mirinha" - Que tia Mirinha é essa?- pensou e tentou conferir o endereço virando o cartão rapidamente.

Não conseguindo e para não ter que ler seus dizeres alto, colocou-o disfarçadamente por baixo dos outros, e prosseguiu lendo os outros cartões: "Um Bom Natal repleto de..."

E a festa continuou alegremente, madrugada afora, não fosse aquele simples senão. Tarsila e Luís não tinham absolutamente nenhuma tia Mirinha! Muito menos com saudades! E só depois de recolhidos, já na cama é que puderam conversar.

- Francamente, estou preocupada.

- Mande-o de volta, ora bolas! Tá na cara que é um engano!

- Está bem, querido. Amanhã providencio.

No outro dia, o marido sai apressado. Ela despacha as crianças para a escola e então, curiosamente, vai ler novamente o misterioso cartão e descobrir o endereço. Porém não havia mesmo nenhum. Fica intrigada, mas resolve esquecer. Afinal, não há mal nenhum nisso. Somente um simples cartão de Natal, e um engano, claro - pelo menos aparentemente, um simples e inocente cartão.

Os dois se esqueceram prontamente.

Passada uma semana - pumba! - outro cartão postal no escaninho de cartas. Ela correu para apanhar os óculos e leu: "Muito obrigada pela resposta, ando muito só e você e o Luís me reconfortam".

Seus cabelos se eriçaram e ela deixou cair o cartão! Mas que diabo, como ela soubera o nome de seu marido? Será que a "tia" os espionava?

À noite ela e Luís conversaram. Chegaram à conclusão que era um simples caso de solidão, sem consequências maiores do que um susto. Ponto final, encerrado, não se falaria mais nisso.

Mas Tarsila não podia evitar; quando percebia estava na janela, ou melhor no canto da janela escondendo-se atrás das cortinas observando a rua, os vizinhos e tudo o mais. Esperando...

Passaram-se os dias e... outro cartão: " Meus queridos, gostaria que Raul, nosso primo, tivesse a mesma consideração para comigo que a que vocês têm. Beijinhos em Paula e Téo".

Os dois sufocaram. Ela conhecia o nome das crianças também! E agora esse tal de Raul entrando na história! Resolveram tomar uma atitude séria. Não dava para esperar nem duvidar mais. Alguém os espionava. Tarsila vivia na janela. Na contra-ofensiva. Já não dormiam sossegados. O tempo passou.

Combinaram, no outro dia, sem falta, dar parte à polícia, meio sem esperanças, pois as cartas, na verdade, não eram ameaçadoras.

Queixar-se do quê, afinal? Porque alguém queria notícias deles? Porque viviam preocupados, pois alguém sabia o nome da família inteira? Porque estavam sendo vigiados? Era pouco. Não tinham argumentos!

Mesmo assim, sem muitas esperanças, marcaram para ir até a delegacia, logo que possível.

Ele foi trabalhar, as crianças para a escola e ela para a janela. Esperava. O quê? Ficava arrepiada só de pensar nisso. O trabalho caseiro se amontoava.

De repente, ao olhar pensativa lá para cima, na rua, ela começou a acompanhar a aproximação pela rampa do jardim de um senhor muito bem arrumado, uns quarenta e quatro anos, modos finos, que com passos cuidadosos ia descendo vagarosamente pelas pedras que marcavam os degraus do caminho. Quando ele a viu, abriu-se num sorriso - apesar de ter os olhos frios - ela notara:

- Tarsila, minha querida prima!

Ela levou um susto! Mas, perspicaz, sentiu aquele brilho estranho em seus olhos! Logo mudou de atitude, disfarçou e estendeu-lhe a mão com naturalidade:

- Como vai, primo Raul? Tia Mirinha falou-me de você. Vamos entrar.

Ofereceu-lhe um café que os dois tomaram trocando palavras banais como se fossem dois primos.

Ele, entretanto, observava discretamente todas as coisas ao seu redor - bem que ela o percebeu. Ela não lhe perguntou nada. No final mandou lembranças à "tia".

Ela respirou fundo e colocou as mãos na cabeça. Veio-lhe forte dor de cabeça. Pensativa, não conseguia explicar por que fingira conhecer a "tia".

Seria seu instinto que não falhara nunca? Por que de repente resolvera fazer o mesmo jogo de "tia" Mirinha, protegendo-a de certa forma e fingindo ser realmente sua sobrinha? Será que "tia" Mirinha afinal teria um motivo muito forte para os afligir? Será que foi isso que ela pressentiu quando viu aquele brilho estranho (e maldoso, portanto) no olhar do "primo" Raul?

No outro dia nada, tudo em paz. Resolveram aguardar. Mas, no dia seguinte, sua filha lhe trouxe outro cartão:

- Desculpe, mãe, esqueci de te entregar. Peguei quando ia para a escola, estava atrasada.

O cartão dizia:

Obrigada, querida sobrinha, por cooperar comigo e receber o primo Raul como se fosse da família. Na verdade não é meu parente, mas vizinho e muito amigo. Estava preocupada com ele, achando que, ao invés do amigo que sempre fora, ele parecia mais interessado no meu dinheiro porque andava fazendo-me umas perguntas estranhas tais como: "Você é sozinha na vida, querida?", "Não tem parentes?" e muitas outras. Pensei até em tirá-lo do meu testamento. Você o recebeu e ele mudou da água para o vinho. Ficou muito amável.

Para me proteger dessas perguntas, pedi informações e inventei uma família... vocês. Então as dúvidas se dissiparam. Deus que me perdoe. Hoje ele voltou ao que era. É o mesmo primo carinhoso de sempre.

Marcou o chá das três comigo no sábado e vai trazer o meu doce preferido - torta de maçãs. Tomarei chá no terraço do lado sul, o meu preferido, e pensarei em vocês com muito afeto.

Queridos sobrinhos, pelo aborrecimento envio-lhes esse modesto cheque. Queiram aceitá-lo, pois é uma insignificância para mim. Obrigada por me restituir a fé nas pessoas.

Um abraço da tia Mirinha.




Leram o cartão - na hora do café - e, apesar de suspirarem aliviados com as explicações, não deixaram de ficar preocupados com a história do testamento.

Iriam considerar os fatos mais tarde, agora não havia tempo, pois todos, a essa hora, estavam saindo, ainda mal-acordados e não refeitos de tantas noites mal dormidas.

Ao se encontrarem à noite, suspiraram novamente, mais calmos, apesar de espantados com o altíssimo cheque que acompanhava o cartão.

- E quanto a esse cheque? Seria ético ficar com ele? Deveríamos devolvê-lo? Mas como?

Resolveram pôr o sono em dia e dormirem mais cedo. Deixaram, portanto, isso para mais tarde.



No outro dia, sábado, reunidos que estavam na sala de almoço, em torno da mesa, iriam resolver se poderiam, de alguma forma, impedir aquele chá tão suspeito.

- O olhar daquele homem... o testamento... - lembrou-se Tarsila - credo, tive um mau presságio!

Todos discutiam. Mas quem era afinal a "tia" Mirinha? Como, afinal, avisá-la que poderia estar correndo perigo de vida? Como avisá-la de suas suspeitas? Como telefonar? Como convencer a polícia?

Nisso ouvem trovões altíssimos. Então desaba um terrível temporal. A família tem que acudir a casa da enchente, pois ela fica numa pequena baixada. Usar baldes e rodinhos para puxar a água que ameaçava entrar na casa, colocando a imensa tábua no portão da frente, que ajudava a desviar a enxurrada. O tempo passou.



Exaustos, eram umas três da tarde, foram almoçar, esquecendo-se por completo do problema mal resolvido.

Finalmente, no outro dia, após essa chuva torrencial e tanta correria, Tarsila sentiu-se tranquila. O tempo já estava calmo e abria, incipiente, o sol. Seria um domingo perfeito e poderia ler o jornal de sábado sem interrupções...

Nas primeiras páginas lia-se: "Atenção! Como fora anunciado, para a tarde de hoje, uma chuva torrencial destruiu boa parte..."

E bem centralizado, em letras enormes: "Milionária teve um colapso! Quem acudiu a venerável e conhecida milionária - D. Mirinha Cintra - foi seu primo e vizinho Sr. Raul Buarque, que participava com ela do chá das três. O Sr. Raul chamou, de imediato, o médico, porém, o Dr. Almeida - clínico da família - não pôde chegar a tempo devido às chuvas torrenciais. Mesmo assim o doutor declarou: Seria impossível salvá-la. Teve morte imediata. Ocorrendo o infausto aconteci..."



Tarsila pousou o olhar na parede sem nada ver. Seus olhos se encheram de lágrimas. Será que eles poderiam tê-la salvo? Como, meu Deus?...

Aquela chuva tão forte... Eles almoçaram tão tarde... também às três horas... O tempo esgotado... Passou a mão no telefone e mesmo sem consultar Luís ligou para o plantão da 13ª Delegacia de Polícia de seu bairro.

Agora, pensou, o motivo para ligar era suficiente... Após o que, deixando cair o jornal a seus pés, sem o perceber, levantou-se e dirigiu-se à sua escrivaninha.

Como um autômato foi buscar os cartões de "tia" Mirinha. Ordenou-os um a um, pela chegada do correio.

Enxugou as lágrimas que teimavam em descer por sua face. Leu-os novamente. Ela agora entendera por que o "primo" Raul vasculhava a sua casa com o olhar - procurando indícios, fotos, lembranças... Não os achou, é claro... Por isso...

Enxugando novamente as lágrimas dirigiu-se para a janela e abriu-a escancarando as cortinas. Dispôs-se novamente a esperar. Ela agora tinha todos os argumentos.

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