in Miosótis do Tempo
O seu ser era pelo dia atravessando o crepúsculo até que as luzes
ainda se manifestassem. No início era dócil e com isso se contentava.
Acompanhava sozinha, sem nenhum protesto, humilde, todo seu destino.
Caminhar junto foi para ela uma primeira descoberta e surpresa. Seguia e seguia,
fosse onde fosse. E com isso se acomodou. Parava, ela parava. Corria, ela corria.
Descobrir foi um alivio e finalmente um prazer. Com isso se contentou por muito
tempo.
Então percebeu que o plural também existia. Chegou a contar o
número de companheiras que com ela seguiam. Iam, ia; vinham, vinha...
Mas aos poucos em seus instintos ocultos, descobriu que sozinha era mais prazeroso.
Mais libertador até certo ponto. Viciou-se.
Subir e descer também a interessou. Eram fascinantes correrias, e ela
perdia o fôlego nestas sensações. Mas era somente uma sensação.
Até que um dia deu um passo maior. Descobriu que poderia desejar. E um
dia, desejou não ir. Ficar simplesmente. Quase conseguiu. Seu dono impôs
castigo severo. Depois de muita reação tornou-se dócil
novamente.
Mas descobriu o caminho. E sonhou quanto pode uma sombra sonhar, que queria
mais. E mais, e mais.
Dentro dessa nova perspectiva, arquitetou sonhos impossíveis de sensações
intensas para uma sombra. Arquitetou tempo e tempos. Quando menos se esperava,
ela saia em desabalada correria afirmando sua independência.
Em um embate sem precedentes, quase ganhou. Seu dono reagiu prontamente, de
uma maneira eficaz e surpreendente. Ela ficou insegura entre fuga e simples
mobilidade. Nada conseguiu. Seguiu seu destino. Algum tempo se passou.
Mas como já dominava a liberdade, para ela não havia retorno.
Muitos dias nebulosos haviam se passado em sofrimento.
Na sala, naquela noite, treinou, passeou arquejante, mas convicta. Iria agora
se arriscar de forma sem volta. Ela necessitava de mais. Então como uma
melodia no ar, sem início ou término, resolveu num embate mortal
que seria sim, independente. Tomou coragem. E naquele lusco-fusco de final de
dia ela se arriscou. Mas seu dono percebeu a tempo e apagou a luz.