O meu drama crescia rapidamente. Não mais esperanças de sentir
a amada, os seus afagos, os seus beijos, nem rever os amigos, nada mais possuir
ou esperar. Tristeza... Desalento....
Paralelo às minhas dores verdadeiras, o meu estado agora quase onírico
causava espanto à empregada de muitos anos, que ajoelhada ao lado do
meu leito se esforçava por entender-me, pois eu não tinha mais
forças ou cor.
Dor muito tempo e o tempo se esgotando. Aquela pobre criatura continuava com
a xícara de café negro na mão, que iria me oferecer talvez
como conforto ou adeus. Aquela mão estendida estava trêmula...
A melodia... Tudo foi parando. O seu espanto... As dores... A consciência
das dores... A morte teria que esperar. As grandes aflições iriam
aquietar-se? O tempo... Estaria eu pronto? A voz da grande cantora foi chegando,
chegando até mim. Intensificada, invadia-me como uma estranha resposta
aos solitários e feridos. O violino, em diapasão, solava melodiosamente
e evocava o desespero daquela mãe-guardiã. Seu som dilacerante
penetrava a alma, e esta vibrava no mesmo tom, o do sofrimento, mas tão
entranhado, tão visceral... Eu o sentia... A voz cantava e contava a
tragédia do fogo que atingia o casarão antigo e destruía
tudo, todos os sentimentos da mulher, de maternidade e de amor, seus filhos...,
sua terra, superando os meus problemas (e a minha própria morte que se
avizinhava), pensamentos em chamas e o crepitar do fogo que me enlouqueciam
e como um sentimento quase imoral, dilaceravam meu espírito alquebrado
pela doença insidiosa.
O som pungente daquele canto imbricava o ar, assim como tudo o mais, e mostrava
como ela, aquela mãe atormentada morrera na tentativa vã de salvar
alguma coisa, pois seus filhos ali tinham nascido, era sua própria vida
passada que tentava salvar e pela qual dava a sua. Eu sentia a minha própria
solidão, a distância da inocente amada, muito amada, que tudo desconhecia,
confundida com a aquela canção pungente. Só, absolutamente
só, nada deixava para trás... agora totalmente desvinculado. As
lágrimas, simples sinais, teimavam em descer pela minha face magra e
eu embalado pela melodia fundia-me em êxtase...
Tomado por essa voz tão intensa, senti-me rodopiando, fora da cama
e das agulhas que perfuravam meu corpo e espírito. Feridas abertas em
meu ser. Morrer ou viver? O que importava? O drama da vida desaparece e só
clama o momento, o instante afinado com o som magnífico de Callas. Um
inebriante estado de alma, abrangente e único, além dos sentidos.
Eu comecei a bailar acompanhando o ritmo, sem medo ou dor, purificado... volteando...
O meu espírito, agora enleado, envolvido por aquela melodia inebriante.
A epifania...
(in "Ao Redor da Mesa" )