A Garganta da Serpente
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A pesca

(Conrad Rose)

Severino - quarenta e tantos, pele curtida ao máximo, ombros largos delimitando o corpo desenhado pelo ofício e olhos fundos - passara a noite em alto-mar, jogando tarrafa prá recolher variados exemplares do litoral fluminense. Atividade corriqueira que saltava dias santos e datas especialíssimas, gerando os recursos suficientes prá sua modesta subsistência e algum luxo - botequim e arrasta-pé, o que lhe afastava da solidão plena. No mais: vivia só, a sonhar com a companheira definitiva.

Beatriz percorria lugares remotos - outros nem tanto - mudando de posição o sol, renovando horizontes e descobrindo paisagens. Fora agraciada com uma herança que lhe promoveria o ócio eterno. O sonho comum.

Em tempo: a citada moça - sim(!), porque apesar de trinta e poucos, não absorvera Balzac, mantendo-se como tal - coloria a pele - duma alvura de tela - nas alvoradas da costa. Pintava-se listrando a cútis onde o pudor geralmente pedia vestes. Quando sozinha, expunha-se toda. Louros cabelos curtos que se arrebentavam de brilho na amplitude tropical. Doce olhar d´água - despreocupado embora atento, o qual complementava seu sorriso etéreo de lábios carnudos e vermelhos como poucos. Um e sessenta e quatro de torneadas linhas que arregalavam olhos ao redor. Pés diminutos tratados com destreza - num deles um adereço de corda ao tornozelo, e mãos de delicados dedos e movimentos sublimes. Sardas pinceladas no regaço. Perfume ameno. No pescoço, um vasto coração cravado de pedras como pingente, externando o tamanho do seu. Bronzeava-se com cuidado no horário autorizado pela medicina. Lia à praia, de Clarice Lispector a Fernanda Young.

Na data narrada, o encontro aconteceu:

De longe Severino a avistou. Hospedou seu barco à areia e passou a recolher produtos e equipamentos, selecionando aqueles e organizando estes. Percebia Beatriz de viés, preocupando-se em não agredi-la com sua curiosidade e seu encantamento porém, ao findar uma página ela admirou o mar, notando-o; assim fitaram-se com gentileza.

O pescador inflou-se de coragem, encheu um saco de robalos e abalou-se até a leitora:

- Gosta de peixe? Se me disser sua graça, estes são seus...

Ela sorriu leve e corando afirmou:

- Beatriz. - numa voz macia, cruzando os olhos nos de Severino, com certa demora.

Ele retribuiu o sorriso até encabular-se pro chão, agradeceu e retornou aos afazeres. Mas sem paz, ousou: catou algumas conchas - as mais belas daquela noite - e dirigiu-se novamente à jovem:

- Tome(!), são pelo olhar. Muito agradecido...

Ela mareou ainda mais os olhos, sentindo-se amada como nunca.

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