Não era alto nem baixo. Feio nem bonito. Gordo nem magro. Desprovido
de qualquer característica marcante. Passava desapercebido pelas mulheres,
pelos ladrões e pelos pedintes. Quase invisível. No amor, também
encontrava sérios problemas: nem duro nem mole. Um meão de pouca
valia, se bem que seria utilmente empregado na lavoura ou no cais do porto -
mas Alessandro tomou outro caminho.
Fronteiriço, orgulhava-se de arranhar dois idiomas. O natural e o hermano.
Migrou ainda jovem à Baía da Guanabara, acompanhando a família
- Zona Sul. Condomínio burguês. Graduou-se jornalista e encontrou
seu verdadeiro amor em Mangueira. O surdo seco invadiu-lhe as entranhas. Primeiro
se constatou sedado, logo embasbacado e ao sair da quadra da escola, a paixão
pelo compasso já se tornara inerente.
Dali extraiu sua melhor matéria. Sua verve dominou-o - entumecida pela
descoberta. Descreveu o ensaio numa crônica escandalosa de tão
bela. Uma crônica de amor à primeira vista. Na primeira estação
deste, quando o contraste e a bisbilhotice parecem ter vida própria.
A repercussão do texto foi gigante. Rendeu-lhe ingresso livre nos ensaios
e abriu-lhe as portas do mundo do samba. Se não o fizera com chapéu
de palha ou caixa de fósforos, conquistara o acesso via credencial. Num
piscar de olhos - nos pagodes - virou o do crachá, e por fim apenas Crachá.
Deveras ninguém compreendia o que aquele desengonçado estava a
fazer ali. Ridículo mesmo era quando Alessandro ousava batucar na credencial:
fazia algumas caretas e repicava sem parar, quebrando nunca. Não saía
dum relógio acelerado e, embora bancasse umas rodadas, pouquíssimos
o viam como chegado.
Os meses correram com muita transcrição. Crachá ouvia -
ora registrando em áudio, ora anotando aos garranchos - e repassava aos
seus leitores as mais bonitas histórias do ritmo. Ninava nos braços
da Velha Guarda, contudo nem isso o ensinara a sambar.
Acontece que é muito difícil controlar a imaginação.
Como tinha um par de ouvidos sempre à disposição - e estes
não questionavam absolutamente nada, a rapaziada desandou a inventar,
amplificar, distorcer e até sacanear. Pior que - no dia seguinte - as
histórias, os devaneios e as mentiras estavam lá no jornal, sem
mudança alguma. Piadas publicadas.
Por outro lado, as crônicas fascinavam. Eram sambas em prosa. E todo dia
vinha um da comunidade com uma narrativa e um novo personagem: o velho sambista
manco desaparecido durante o desfile da escola, aquele que mataram porque pendurou
e não pagou o tamborim, o outro que apanhava da mulher quando chegava
passado, e a recatada senhora que - tratando-se de sexo, no aconchego do barraco
- só chegava lá ouvindo Máscara Negra, do Zé Kéti
- a música tinha que ficar repetindo e toda a vizinhança sabia
cantarolar, apesar do sambista pertencer à coirmã Portela.
Era tão agradável contar-lhe fatos, que começaram a pipocar
autores. Três, quatro por dia. Assim, Alessandro espaçou suas idas
à Mangueira. Colhia o material duma semana dispondo de apenas uma tarde
no botequim - ou na quadra, e mais meia-dúzia de cervejas distribuídas.
Se aproximava o dia em que haveriam mais bambas que pessoas nos arredores da
escola. O morro estava virando Olimpo. Tinha até seu Midas, que fazendo
treze providenciou cordas de ouro pro seu cavaquinho.
A diretoria da LIESA depressa alertou prá popularidade de Crachá.
Em tempo, Liga Independente das Escolas de Samba. Como lá é lugar
de meão, o convite não tardou. Pronto, o cronista metia seu pitaco
no samba - agora já muito além da conta. E somou uma nova credencial,
desta feita pro Sambódromo.
Nestes postos permaneceu por décadas, até que resolveu parar com
tudo na vida - pelo menos no quesito trabalho. No meio do caminho já
se tornara pragmático; dois passos adiante, autêntico; quando se
aposentou, integrado, pode cair no samba e largar as credenciais. Todo este
tempo, duas certezas: Mangueira fora sempre dez e só se pode ser feliz
de verdade perto do mar.
Mas o que intriga, em Alessandro, é a destreza com a qual administrara
sua medianidade única, que fica bem ilustrada no desfecho duma das suas
primeiras crônicas: ´...sabe-se lá onde anda Osvaldo Cruz,
mas ainda é Portela.´
Pois é, quando não se sabe como pode se saber onde.