A Garganta da Serpente
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Gringo no samba

(Conrad Rose)

Não era alto nem baixo. Feio nem bonito. Gordo nem magro. Desprovido de qualquer característica marcante. Passava desapercebido pelas mulheres, pelos ladrões e pelos pedintes. Quase invisível. No amor, também encontrava sérios problemas: nem duro nem mole. Um meão de pouca valia, se bem que seria utilmente empregado na lavoura ou no cais do porto - mas Alessandro tomou outro caminho.

Fronteiriço, orgulhava-se de arranhar dois idiomas. O natural e o hermano. Migrou ainda jovem à Baía da Guanabara, acompanhando a família - Zona Sul. Condomínio burguês. Graduou-se jornalista e encontrou seu verdadeiro amor em Mangueira. O surdo seco invadiu-lhe as entranhas. Primeiro se constatou sedado, logo embasbacado e ao sair da quadra da escola, a paixão pelo compasso já se tornara inerente.

Dali extraiu sua melhor matéria. Sua verve dominou-o - entumecida pela descoberta. Descreveu o ensaio numa crônica escandalosa de tão bela. Uma crônica de amor à primeira vista. Na primeira estação deste, quando o contraste e a bisbilhotice parecem ter vida própria.

A repercussão do texto foi gigante. Rendeu-lhe ingresso livre nos ensaios e abriu-lhe as portas do mundo do samba. Se não o fizera com chapéu de palha ou caixa de fósforos, conquistara o acesso via credencial. Num piscar de olhos - nos pagodes - virou o do crachá, e por fim apenas Crachá.

Deveras ninguém compreendia o que aquele desengonçado estava a fazer ali. Ridículo mesmo era quando Alessandro ousava batucar na credencial: fazia algumas caretas e repicava sem parar, quebrando nunca. Não saía dum relógio acelerado e, embora bancasse umas rodadas, pouquíssimos o viam como chegado.

Os meses correram com muita transcrição. Crachá ouvia - ora registrando em áudio, ora anotando aos garranchos - e repassava aos seus leitores as mais bonitas histórias do ritmo. Ninava nos braços da Velha Guarda, contudo nem isso o ensinara a sambar.

Acontece que é muito difícil controlar a imaginação. Como tinha um par de ouvidos sempre à disposição - e estes não questionavam absolutamente nada, a rapaziada desandou a inventar, amplificar, distorcer e até sacanear. Pior que - no dia seguinte - as histórias, os devaneios e as mentiras estavam lá no jornal, sem mudança alguma. Piadas publicadas.

Por outro lado, as crônicas fascinavam. Eram sambas em prosa. E todo dia vinha um da comunidade com uma narrativa e um novo personagem: o velho sambista manco desaparecido durante o desfile da escola, aquele que mataram porque pendurou e não pagou o tamborim, o outro que apanhava da mulher quando chegava passado, e a recatada senhora que - tratando-se de sexo, no aconchego do barraco - só chegava lá ouvindo Máscara Negra, do Zé Kéti - a música tinha que ficar repetindo e toda a vizinhança sabia cantarolar, apesar do sambista pertencer à coirmã Portela.

Era tão agradável contar-lhe fatos, que começaram a pipocar autores. Três, quatro por dia. Assim, Alessandro espaçou suas idas à Mangueira. Colhia o material duma semana dispondo de apenas uma tarde no botequim - ou na quadra, e mais meia-dúzia de cervejas distribuídas.

Se aproximava o dia em que haveriam mais bambas que pessoas nos arredores da escola. O morro estava virando Olimpo. Tinha até seu Midas, que fazendo treze providenciou cordas de ouro pro seu cavaquinho.

A diretoria da LIESA depressa alertou prá popularidade de Crachá. Em tempo, Liga Independente das Escolas de Samba. Como lá é lugar de meão, o convite não tardou. Pronto, o cronista metia seu pitaco no samba - agora já muito além da conta. E somou uma nova credencial, desta feita pro Sambódromo.

Nestes postos permaneceu por décadas, até que resolveu parar com tudo na vida - pelo menos no quesito trabalho. No meio do caminho já se tornara pragmático; dois passos adiante, autêntico; quando se aposentou, integrado, pode cair no samba e largar as credenciais. Todo este tempo, duas certezas: Mangueira fora sempre dez e só se pode ser feliz de verdade perto do mar.

Mas o que intriga, em Alessandro, é a destreza com a qual administrara sua medianidade única, que fica bem ilustrada no desfecho duma das suas primeiras crônicas: ´...sabe-se lá onde anda Osvaldo Cruz, mas ainda é Portela.´

Pois é, quando não se sabe como pode se saber onde.

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