A Garganta da Serpente
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O baleiro

(Conrad Rose)

Luiz despendia cada centavo do dinheiro que recebia para tratar um São Bernardo duma vizinha solitária e muito ocupada. Assim fazia a festa no baleiro do armazém, afinal o portuga decretara o fim do caderno e isso fazia da sexta, dia do pagamento semanal, uma ocasião e tanto.

Mas nenhuma se compararia àquela que anunciava o verão para a próxima. Melhor contar logo:

Ele voltou do futebol para levar o imenso cão a suas necessidades, ensacou aquilo tudo, para depois ensacar, ensacar de novo e depositar devidamente. Dali correu ao estabelecimento. Sempre fazia listas, mas dessa feita não. Foi improvisar frente ao baleiro como quem abre a geladeira para divagar.

Seus trocos escorriam dentre os dedos à medida que a saliva preenchia-lhe a boca. Quando estavam próximos do fim, ele se encontrava entre inúmeras possibilidades para complementar o saco de papel de considerável tamanho. Ficou contando dedos, analisando custo e benefício.

Quase em transe, foi interrompido por uma garota que esbarrou no seu ombro, invadiu o balcão e solicitou uma nota maneira todinha em doces de abóbora em formato de coração.

Tudo bem(!), nada demais se ela não fosse da cor do doce. Cabelos, sobrancelhas, cílios. Aquilo intrigou o moleque.



Será que ela abusara do doce? Será que o doce viciava a ponto de soltar algo no corpo que o repintasse? Havia de ter alguma explicação pois nunca vira ninguém daquela cor. Já encontrara gente de cor rosa, branquela à vera, brilhante de tão negra e das mais diversas cores. Daquela nunca!

Aí o transe mudou, mas a posição não. Ah sim, um detalhe: o queixo caiu. De qualquer forma ficou estático enquanto o portuga agradecia e lhe prestava o melhor favor do mundo:

- Obrigado, Carla. Volte sempre!

- Carla... - ele balbuciou reservadamente.

Ela sorrindo contornou-se no balcão e expôs seus olhos azuis de limpeza invejável ao petrificado Luiz.

Ele rodou o pescoço para acompanhá-la, aproveitando e expandindo o tempo para nunca mais esquecer daquele relance. O vestido azul desenhado predominava e terminava pouco abaixo do joelho. Tudo isso se irrequietava sobre um par de sandálias plásticas em outro tom, mesma matiz.

Assim permaneceu imóvel e a filmou até onde a vista alcançou. Aí novamente o portuga gralhou:

- Ó gajo. Que mais vais querer? - com certa impaciência de quem permaneceu trás do balcão por décadas.

- Doce de abóbora. O resto em doce de abóbora. - cravou Luiz dando-lhe o saco de moedas e miúdos.

O lusitano abarrotou o saco até que a fração do baleiro se esvaziou. E ofereceu:

- Ainda tem um tanto. Levas estas bolas de gude!? - e estendeu duas bolas azuladas tal casa de Lobato. Cristalinas, reluzentes e cravadas de pontos brancos e acizentados.

Ele aceitou e foi para casa já se lambuzando nas guloseimas. Exceto as de abóbora. Essas seriam as últimas.

Chegando, à miúda recolheu-se no quarto para não ser obrigado a oferecer suas iguarias aos irmãos.

Saciou-se, diminuindo consideravelmente seu estoque. Mas nada de abóbora. Olhava apenas. Não se cansava de fitar aqueles corações alaranjados.

Quando parou de comer, bateu uma preguiça danada e largou-se à cama, movimentando apenas os dedos ao rolar as duas bolas sobre ela.

Num descuido, uma das bolas escapuliu e uniu-se a um dos preciosos e preservados doces.

Ali Luiz sofreu uma transformação e decretou que o acaso lhe providenciara um aviso.

Mais: era essencialmente a combinação inédita de duas cores que na junção se expandiam, sem concorrência.



As sextas não foram mais as mesmas e a seguinte demorou como nunca.

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