Luiz despendia cada centavo do dinheiro que recebia para tratar um São
Bernardo duma vizinha solitária e muito ocupada. Assim fazia a festa
no baleiro do armazém, afinal o portuga decretara o fim do caderno e
isso fazia da sexta, dia do pagamento semanal, uma ocasião e tanto.
Mas nenhuma se compararia àquela que anunciava o verão para a
próxima. Melhor contar logo:
Ele voltou do futebol para levar o imenso cão a suas necessidades,
ensacou aquilo tudo, para depois ensacar, ensacar de novo e depositar devidamente.
Dali correu ao estabelecimento. Sempre fazia listas, mas dessa feita não.
Foi improvisar frente ao baleiro como quem abre a geladeira para divagar.
Seus trocos escorriam dentre os dedos à medida que a saliva preenchia-lhe
a boca. Quando estavam próximos do fim, ele se encontrava entre inúmeras
possibilidades para complementar o saco de papel de considerável tamanho.
Ficou contando dedos, analisando custo e benefício.
Quase em transe, foi interrompido por uma garota que esbarrou no seu ombro,
invadiu o balcão e solicitou uma nota maneira todinha em doces de abóbora
em formato de coração.
Tudo bem(!), nada demais se ela não fosse da cor do doce. Cabelos, sobrancelhas,
cílios. Aquilo intrigou o moleque.
Será que ela abusara do doce? Será que o doce viciava a ponto
de soltar algo no corpo que o repintasse? Havia de ter alguma explicação
pois nunca vira ninguém daquela cor. Já encontrara gente de cor
rosa, branquela à vera, brilhante de tão negra e das mais diversas
cores. Daquela nunca!
Aí o transe mudou, mas a posição não. Ah sim, um
detalhe: o queixo caiu. De qualquer forma ficou estático enquanto o portuga
agradecia e lhe prestava o melhor favor do mundo:
- Obrigado, Carla. Volte sempre!
- Carla... - ele balbuciou reservadamente.
Ela sorrindo contornou-se no balcão e expôs seus olhos azuis de
limpeza invejável ao petrificado Luiz.
Ele rodou o pescoço para acompanhá-la, aproveitando e expandindo
o tempo para nunca mais esquecer daquele relance. O vestido azul desenhado predominava
e terminava pouco abaixo do joelho. Tudo isso se irrequietava sobre um par de
sandálias plásticas em outro tom, mesma matiz.
Assim permaneceu imóvel e a filmou até onde a vista alcançou.
Aí novamente o portuga gralhou:
- Ó gajo. Que mais vais querer? - com certa impaciência de quem
permaneceu trás do balcão por décadas.
- Doce de abóbora. O resto em doce de abóbora. - cravou Luiz dando-lhe
o saco de moedas e miúdos.
O lusitano abarrotou o saco até que a fração do baleiro
se esvaziou. E ofereceu:
- Ainda tem um tanto. Levas estas bolas de gude!? - e estendeu duas bolas azuladas
tal casa de Lobato. Cristalinas, reluzentes e cravadas de pontos brancos e acizentados.
Ele aceitou e foi para casa já se lambuzando nas guloseimas. Exceto as
de abóbora. Essas seriam as últimas.
Chegando, à miúda recolheu-se no quarto para não ser obrigado
a oferecer suas iguarias aos irmãos.
Saciou-se, diminuindo consideravelmente seu estoque. Mas nada de abóbora.
Olhava apenas. Não se cansava de fitar aqueles corações
alaranjados.
Quando parou de comer, bateu uma preguiça danada e largou-se à
cama, movimentando apenas os dedos ao rolar as duas bolas sobre ela.
Num descuido, uma das bolas escapuliu e uniu-se a um dos preciosos e preservados
doces.
Ali Luiz sofreu uma transformação e decretou que o acaso lhe providenciara
um aviso.
Mais: era essencialmente a combinação inédita de duas cores
que na junção se expandiam, sem concorrência.
As sextas não foram mais as mesmas e a seguinte demorou como nunca.