O corpo caído tencionava submergir, apesar de
gravitacionalmente estático. A bruma feito cobertor gelado. Quanto aos olhos, já
não os retinha abertos. Na boca, a baba sólida. O sangue que antes vertera,
agora congelava e coagulava, assinando uma surra bem dada. Os ossos
encaixavam-se lentamente, o que no âmago alimentava o vômito. Encontrava-se
curvado como feto. O sono trajava coma. Analisado com zelo, notar-se-ia brotar
inchaços acompanhados de hematomas, esverdeantes ainda. E, se na presença de um
estetoscópio, do estalar dos ossos surtiriam ruidosos acordes tendo ao fundo o
compasso lerdo e cardíaco. Tremia de um todo.
Qualquer mortal teria compaixão. Qualquer! Depois o
desprezaria. Mas Deus não. Deus só via, nem compaixão tampouco desprezo; com
complacência de telespectador e cheio de vontade de rir.
No plano mundano, após a aurora chegava a ambulância.
Paramédicos carregaram o corpo febril e exausto.
Voltando gradativamente a si, o corpo provava a repercussão
da obra de seu opositor. A lucidez intensificava os sentidos e tornava a
absorção das dores quase impossível. Dores ósseas, musculares, indecifráveis,
acumulativas e complementares. Seu algoz nada o preservara. Em seguida,
antiinflamatórios e sedativo, e o corpo ainda ouvia o eco das expressões sacras
do doutor quando a indústria farmacêutica assumiu o controle.
Entrava, então, num vai e volta sem fim. Cessando o sedativo,
o corpo entorpecia de dor. Os olhos semiausentes presenciavam seu corpo –
longinquamente – coberto por um pano branco chamuscado de vermelho. Gases, gesso
e mercúrio-cromo, na verdade. Sentia-se noiva currada. Pior era o cheiro: água
sanitária com esparadrapo. Uma perna suspensa. O compasso lerdo e cardíaco e
eletrificado.
E não tardava a chegar a enfermeira para depurá-lo.
Enterrava-lhe o polegar na pálpebra, erguendo-a; pressionava-lhe o punho com a
outra mão. Constatando-o vivo, fincava-lhe a seringa novamente.
Há muito, quando chegara da roça com uma carta de referência
do pai e pouquíssimos pertences – quase badulaques, fora de imediato ao encontro
do padrinho que o conduzira à labuta; um frigorífico de médio
porte.
Passados alguns dias, padrinho e afilhado já despendiam
juntos a maior parte de suas horas de ócio. O afilhado descobria a cidade e sua
vasta podridão. Primeiro as mulheres, onde despejava em torno de um terço de seu
salário. Destilados para acompanhar. Tabaco e algumas drogas, mas nada
relevante.
Ia do frigorífico para o bar, do bar para a zona e da zona
para o quarto de pensão em que o padrinho o depositara. Assim correram
meses.
O afilhado prosperava. Três meses no frigorífico e já fora
promovido. No quinto, livrara-se do incômodo de carregar bovinos nas costas.
Passara a cuidar das contas a pagar da empresa. O padrinho muito se
orgulhava.
Certa data, o padrinho o levara para o carteado, mas
prevenira-o do vício. Charutos, mulheres insinuantes, uma redonda mesa verde,
bebida e fichas replicantes. Nos momentos de grande tensão, na definição da
rodada, o ambiente carregado mais parecia o interior de um elevador lotado ou a
sala de espera de um oncologista. A aflição e a ansiedade foram determinantes
para o afilhado. E naquela data ele dobrara o seu salário.
O jogo entrara no roteiro. Trabalho, bar, jogo, zona, pensão.
Trabalho, bar, jogo, pensão. Trabalho, jogo, pensão. Trabalho, jogo, trabalho.
Jogo, trabalho, jogo. Jogo.
Cavalos, roleta, poker, pife, palito, vídeo bingo,
caça-níqueis, pinguim, loterias e rifas. O padrinho aconselhava-o a largar,
retomar a vida. Dizia que o melhor era casar-se. Ele até procurava encontrar uma
esposa a contento, mas todas caíam fora quando o vício era deflagrado.
Porém, Raquel comprara a briga. Mulher espaçosa, pronta para
a guerra. Sangue siciliano. O afilhado vidrara nas volumosas mamas da dita.
Comia na mão de Raquel.
Trabalho, pensão, trabalho, pensão, trabalho, casa. Casa! O
afilhado comprara uma casa enfim. Um aconchego, um lar, uma morada, um endereço.
Ela nutria-lhe; e na rua, ou alguma festa, ela ostentava-o como troféu; ele,
sentia-se um poodle branco vigiado pela coleira. Entretanto, isso não fazia
importância. Pelo menos enquanto ele se divertia com as suntuosas tetas de sua
dona. Nunca trepara tanto. O afilhado encarava os urros, uivos, gemidos,
sussurros e palavrões como contrapeso ao poodle branco. O prazer
vencia.
O problema é que peito toda hora enjoa. Demora – porque o par
gera o revezamento -, mas acaba enjoando. Para piorar, o afilhado havia voltado
a carregar carcaças. E, no momento em que ele não via mais graça nenhuma em
nenhum dos dois apêndices, entrou o ciúme. Como bom jogador, virou o jogo. O
afilhado passou a vigiá-la. Obstinou-se. A princípio a siciliana relutara, mas
duas semanas sem sexo e algumas surras surtiram efeito. Raquel rendera-se,
contera-se, encolhera-se e enclausurara-se; e o afilhado folgara-se. Voltara a
jogar, colecionava amantes e penhorava tudo o que tinha para penhorar.
Quanto aos peitos, ele notara que vagarosamente eles iam
enfraquecendo, cedendo, caindo. Perderam volume também, já que a dona mal comia.
Por fim secaram. O afilhado definhara a siciliana.
Não dá para jogar sem cacife. É regra. O padrinho havia
alertado. Sem cacife e sem sorte.
Dos credores, primeiro a compaixão; depois, o prazo findara,
a dívida não. A surra quitara. Aí, dos credores, somente
desprezo.
E agora estava ele ali, esfolado, arranhado, inchado,
infeccionado, dopado; mas fora voltando a si, ou quase, que apodrecera
definitivamente.
A siciliana trazia-lhe suas poucas bugigangas. Era o que lhe
cabia da partilha. Ela estava impecável, devidamente maquiada, ereta e suspensa
num salto-agulha; rebolado compassado e muito swing. Até os peitos mostravam-se
animados.
Ela depositou um saco plástico próximo ao corpo inerte,
sorriu de canto, e fugiu dele sem pressa alguma.