A Garganta da Serpente
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Alvorada

(Conrad Rose)

Nos primórdios, o homem endeusava a natureza. A Mãe possuía uma vastidão de fenômenos incompreensíveis, e foi a observação climática que providenciou a lógica; e desta, vieram a filosofia e a mitologia.

Na Grécia Antiga, o adivinho Tirésias previra que o escultural Narciso teria vida longa, desde que jamais contemplasse a própria imagem. Quando a Mãe percebeu que o belo - muito além de Zeus - ameaçava seu posto, proporcionou-lhe Sua beleza para atraí-lo a uma fonte e ao nutri-lo - fisicamente - de sede, entorpeceu-o com sua alumiante qualidade. Apaixonado, Narciso ali se consumiu.

Brasil. Final do Século XX. A Terra saturada desta contagem quebrada e sabendo que Ela era o verdadeiro sinal, resolveu adotar medidas. Não desgostava Cristo nem o ancião benevolente, mas achava que o crucificado merecia mais ouvidos que devoção. (Também para Buda, Maomé, gurus e pajés, entre tantos.) De maneira alguma Ela ergueu-o na cruz, reversamente foram os deles que a fincaram. Tampouco teve a ver com Maria Madalena. Porém, quase dois mil anos é tempo e a Mãe se cansou.

Assim a Terra trouxe ao mundo Debora: morena clara, marcada de sol e fogo, oito tatuagens; pés macios. Deu a ela a proporcionalidade de Da Vinci, a exuberância de Delacroix, a harmonia das sonatas de Mozart, a realeza de Mary Stewart e o encantamento duma musa de Camões. Também lhe impregnou um sorriso maroto - que instigava e inibia; e temperou-a num narcisismo contagiante que petrificava sem a maldade de Medusa, embora contraindicada aos hipertensos.

Superlativos não faltavam a Debora e ela não tinha pudor algum em revelá-los. A Mãe prontamente usou de poderes e determinou que Sua cria era do mundo e não haveria outro neste capaz de dominá-la ou subtraí-la.

Em Mangueira - não só, mas principalmente! - fora prevista, dos búzios ao samba. A Terra proveu um gingado meloso a Debora. Doce(!), nunca refinado. No salto ou na areia, ela suspendia queixos desavisados. Falação e hipocrisia, é claro que não faltaram, no entanto a Mãe a livrara de todo o mal.

O queixo de Debora chegava antes - um milímetro antes do nariz, fazendo-se cartão de visitas, inevitavelmente trazendo junto o risonho hábito. Molecagem glitter. Cabelos - quase sempre castanhos - desciam-lhe pouco abaixo dos ombros: leves e tratados.

Quando Debora entorpecia nalguma paixão, na exaltação de sua libido, a Terra aguardava paciente o desfecho da intempérie; embora soprasse as nuvens para longe dela e fizesse o sol arder, acelerando o processo. Sabia do aconchego e da comodidade que o frio proporciona. Carregava Debora de discernimento para desestimular a jovem. Debora saía-se assim:

- Pêra eu não quero mais comer porque quando era criança, eu comi de tudo quanto é jeito. Verde, madura, passada; no pé ou em cima do muro. Araçá é bom porque a temporada é sorrateira e tem duas cores prá escolher. Cupuaçu e jaca eu nunca provei. - Debora nunca ultrapassou esta metafórica importância, e o pé arriava coberto de frutos.

Já era o enlace. Havia relações de sexo e amizade mas nada além disso, afinal era sábia e tinha ciência que somar ou dividir a tiraria do lugar.

O simétrico nariz escudava os brilhantes e castanhos olhos de Debora. Sua tez aveludada invadia recintos, perfumando-os. Seu carisma era sobrenatural como as tempestades e as avalanches. Sua determinação a mantinha esplendorosa. Cursava Engenharia, o que lhe concedia um - senão nobre, notável ao menos! - título. A líder das mãos profanas dos sanseis e derivados. Ela não os entendia e nem se interessava em estreitar-se-lhes. Na verdade, ela os via como sensores a captá-la no decorrer dos letivos, e sorria-lhes sabendo-se protegida pelo Jaspion, pelo Bruce Lee e pelo Godzilla.

Era este o apelido dum japonês que - não sendo nenhum ás nas exatas - desertou os estudos e entregou-se à carreira militar. Bom que nasceu no Brasil, e num período onde os militares não tinham - e nem queriam - muito a ver. Antes disso, o desengonçado nipônico era o maior e mais assíduo vigilante da bela. Até efetuar a troca de carreira, pensava em vingar no tatame ou abrir uma porta para consertar eletroeletrônicos, mas donde viria o dinheiro? Foi assim que o reforçado resolveu se alistar:

- Vocês não precisam de alguém prá tratar de jardins ou cavalos? Eu quero fazer exercício físico, estudar e servir à pátria. - num português Estação Liberdade.

Debora perdeu o contato com seu cão de guarda. Segundo acadêmicos, soube que Godzilla fora induzido a ingressar na polícia, no que lhe disseram sobre sua valia para a nação e, principalmente, sobre a diferença salarial que a mudança propunha. A providencial caixinha. Godzilla remanejou-se através de concurso. Trocou de farda.

As tatuagens: imagens espalhadas pelas costas e ao redor da cintura - incluindo aqueles ossos que saltam maravilhosamente pouco acima do ventre, no encaixe do fêmur, um de cada lado. Nesta mesma altura, no perfil de Debora, encontrava-se um dragão como a confrontar o dono da Lua. Mais: piercing na língua.

Ao dormir, toda noite Debora deixava-se cuidar pela Mãe, que: removia-lhe as células mortas, rejuvenescia-lhe os órgãos e revigorava-lhe os músculos. O tempo simplesmente não a atingia, com ressalvas: a Mãe a carregava de curiosidade e - em sonhos - ensinava-lhe a história desta humanidade ao Seu redor. E a afastava da pregação dos ecologistas. Debora podia fumar, beber, até engordar; mas a Mãe a impedia de se danificar, alvorecendo Debora - anatomicamente - idêntica ao dia anterior. Era como se nada acontecesse mesmo.

Godzilla a reencontrou em Ipanema. Como rotina, saía ela dum vasto apartamento à beira-mar - perto das quatro da tarde, primavera carioca, resplandecendo a rainha das praias num biquíni estritamente necessário. Todas as tatuagens à mostra. Logo concentrava amigos de diversas bondades. Mimo não lhe faltava e de modo algum isto a injuriava. Muito mais que doze discípulos e cada qual com muito assunto; olhos e ouvidos de uso exclusivo de sua divina musa. Uma plateia imaculada ao seu dispor.

Havia os que faziam compromisso de agenda do entardecer da morena. Reunião de trabalho(?): antes de Debora. Matar alguém(?): depois de Debora - se a vontade persistir.

Erradamente, Godzilla agradeceu aos céus pela providência. Desandou na masturbação. O então policial substanciou o destino e dali em diante fixou-se espectador dos abençoados crepúsculos.

E foi num cor-de-rosa destes que veio o inusitado:

Ele tinha o rádio para acionar reforço, mas aos olhos de Debora seu heroísmo prevaleceu. Perseguiu o punguista até a água, entrou no mar e aventurou-se. (Ladrão de praia que não sabe nadar - e bem, precisa aprender. Antes é bom aprender a ler, para decidir se é isso mesmo que quer da vida.)

Fôlego, fugitivo tem de sobra, ao contrário do oponente em questão. Godzilla sentiu cãibras, mas não atentou e prosseguiu - talvez por julgar sua valentia ainda insuficiente. Braçou além, desprezando seu histórico: a obesidade, o tabaco, o goró, o sedentarismo caseiro e o ofício de guarda de trânsito - pelo qual não tinha motivo nenhum para abalar-se ao mar. Pouco mais e bastou...

Foi retirado d´água com insuficiência respiratória: o coração saltando fora, besuntado de areia, olhos revirados, baba gosmenta. Ninguém unia forças para encarar, só uma divindade o salvaria; e ali havia uma deveras.

Respiração boca a boca. A ressurreição erótica. O nipônico ejaculou assim que Debora o reconheceu.

Esta se tornou milagreira, o ocorrido ganhou proporções imensuráveis e Godzilla - mesmo assistido - faleceu na ambulância, antes de chegar no Miguel Couto. No ápice da sua imaginação, velado pelos lábios de Debora.

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