A moça que não lê senta-se na beira da cama e exasperada,
disca um número que está ocupado. Faz nervosos gestos de coçar
a cabeça, acariciar o queixo, esfregar os olhos. Estende-se. A cabeça
ruiva artificial, afunda o travesseiro de penas. Ao lado, o pai idoso a chama.
Finge não ouvir, depois vai quase imediatamente arrependida, o coração
aos saltos, atendê-lo. Morre de medo que morra, pois já se pegou
dezenas de vezes imaginando como será sua vida após a morte do
ancião. E algumas vezes, percebe que a liberdade a atrai, qual a luz
a atrair uma falena. Assusta-se com tais pensamentos e se recrimina. Como iria
viver sem o pai? Uma prisão, o sobrado antigo, cheio de tapetes e cortinas
pesadas, das quais a mãe gostava e que teme retirar para não contrariá-lo.
Ele deseja que ali, tudo permaneça igual ao tempo em que a esposa, Mariana,
estava viva. Adélia sufoca, rumoreja:é altamente alérgica
a ácaros, disse o alergologista.
- "Você precisa de um ambiente asséptico", sentencia.
Ela não ousa dizer-lhe que não ousa fazer nada, nada do que realmente
precisa. Espirra conformada.
- Paizinho chamou?
- Traga-me os jornais, florzinha
No dia em que a chama de florzinha, estará meigo a ponto de melar, pegajoso,
dependente aos sussurros. Quando é dia de fera, chama-a de "Bela",
ironizando seus olhos estrábicos e sorriso de dentes amarelo.
- "Como uma mulher tão linda quanto sua mãe pôde engendrar
dentro de si um mandruvá como você?"
Desde pequena, ouve isso. E o pior é que nunca, mas nunca mesmo, Mariana
contestou o marido dedicado e mordaz. Decerto reconhecia-se lindíssima
e, na filha, todos os traços da cunhada solteirona. Foi o que Adélia
jogou na cara do velho num dia de TPM braba.
- Pois é, sou a cara de tia Rina, que puxou para o bisavô violinista:
talentoso e feioso.
O pai passou três dias sem falar com ela, que implorava:
- Paizinho, olha para mim... Faz que olha... Toma um beijinho...
E nada. Só voltou a encará-la quando engasgou e ela o salvou do
sufocamento, batendo nervosamente às suas costas. Falar, só falou
no dia em que o comprimido de Propanolol caiu e ele teve medo de ficar sem tomá-lo
e morrer. Queria viver, apenas por temer a Morte, pois nada o segurava aqui.
- Quando a chamava de "Bela", ela se encolhia, tinha colite, ia para
o quarto onde ficava olhando para o teto. Conseguia a façanha de nada
pensar, como nas meditações orientais. Aí então
era que os mais terríveis segredos vinham fazer cobranças. Da
cama, para o banheiro. Daí, um dia, para o hospital. Um dos primos ricos,
repuxando os lábios num esgar de desprezo, anunciou:
- Vou pagar um enfermeiro para seu pai.
E as primas, furiosas:
- Ela não faz nada, deixa cuidar do tio...
Ciro, esse primo mais velho, foi irredutível. Na juventude fora alucinado
pelas belas pernas da prima Adélia. Inexperiente, pensava que a feiúra
sumiria com o tempo, já que a tia era daquela maneira, parecendo Ava
Gadner, deslumbrante. O tempo passou e como ela não embelezou, casou-se
com Lindalva, uma gordinha alegre e quando ficou viúvo, casou-se de novo.
Com a massagista da esposa... Ah, aquelas mãos... Adélia quase
morreu de colite. Por meses, acalentara a ideia de que, por fim, o primo
rico casar-se-ia com ela. Virgem, por sempre ter temido o pai irônico
e feroz, agora, andava a arder...
Levavam-lhe palavras cruzadas. Aconselhavam que escrevesse poesia. Ou livros
infantis... Mas como, se filha única, não tinha a menor ideia
do que uma criança gostava? Os primos netos, achava uns chatinhos ou
diabinhos. Formara-se em Letras indo à Faculdade como quem frequenta
a ópera: muitas cenas e personagens, decoreba total das matérias.
E nada aprendera. Nos trabalhos de grupo, pagava o lanche da turma, sorvete
ou cerveja-ela olhava, nada bebia. Aí, deixavam que assinasse.
- Sofro de dislexia, explicava, sou incapacitada para a leitura. Mas não
quero que os professores saibam, senão vão me rotular de debilóide.
No primeiro e segundo grau, usara o mesmo artifício. Um colega que morava
perto e que a conhecia desde a primeira série, comentou:
- Adélia não lê, não come direito. É fascinada
por essas pessoas que vivem de Prana: alimenta-se de ar...
Riam, mas aceitavam seus subornos. O dinheiro vinha de uma pequena mesada que
lhe dava seu avô Herculano, então vivo:
- Para seus alfinetes.
Como nos tempos de Machado de Assis, pensaria Adélia, se lesse . Mas
a moça não lia. E a moça-velha de hoje não gastava
em alfinetes, mas em comida para seus colegas que liam...
O enfermeiro, porém, vivia lendo. Ela às vezes, passava pelo quarto
do pai decrépito e encontrava-o rapaz cabeceando, mas sem largar o livro,
pousado sobre o colo. Numa noite em que pensou ter ouvido a tosse do pai, levantou-se
para chamar a atenção do acompanhante. Num impulso, foi até
ele e pegou o exemplar: Ana Karenina, de Tolstoi... Pesado e velho, encadernado
com lombada de letras douradas quase apagadas, o livro revelou-lhe algo inusitado
ao seu olhar curioso: a ereção do moço adormecido. Não
conseguia tirar os olhos daquele volume. Sabia, evidentemente do que se tratava.
As primas viviam falando daquilo, daquele fenômeno masculino. "Deve
estar pensando em mim", concluiu maravilhada. Já surpreendera o
olhar de André em suas pernas, seu único atributo visível
de beleza.
Afogueada, foi para o quarto. O coração, corcoveando, corcoveando.
Correu os olhos pelo quarto e viu, numa prateleira onde a televisão,
sempre desligada, ficava, um livro. Levantou-se e apanhou-o. Era a Bíblia.
Folheou-a distraída, enquanto pensava que se ele gostava tanto de ler,
teria de fazê-lo também, para ter o que falar...
"Teus peitos são duas pombas", leu nos Cânticos de Salomão.
Passou a mão nos seus, que arfavam. "Parecem mesmo peitos estufados
de pomba!"Abriu os botões da blusa e, de olhos fechados, pôs-se
a acariciar-se. De repente, sentiu um peso a mais. Duas mãos pesadas,
inquietas, exigentes. E a boca...
Agora , Adélia lê sem parar. Relê cada cana de amor que os
escritores tão bem descrevem. Quer aprender cada vez mais. As primas
estrilam, ciciam, ladram.
- "Não está vendo que ele é muito mais novo que você
e só quer sua herança"?
Ela não se incomoda. Enche a casa de livros, já que não
pode enchê-la de filhos. O moço é cuidadoso, não
se expõe, é respeitoso quando a parentada chega. Mas à
noite! Ah, à noite! As pernas são abertas como páginas
e os peitos umedecidos como quem vai virar as folhas e a fantasia inebria o
casal. No dorso do imaginário, cavalgam nas nuvens. Ele faz de conta
que ela é uma personagem nova e viçosa. Ela é protagonista
de sua própria história. Quando o velho e odioso pai morre, um
riso de luxúria ecoou pelo quarto da filha. Uns dizem que o enfermeiro
matou o paciente. Outros que ela gostou disso. A parentela envergonha-se do
romance escancarado.
- Dizem que os vizinhos nem podem dormir, de tanto que ela mia...
O velho detetive que mora à esquerda tem certeza de que foi morte natural.
"Deixem a mulher ser feliz", sentencia. Mas as vizinhas da esquina,
andam revoltadas". Como é que aquela lambisgoia conseguiu
um marido daqueles", comentam perplexas.
Já os fantasmas do pai e da mãe, perambulando pelo casarão,
se entreolham e sorriem. Adoram ver Adélia lendo Baudelaire para o marido,
às três da manhã, com as pernas engatadas nas dele, enquanto
ele, bem devagar, vai despetalando as roupas de seda aquele corpo formoso. De
olhos fechados, embora. E ouvidos bem abertos...
(Belo Horizonte, 26/10/2004)