Hulda entreabriu os lábios de surpresa e puro prazer. A miniatura, emoldurada
em dourado rococó, mostrava uma paisagem japonesa. O tori, a ponte, a
gueixa... Entrou e pediu para ver de perto. a vendedora disse que a pequena
tela era apenas para decorar. Não estava à venda. Pertencia ao
patrão... Voltou à calçada e começou a olhar os
detalhes do quadro. A estampa do quimono da gueixa, profusa em detalhes. Conhecia-os
bem. Estremeceu, arfou, o coração arrítimico. Atravessou
a rua e foi sentar-se num banco em frente, sob a guarita de esperar ônibus.
O filho médico insistira em que caminhasse - ela então passava
mais ou menos uma semana caminhando num bairro. Pegava a condução
perto de seu prédio: o primeiro ônibus que passava com um nome
não ainda percorrido. Descia perto da igreja, praça, supermercado.
Aí, começava a explorar o comércio. Nada comprava, pois
tinha medo de assaltos e saía de casa apenas com vales-transporte que
comprava do neto, estagiário na Telemig.
A lembrança chegou com seu manto de estrelas e a cobriu. As aulas de
pintura. A mãe a encaminhara porque "as moças de família
devem saber alguma arte". Como tinha voz pequena, nenhuma vocação
para tocar um instrumento musical e não dava conta de executar trabalhos
manuais, como bordar crivo e ponto de cruz, fazer tricô ou crochê,
foi encaminhada para a pintura, já que, na escola, sempre tirava dez
em desenho.
No primeiro dia, chegou cedo ao ateliê trazendo a tradicional maleta de
tintas, pincéis, espátulas e palheta. Ficou parada à porta
do salão cheio de cavaletes. Era tímida e não sabia para
qual deles deveria se dirigir. A voz chegou-lhe junto com a mão grande
que a segurou pelo braço, impulsionando-a para frente:
- Você deve ser a Hulda. Pegue aquele lugar ali.
Não sabia qual, mas não desobedeceu, parando em frente ao primeiro
à sua frente e verificando que a tela apoiada nele já tinha um
esboço à "fusain".
- À direita, à direita, guiou a voz.
Sem jeito, acomodou a maleta de madeira com seu nome pirografado (a mãe
tinha mania de marcar tudo com iniciais, nomes) numa pequena mesa alta à
sua direita e começou a tirar os tubos, a palheta. Uma pequena toalha
com seu monograma, bordado, estava dobrada e ela a desdobrou, estremecendo quando
a risada do professor troou:
- Ah! Trouxe toalhinha! Bastam uns trapos, menina, molhados em tiner, aguarrás
ou terebentina.
E virando-se para dois alunos que acabavam de entrar, exibiu-lhes a toalhinha
branquíssima. As risadas a fizeram corar. Sentiu-se a um tempo perplexa,
e furiosa. Teve vontade de fugir, mas ter de enfrentar o interrogatório
materno pareceu-lhe pior. Resolveu ficar, apesar de. E abrindo um largo sorriso,
riu junto com os demais, murmurando: "Coisas de mãe..." A jovem
que estava à sua direita, tocou-a solidariamente no ombro:
- A minha também fez isso, há uns anos atrás... só
não tinha iniciais...
- Ela é maníaca por uns nomes bordados, pintados, gravados. Olhem
a tampa da caixa!
Expondo-se, antecipava as gozações, anulando-as possivelmente.
Agora, todos lhe pareciam simpáticos e, no final, adorou a aula. O professor
era engraçado, mesmo quando tentava ser severo e exigente. Na semana
seguinte, teve-o sempre por perto. Às vezes desmanchava com a palma da
mão, o esboço que ela fizera. Chegara a jogar-lhe um pedacinho
de fusain quando a pegou de conversa com o Léo, o rapaz de barbicha à
sua esquerda, um pouco atrás. É que o Léo ficava, entre
dentes, fazendo-lhe elogios ou troçando dela.
Pediu à mãe para ir todos os dias, quando soube que Léo
fazia isso:
- Quem vai diariamente, já está desenhando muito melhor que eu,
mãe! Não quero ficar atrás...
D. Mirtes concordou. Desde que não deixasse as notas escolares caírem.
Estava terminando o segundo grau integrado, ia aprestar vestibular ao final
do ano.
- Quero fazer Artes, talvez na FUMA, mãe.
A mãe não achou ruim. Preferia que a filha se casasse do que fizesse
carreira: mulheres bem sucedidas eram muito independentes para o seu gosto.
Faculdade moça deve fazer enquanto espera o casamento, dizia às
amigas. Então, não faria mal prestar vestibular para um curso
tão fraco. Além disso, pintar quadros acalma e costuma encantar
as sogras, pensava sempre raciocinando como as mães de sua época.
Mas Hulda foi adquirindo um estilo próprio, participou de uma coletiva,
ilustrou alguns livros. Durante todo o tempo, ficava com Léo, sem saber
ao certo se namoravam, porque durante os finais de semana ele "sumia".
Dizia que ia acampar, quase sempre a convidando para ir junto, mas Hulda declinava.
D. Mirtes jamais deixaria a filha viajar com o colega.
Como Drummond escrevera, "no meio do caminho tinha uma pedra..." No
de Hulda, a gravidez de uma garota com quem Léo brincara carnaval. Não
só dançara. "Dançara". Assumindo tudo, veio falar
com ela, cabisbaixo. "Tenho algo para te contar, não sei como dizer..."
E ela, numa intuição:
- A moça está grávida...
Na verdade, não sabia de nada, exceto que Léo fora para Ouro Preto
com uma turma de sua rua e lá, havia ficado com a tal da Telma. Ele mesmo
contara tudo a Hulda pois ela sempre fora sua confidente. Disfarçando
a mágoa, ela o ouviu até o fim do "confiteor" e dissera:
- Isso acontece... Para mim, o importante é que você não
fique mais com ela... mas também não vou querer que você
passe outro carnaval longe de mim... E se fosse o contrário?... Coloque-se
no meu lugar, Léo...
Ele mostrou-se arrependido. Chegou a pedir que o perdoasse. Logo depois, começaram
a transar. Até que, após três meses, essa dolorosa revelação.
Telma era "de menor". Era preciso casar-se. A criança não
tinha culpa. Ele, o pai, devia assumir. E blá-blá-blá.
Todos os chavões ouvidos através da fieira dos anos, referentes
a conhecidos e desconhecidos, agora à pessoa com quem estava comprometida.
- Considere-se livre, Léo. Por mim, você está liberado do
nosso compromisso. Com licença...
Entrou depressa, deixando-o perplexo e perdido, na varandinha de azulejos azuis
e samambaias. O rapaz quis chamá-la, mas faltou-lhe coragem. Correu para
o portão de ferro em arabescos de jardim, abriu o ferrolho e saiu para
o denso domingo já quase no meio. O coração há muito
galopava no peito.
Hulda não teve mais notícias dele, que não voltou às
aulas. Tempos depois, a moça soube que ele fora estagiar na Itália,
a mando da Fiat, onde havia passado a trabalhar. Era à noite, que, antes
de dormir, pegava a miniatura na qual ele trabalhara pacientemente, com pedacinhos
de folha-de-ouro em pequeníssimos detalhes, tendo criado, para ela, aquela
cena maravilhosa, tridimensional, usando todos os recursos de imaginação
e do talento - ele que gostava de pintar a espátula, telas imensas, ampliara
consideravelmente seu limiar de paciência - para presenteá-la,
no aniversário. Por saber que ela amava o Oriente não conhecido,
suposto e entressonhado. Virando nas mãos a delicadíssima peça,
em moldura entalhada pelo próprio artista e transformada em ouro, Hulda
sentia um frêmito no coração, como o bater das asas de um
passarinho. Sentia saudades, mas estava magoada e afastava da mente as lembranças.
Mãos carinhosas fazendo-lhe uma trança no meio da cabeça.
A língua morna lambendo de seu queixo o molho do cachorro-quente. A manta
xadrez azul sendo colocada sobre seu copo semiadormecido, quando, gripada,
deitara-se no divã do ateliê de Léo. E a gloriosa primeira
vez, algo assim como um deslizar de cisne num pântano. Frêmito,
obstáculo, passagem, voo. Liberdade.
Anos mais tarde, casou-se e viveu prosaicamente. O marido administrava lojas,
dois filhos dóceis que não lhes traziam problemas, vida financeira
aparentemente tranquila. Aparentemente: nada faltava à família
e o marido, do tipo provedor pleno, não gostava de sobrecarregá-la
com seus problemas comerciais. "Basta você administrar a casa e as
crianças, meu bem. Já é trabalho demais"
O talento para a pintura, minimizado, colocado em compartimento estanque de
seu cotidiano, uma sobra canalizada para as artes domésticas. Os lençoizinhos
e fronhas dos filhos, os bichos nas almofadas, panos de prato cheios de cenas.
Ninguém notava a perfeita colocação da sombra e da luz,
a proporção das frutas, a carnação dos cozinheiros,
o brilho nos olhos das camponesas. "Ah, que toalha linda! Me empresta o
risco?" Não tinha, desenhava sem cópia. E lá se ia
a amiga, com a peça, a ser copiada / deformada embaixo do papel de seda,
cujo repassar de traços e a reprodução ingrata davam-lhe
vontade de rir...
Hulda não lamentava esse afastamento das Artes. Estas tinham sabor de
Léo. Sabor de mel e de fel, pensava. A vida, agora era outra. Viúva,
voltou para Belo horizonte onde moravam os filhos - ele médico, ela Relações
Públicas - R.P. - de uma firma de publicidade, casados e preocupados
com sua saúde. Veio, mas quis morar sozinha, num apartamento funcional.
Havia uma empregada, por insistência de Jairo, o filho: ela não
pode ficar sozinha. No fundo, achava graça. Embora o espelho lhe devolvesse
uma imagem de sessentona, sentia-se jovem. Claro, havia a cardiopatia, mas como
sua vida transcorria sem excessos, por que preocupar-se? Os cabelos estavam
raiados de branco de prata, um dos brancos aprendidos em pintura. Encantavam-na.
Rugas, as de expressão, nenhuma papada nem barriga. Ah, uns pêlos
sob o queixo, que arrancava com pinça, impressionada com a grossura.
Branco de zinco, outra cor de tinta a óleo.
Criando coragem, voltou a atravessar a rua. A mão direita ajeitou os
cabelos, a esquerda alisou a saia. Entrou e chamou a vendedora. "- Desculpe,
mas é que sou pintora e creio conhecer aquela miniatura. Por favor, chame
o proprietário, sim?".
Antes mesmo que a moça se movesse ou respondesse, a voz troou:
- E então, trouxe a toalhinha, Hulda?
Era seu antigo professor, Marco Antonio. Os demais caíram na risada,
ela perplexa:
- Mas como sabia que era eu?
- Ora, do mezzanino, observo os clientes. Vi você pela vitrine. Depois
entrou e saiu. Fui à janela e lá estava você, sentada em
frente. Eu já ia lá, quando entrou!
Saíram para o sol, rindo e trocando miúdos. Sentia-se a Hulda
moça, a Hulda pintora. Um sopro da vida antiga misturou-se às
possibilidades de uma vida nova. Ele tivera um enfarte, mas estava bem. Não
se casara. Léo? Deixara-lhe a miniatura com um pedido: "Um dia Hulda
passa e reconhece". Dito e feito. Mas, e Léo? Não sabia,
viajava muito, inquieto. Enviuvara há tempos, também. Tinha uma
filha, pintora como eles. "- Vamos, vou te mostrar, na galeria que fica
nos fundos, os quadros dela. É expressionista, muito talentosa. E ela
é doida para te conhecer, Hulda, sempre diz ao pai que quer ver de perto
a única mulher que ele sempre amou.
De braços com o velho amigo, sentiu-se, afinal, inteira, resgatada. Quem
fôra, quem estava sendo. Devolvida a si mesma, apressou o passo em direção
à loja de artes e antiguidades. Há muito tempo não
se sentia assim feliz...
(4 e 5 de maio)