A menininha está na rede, encolhidinha, em posição quase
fetal.Um olho acima da franja branca, olha pardais que se agrupam em torno dos
miolinhos de pão que a avó jogou no jardim.Não come mais
essa parte, depois que uma nora lhe disse que comer apenas a casca, não
a engordaria.O avô riu muito:
- Ah, a casca deve ser feita de outra coisa, não tem fermento nem trigo!
Vó Zoé fazia um muxoxo, mas era bem do tipo "Se não
faz bem, mal não há de fazer" e "Não custa experimentar".
O avô, que ela adorava, era sardônico.Argumentava com filosofia
e "medicina de salão".Homem de muita leitura, pronunciava corretamente
as palavras, lia todos os jornais e bulas possíveis.Nem parecia que não
tivera tempo de se formar, o que todos os irmãos fizeram, para ajudar
a Bisaline, depois que o pai morrera. A bisa era histriônica, lembrava
coisas engraçadas, e fazia gargalhar, mas somente coisas do passado,
pois agora esquecia os óculos que estavam na cabeça, se já
lanchara, quando era hora de "ouvir" a telenovela das seis.... Olhões
azuis cercados de catarata. "Não é bom operar nessa idade",
sentenciavam todos, porque ela faria noventa anos em dezembro. Via com os olhos
da alma, com os olhos da bisneta paciente, que tinha seu nome: Alynne, mas acrescido
desse "y", dos dois "nn", para ficar diferente."Quanta
bobagem menina", sentenciava a Bisaline. A menininha concordava, solenemente,
do alto de seus oito anos.
Mais duas letras no prenome, sempre esquecidos por alguém até
pela professora, às vezes. O pai a chamava de Lyn, o avô de Lyli,
e lhe falava das pernas de Lili Marlene, em O Anjo Azul. La Dietrich... E suspirava...
" Pardais são bobos, pensa a menina.Qualquer barulhinho, fogem.Nem
se lembram que a avó Zoé é do Bem, que nós os alimentamos".Prefere
um cãozinho.Um poodle. Poodle toy, bem pequenino. Mas a mãe é
categórica: "jamais, jamais!" O irmãozinho é
altamente alérgico a pêlos. E assim, eu, que nasci primeiro, não
posso ter animais. Até ele nascer, os pais diziam-lhe: "Quando você
tiver idade para cuidar, nós compramos". Mentira pura, claro. A
casa tinha duas empregadas para cuidar de cachorro, ainda mais um pequeno como
pretendia ter - e aquele mulheril todo: a bisa, a avó, Tia Berta (a quem
ela chamava de "Tia fechada", o que fazia os adultos gargalharem por
alguma piada secreta que ela não entendia e a tia fechar a cara. "Fechada"...
Só dizia isso por ser o antônimo de "a/Berta", ora. Herdara
o senso de humor do avô querido, da bisa.
- "Mãe, quando eu vier na outra geração, quero ser
homem."
As mulheres mimadoras daquela criaturinha adorável riem:
"- Outra geração, hem? Zomba a tia Fechada... deixa a Vó
Zoe, carolíssima, saber que você acredita em Reencarnação!"
"- E pra que vai querer ser homem? É tão feminina, com esses
cachinhos de ouro", a mãe fala com calma...
A menina responde de uma vez só:
_ "Porque quero ser avô, não vó... Porque homem não
é boboca... Porque vou nascer sem alergia e criar cachorro, gato, um
monte de bicho peludo... Se bobear, até urso eu crio, às vezes,
vou nascer no Canadá... E vi na televisão uma menina na Índia
que lembrava tudo, tudinho, de suas vidas passadas..."
Criada no meio de tantos adultos, Alynne falava mesmo como gente grande. Também
, era muito precoce, viva, encantava a todos, mas de vez em quando, ultrapassava
limites.
"- Mas não quer ser vó como eu, por que?" Indagou D.
Zoé, curiosa.
- Ora, porque vó só fica dentro de casa, não lê jornal,
só vê novela e faz crochê. Vó quase não enxerga
e tem de remendar meias fingindo que gosta! Vó tem saudade dos filhos
que quase não vêm "visitar ela", vó põe
mesa e tira... Troca a bisaline, aqueles fraldões fedorentos!... E Vó,
quando pensa que ninguém vê, fica chorando com a mão na
barriga... E vô, só faz cochilar, ler, sair e me faz rir..."
As mulheres mais novas olharam para D. Zoé, muito vermelha e sem graça,
perguntando:
- A sra. está doente, mãe?
A mais idosa não queria que soubessem da dor na bexiga, da micção
ardida, do cheiro acre da urina. Temia que a levassem para uma mesa de cirurgia
e fora assim que perdera o próprio pai.
" - Que nada, responde, tremendo as mãos ressecadas, essa menina
danadinha está com conversa..."
Agora, encolhida na rede, Alynne tinha a percepção de quebrara
a casca de algum segredo. Arrependida, com pena da velhinha que tanto a mimava,
deu um salto, espantando os pardaizinhos que deixaram em seus ouvidos o gostoso
som do ruflar de suas asas e foi atrás da avó:
"- Vó Zoé, me desculpe, tá? Quando eu voltar na outra
vida, vou ser avó, para ser que nem a senhora, eu só estava brincando...
É que eu fiquei com medo de ficar e velha e sentir dor como a senhora...
Mas quando você sentir, me chama, que eu dou a mão e a senhora
esquece onde dói, como faz quando eu estou com dor de barriga, tá?"
A avó abraça a menina, escondendo em seu ombro a face marcada
por um sofrimento atroz... Um dia procuraria o doutor, mas só bem mais
tarde...
(Belo Horizonte, Minas Gerais, 4/05/2005, tarde fria mas dourada de sol)