Domingo. 15:37:29. Acho que essa, o relógio na parede marcando as horas,
foi a última imagem registrada pela minha memória. Adeus Suzi.
O mundo ainda precisava saber que ainda vale a pena acreditar na vida e nos
bons sentimentos. Enfim, como dizia o poeta "há sempre um lado bom
em tudo". Nunca entendi isso direito. Sei que precisei de uma vida inteira
para entender o que era o amor de verdade.
Quando eu era mais jovem as pessoas me chamavam de Pumpkins. Tudo por causa
de um Maverick cor de abóbora que herdei do Totó, um velho anarquista
que conviveu muitos anos com minha mãe.
Totó era um grande boêmio e adorava ler livros. Apesar de sua
filosofia não poupava nenhum tipo de autor ou corrente de pensamento.
A coleção completa das obras de Lênin e de Jack London,
por exemplo, o escritor predileto do camarada que juntamente com Marx e Engles
formou a santíssima trindade da utopia comunista.
Totó achava os comunistas um bando de gente dogmática e cheia
de preconceitos e fascinados pelo autoritarismo soviético que achavam
que poderiam salvar o mundo por meio de uma plenária. Isto sem ao menos
querer compreender a alma humana. No entanto, esbravejava, que todos não
passavam de massa de manobra para um projeto , obscuro, de poder.
Um dia se foi. Anos mais tarde o câncer levou mamãe também.
Meu pai, biológico, nunca conheci. Então, sobrou eu e o maverick
alaranjado na garagem lá de casa. Logo, instalei um som e me tornei um
cara popular. Sempre oferecia carona para os mais chegados. No caso, os "brothers"
do colégio, Dajson, Oiram, Chumbinho e Junão. E a Suzi também.
Segundo eles, os meus chegados, a Suzi era como uma maçaneta que todo
mundo passava a mão. Alguns diziam que era galinha mesmo. Eu nunca havia
beijado sua boca, nem mesmo em sonhos. Mas ela sempre conversou comigo ao contrário
dos meus amigos. Acho que não cheguei a conhecer nenhum deles direito.
O Dajson sempre foi o mais inteligente da turma. Não fez faculdade,
mas aprendeu a falar inglês e descolou um bom emprego. O Oiram conheci
por meio do Junão. Gente boa. No colégio gostava de jogar basquete,
depois passou a gostar de Rock. Tinha sempre os discos mais legais. Foi na casa
dele que ouvi Alien Sex Find pela primeira vez.
Na época, nos anos 80, a gente até fumava um baseadinho. Mas
um dia, o Oiram estava lá, eles estavam cheirando cocaína. Não
gostei e me afastei deles. Não deixamos de ser amigo, mas senti um clima
pesado em torno deles. Depois fiquei sabendo que passaram a injetar na veia.
Decadência sem elegância alguma. Ambos foram contaminados pelo HIV.
Além de se envolverem até o pescoço com o submundo das
drogas.
Junão foi preso por estar envolvido com o tráfico de entorpecentes.
Hoje, os dois estão enterrados no mesmo cemitério. Chumbinho foi
mais nervoso. Começou a usar crack e entregou sua vida por algumas pedras.
Também viu o sol nascer quadrado. Dizem que foi preso pela última
vez, pego em flagrante assaltando um carro à mão armada,e delatou
toda a quadrilha. Os agentes na delegacia lhe deram uma surra que fez ele confessar
que não fora Judas que havia vendido Cristo por 30 moedas de ouro, mas
o próprio Chumbinho. Mas não imagino o que o serviço de
inteligência da polícia fez com esta informação.
Como consequência, da delação por livre pressão,
acabou virando presunto pelas mãos dos companheiros de cela do pavilhão
do complexo penitenciário que costumava a curtir adoráveis férias.
Quem me contou isso foi Suzi. Ela havia me procurado. o número do meu
telefone, 224-1578, ainda era o mesmo dos anos 80. Passei, com meu maverick,
na casa dela e fomos para um piti-dog.
Ela disse que estava esperando um filho e que o pai, Chumbinho, havia se envolvido
com coisas erradas e em virtude destas relações equivocadas e
pelo seu vício no crack acabou perecendo atrás das grades.
Então, de supetão, perguntou se eu poderia assumir a criança.
Estava mastigando um naco do sanduba e tomei um susto tão grande que
a pasta ficou entalada na minha garganta. Ela disse que não tinha ninguém
mais para recorrer. Disse mais: que eu era um homem bom.
Não me senti pressionado, mas agradecido pela confiança. Afinal,
já havia passado por maus momentos, pensado em suicídio, sofrido
de depressão e outras doenças crônicas dos dias atuais.
Enfim, faça do limão uma limonada, aquilo me pegou desprevenido
mas mexeu com os alicerces básicos da minha alma.
Então, passados alguns meses, chegou a hora do parto. Ela teve complicações.
O médico disse que o menino estava salvo. Como Assim? Me desesperei.
O que você está querendo me dizer doutor? Segurei forte, com as
duas mãos, em seu jaleco branco e já com o rosto transtornado
consegui emitir estas palavras. Ele abaixou a cabeça e não olhou
nos meus olhos. Comecei a chorar.
Se ela partisse não teria mais ninguém. Talvez nem mesmo a solidão.
Quem iria ensinar, apesar da maldade do mundo, para aquele menino, que ainda
valia a pena acreditar na vida? Apesar de algumas pessoas, ao fazerem uso do
livre arbítrio, optarem pelo tortuoso caminho do consumismo, da mesquinharia,
do valor excessivo aos bens materiais em detrimento do amor?
Foram dias tensos Passei todas as noites segurando sua mão. No sétimo
dia ela reagiu. Observei, em seu rosto, o sorriso mais lindo do mundo. O tempo
passou e nosso filho cresceu. Um dia remexendo nas coisas antigas encontrei
o seu diário de adolescente. Fiquei emocionado ao ler que Suzi sempre
havia gostado de mim. Meu nome era sempre citado e acompanhado por um desenho
de um pequeno coração.
Naquela tarde, véspera do meu aniversário de 40 anos, tive um
AVC. Foi então que pude compreender o amor que Suzi me dedicava. Estava
em uma cadeira de rodas e não conseguia mais me comunicar. Estado vegetativo.
Mesmo assim, todos os dias ela beijava meu rosto e fazia nosso filho me beijar
também. Lembro que Suzi penteava meus cabelos, mas eles foram caindo
e fiquei careca. Só então percebi que era fruto da quimioterapia,
afinal estava com câncer.
Mas estava feliz por Suzi e nosso filho. Minha missão estava cumprida.
Havia estendido à mão e agora Suzi seguiria em frente propagando
os benefícios da vida com um lindo sorriso no rosto. Tive a certeza de
que um pouco do que havia de bom em mim continuaria vivo em seu coração.
Não senti mais fraqueza. Havia chegado o meu momento. Um lábio
áspero beijou minha face. Adeus Suzi.