A Garganta da Serpente
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Noite de lua cheia

(Carlos Pompeu)

Meu nome é Bernardo Belisario. Eu ganho dinheiro com ativos de renda variável. Também conhecido como mercado de ações. Compra e venda. Como comecei a ganhar algum dinheiro com isto? Alguns amigos passaram a pedir conselhos sobre investimentos. Foi então que tive a ideia de criar uma espécie de Fundos de Investimento. Funcionava assim. Se você investisse naquela minha indicação e tivesse lucro haveria uma porcentagem que seria minha. Pois bem, funcionava assim. Mas o que eu fiz para estes investidores confiarem suas finanças em minhas sugestões?

Para que isto possa acontecer você tem que entender sobre o assunto. Tem que entender sobre o mercado de ações. Eu fazia as negociações pela Internet. Usava o Home Broker. Assim, comprava e vendia e tinha lucro. Comprava um pedaço de uma empresa que poderia fazer sucesso. Quando fazia este sucesso, eu vendia. Aí, então, ganhava dinheiro. Deu certo. Passei a ganhar mais com os outros investidores. Assim, sempre enviava relatórios. Do que tratavam? Eram pesquisas diversas de fundos disponíveis no mercado. Tinham como finalidade convencer.

Meus relatórios constavam de duas análises. Uma análise técnica com gráficos e uma análise fundamentalista com balanços financeiros e informações sobre a empresa. Mas, apesar disso, não utilizava nenhum destes indicadores para efetuar compras ou vendas. Tudo era realizado com as fases da Lua. Não havia nenhum motivo para isso. Pura superstição. Simplesmente passei a adotar este método e deu certo. Foi então que apareceram os investidores e a perspectiva de ganhar mais dinheiro com isso.

Além de fazer toda a negociação pela Internet, também fazia contato com os investidores pela rede de computadores. Foi um boca a boca virtual. Tive que criar um blog. O que trouxe mais investidores. Todo o contato era feito por meio de e-mail. A minha rotina era ler uma infinidade de mensagens eletrônicas. Tudo se resumia a números. E isto dizia respeito a minha conta bancária que estava engordando muito. Assim, tinha gula em abrir um e-mail. Foi quando tive acesso a um convite. Era um convite de casamento. Alice. Bruno. Bruno e Alice. Eram meus amigos e também investiam em ações. Liam todos os meus relatórios. Não poderia desapontá-los. Faziam questão da minha presença. Afinal, segundo me informaram, teria sido o responsável pela possibilidade da realização da celebração da união por meio do casamento do casal. A renda deles havia aumentado com o investimento em ações. Aquilo fez muito bem ao meu ego. Olhei data, loca e hora.

Acontece que como trabalhava com a Internet não tinha um horário determinado. Não tinha que bater ponto. Trabalhava mais durante a noite. Por isso entendi 12:00 h. como sendo meia-noite. Ninguém falou que era de noite. Mas eu pensei que fosse meia-noite. Não sei o motivo. Inclusive, seria uma noite de lua cheia. Mas não liguei as coisas. Não me passou pela cabeça. Simplesmente, me desloquei para aquele endereço como se estivesse indo para uma reunião de negócios. Nada mais do que isso. Peguei um táxi e passei o endereço da Igreja ao motorista. Em poucos minutos já estava no local.

Não havia ninguém. Em um primeiro momento não percebi nada. Também não passou pela minha cabeça que estivesse me enganado quanto ao horário. Era quase meia-noite. Foi então, que observei um senhor de idade. Era um velhinho que estava acomodado na escadaria da igreja. Não tinha cara de quem investisse no mercado de ações. Mas deveria ser um convidado. Aproximei com a intenção de iniciar uma conversa amigável.

Notei que tinha muito pelo no corpo. Não sei por que. Apenas me chamou a atenção. Assim como suas sobrancelhas grossas que se fundiam. Além das palmas das mãos ásperas e calejadas e os grandes olhos arregalados. O que não significou muito para mim. Disse que chamava Romão e que era de uma cidade do interior próxima a Bragança Paulista, na divisa com Minas Gerais, chamada Joanópolis. Parecia ser um velhinho simpático. Fui cativado pela sua prosa e notei que tomava uma cachaça. Ofereceu e tomei um gole. Água ardente. Água que passarinho não bebe. Senti todo o meu corpo arrepiar. Fechei os olhos. Levantei , numa espécie de espasmo, a cabeça para cima. Abri os olhos. Diante minha visão uma lua cheia.

Foi quando seu Romão falou qualquer coisa sobre efeito lunar. Acredito que não tivesse dito estas palavras, mas se referia a lua cheia. Ofereceu e tomei outro gole. Em todo caso, quis dizer que a lua influenciava o comportamento das pessoas. Sua afirmação se fundamentava em um argumento logicamente inconsistente. Mas isto eu fazia para escrever meus relatórios. Dei um desconto para o seu Romão. Ele falou que a lua afeta as marés. Lembrei que o corpo humano era constituído em sua maior parte de água. Tomei mais um gole da água ardente do seu Romão.

Não associei efeito lunar com desequilíbrio emocional. Foi quando um cão vira-lata apareceu do nada latindo e me mordeu.

Perdi um pouco o foco. O cachorro sumiu. Ficou a impressão de uma mordida. Desapareceu como se não existisse. Ouvi o velhinho dizer que isto acontecia em noite de lua cheia. Inclusive, que era a noite de lobisomem. Que era um homem atacado por um lobo e que virava o bicho em toda noite em que a lua estava nesta fase. Mas aquilo era uma falácia.

Nunca ninguém havia me contado ou mesmo havia lido sobre a origem desta história de lobisomem. Consta que Heródoto, filósofo grego, mencionou um mito sobre pessoas que assumiam a aparência de lobo. Petrônius, autor romano, em sua peça "Satyricon" foi o primeiro que vinculou a lua cheia com a transformação do homem em lobo. Já Ovídio escreveu o mito do Rei Likaon que teria desrespeitado Júpiter ao incluir carne humana escondida entre outras especiarias para um banquete.

O Deus Júpiter ficou furioso e jogou uma maldição no Rei Likaon que se transformou em lobo. Daí surgiu o termo Lykantropos, que é aquele que vira lobo. Derivado deste termo temos a lincantropia que é o nome dado à uma doença mental que leva o doente a julgar que se transforma em lobo. Uma loucura. Mas há a hipertricose, que é uma doença genética que provoca o crescimento anormal de pelos. No entanto, foi na Idade Média que esta história. Ou seria mito? Bom, foi nesta época que surgiu sua conotação maligna.

Cabe ressaltar que o século XVI foi marcado pela inquisição. Milhares de pessoas de pessoas foram acusadas de bruxaria e de serem lobisomens. Houve o caso de Giles Garnier que em 1573 confessou, após tortura, ter feito um pacto com um espírito maligno e ser o responsável por uma série de mortes de crianças causadas por um lobo de verdade. 52 anos antes, em 1521, em seu julgamento, Pierre Bourgot que era acusado de cometer assassinatos brutais afirmou que se auto transformava em lobo. Toda essa paranoia ainda era disseminada pelos problemas sócio econômicos e pela miséria e a fome.

Foi quando tocou a primeira de doze badaladas que se seguiram irritantemente. Meia noite. Quando dei por mim estava sozinho. Um silêncio profundo. A lua me olhava com desconfiança. Um barulho. O que era aquilo? Um arrombamento. Um grupo de assaltantes que arrombavam igrejas durante a noite para roubar arte sacra. Percebi o movimento ,mas fiquei sem ação. Eles se aproximaram de mim. Não tive tempo de sentir medo . Tudo muito rápido. Senti uma dor intensa. Talvez uma coronhada na cabeça. Antes de desmaiar tive a sensação de ter visto um lobo com feições humanas atacando meus agressores. Fade in. Tudo ficou escuro. Fade out. Uma silhueta feminina em um vestido de noivo. Alice. Ao seu lado, Bruno. Pareciam preocupados. O sol rachava. Será que já havia percebido o que ocorrera comigo? Ouvi uma voz.

- Você está bem?

Preferi não proferir palavra alguma. Ainda estava confuso. Também tive receio de relatar o que acreditava ter acontecido comigo. Poderia ser uma auto ilusão. Uma forma de nos enganarmos . Sendo que fazemos isto conosco de modo a aceitarmos ou acreditarmos em uma coisa que não é verdadeira. De achar que o que é falso é algo real. Enfim, uma simulação. Provavelmente, aquilo tinha um significado. Talvez não devesse fazer nenhuma espécie de negociação em noite de lua cheia. Talvez fosse melhor fechar para balanço. Foi quando ouvi alguém dizer:

- Você investiu nas ações daquela corretora de seguros indicada no último relatório?

A pergunta não havia sido feita para mim. Era um diálogo entre os noivos. Não lembrava . Acho que o seu Romão me salvou. Mas minha cabeça ainda latejava quando ouvi a primeira das doze badaladas que indicavam que já eram meio dia.

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